Índice de Capítulo

     “Há certos hábitos, certas malícias e certas instruções que viram uma pessoa em algo que não era em sua originalidade, sua pessoa e alma. Tornam-se mais do que ordens, maus hábitos ou falta de bondade. Tornam-se devoções.”

    Izandi, a Oniromante


    — Calem-se! — bravejou conde Steken Siward, com tanto impeto que seu corcel ergueu as patas dianteiras e calou os Ritte e Boldey. Ereken fez sua espada uivar, riscando a bainha, mas sem sacá-la. A inimizade entre os Ritte e Boldey já lhe era conhecida. Muitas vezes viera, a mandado do duque, visitar as terras de fronteira entre os sulistas e os lestinos. 

    A primeira vez que chegou lá, estava acontecendo uma batalha — dez homens morreram por causa de um grupo de bandidos de gado, que atravessou a ponte de Porto-Bastilha sobre o rio Lijje.

    Naquele dia, sacou sua espada e pôs fim à batalha quebrando a espada do então conde Aryan Ritte e o agarrando pelo pescoço; isso após ter partido o escudo de Reijer Boldey, neto terceiro do barão Boldey, e socado seu queixo, atraindo a atenção dos dois lados.

    Mas essa vez parecia pior. Fileiras de homens de armas e arqueiros estavam nos frontões norte da ponte de Porto-Bastilha; dezenas de arqueiros e cavaleiros estavam preparados do lado sul, com escudos erguidos e prontos para deixar o Ducado Hoone sujo com sangue dos Ritte.

    Conde Aryan Ritte tinha sucumbido à doença, e o novo conde era um rapaz da idade do seu Bert; e o barão Bert Boldey estava tão velho que não conseguia se levantar da liteira… mas erguia o dedo para dizer que os eztrielizianos estavam atravessando a ponte para saquear suas terras.

    — Há maldithos — arfara barão Boldey; seu rosto parecia uma cachoeira caindo sobre a carne, e praticamente não restava cabelo na sua careca — …nas minhas minas! Estão… vindoh dah sua therrah! 

    — Há alguns na minha cueca também! — bravejara o novo conde, Mayke Ritte, apontando a espada. Vestia o manto do condado, mas não tinha um pelo no queixo e seus cabelos castanhos-claros eram sedosos como os de uma garota. — Enquanto prosseguir com essa balela, a ponte ficará aberta! — desembainhara a espada. — E se tentares entrar onde é meu, vai voltar sem a cabeça!

    A hoste de Ereken por sorte chegou a tempo de algum arqueiro nervoso vacilar. Conde Steken Siward se pôs entre os dois lados da quase batalha, desembainhou a espada de quase dois mil anos, de lâmina e cheiro vermelhos como vinho, e bravejou contra os dois lados. O barão Zwaarkind admitiu consigo: era uma obra-prima — bela, de fio impecável e brilhante como se fosse cristal…

    Sentia que era a obra-prima de um ferreiro.

    — Temos um salvo-conduto de Sua Majestade, rei Rheider Bloemennen, o Flor do Dragão! — bravejara o conde, erguendo a carta com o selo real em cera laranja. — Somos mensageiros de Sua Majestade e ele ordena paz! Vão todos para suas casas e mantenham as espadas baixas. 

    Nhão vouh… ouvir isso de um jhovem… — bramiu o velho barão. 

    — Este jovem está te mantendo vivo e é o seu suserano, barão Boldey.

    Ereken desenhou um olhar sério e orgulhoso ao mesmo tempo. Mayke Ritte mandou que um dos seus atravessasse a ponte para trazer a carta do rei. Conde Siward a entregou sem pestanejar, e assim que o conde Ritte a leu, abriu caminho para que a hoste de Ereken passasse e ordenou que seus homens voltassem para seus postos dentro do castelo. Mas deixou os portões abertos.

    — Comércio é comércio — ele respondera a si mesmo, e a hoste do barão Zwaarkind seguiu pela ponte. Tinha quase doze toesas de largura e se estendia branca e cinza sobre as quase quarenta toesas do rio Lijje, que estava fraco e menos caudaloso, jorrando água azul escura em direção oeste.

    Chegaram à cidade de Porto-Bastilha e saíram em alguns minutos, seguindo pela estrada à direita sempre, e a altura crescia — junta eternamente do frio. As montanhas da Cordilheira ficavam cada vez mais altas e agudas, de picos irregulares e montículos soterrados de neve velha e pesada.

    As decíduas deram lugar a florestas só de pinheiros e ora ou outra, algum arbusto escuro e de poucas folhas. Em sua esquerda, os alpes dos restos norte do Planalto ficavam cada vez mais difíceis de se notar aos olhos comuns, tanto graças à névoa quanto porque se aplainavam em colinas baixas sustentadas por ribeiros do Lijje e as pradarias do leste.

    “Tenho que trazer Hydele aqui algum dia”, decidiu, com as sobrancelhas caídas. “Uma em uma primavera, desses alpes escuros às pradarias cheias de jasmins e tulipas. Willmina ama tulipas amarelas, sei que Hydele também deve as amar.”

    Logo a noite caiu pesada, sem as Luas no céu, e o alvinegro das montanhas tornou-se negrume: tudo ao leste se tornou como as montanhas de lados escarpados e íngremes. Acamparam e seguiram, e pouco a pouco a estrada ficava soterrada por neve fofa, e os cavalos andavam como correndo por causa do frio.

    Houve um momento em que a estrada ficara com a largura de uma criança gorda, grudada à direita e erguida para cima, serpenteando tão bruscamente que desceram dos cavalos, e um a um os dez homens fez aquela travessia segurando o cavalo pelas rédeas e com uma das mãos como viseira.

    Era uma queda de quase cem léguas, acinzentada pela névoa como um véu.

    “Todos aqui ainda são suspeitos de tentativa de regicídio e assassínio de mais de vinte senhores e senhoras nobres e seus filhos. Não sairão. Ninguém desistirá se for inocente, e isto é uma ordem.”

    E assim deixaram as montanhas mais baixas, cuja neve era principalmente vinda do inverno, as pontes foram desvanecendo e ruínas ficaram mais presentes. Imaginou terem chegado na Grande Montanha, o ápice da Cordilheira. Todavia seguiram cavalgando ainda mais alto… Houve um momento em que teve dificuldades de enxergar o que havia debaixo deles.

    O caminho tinha neve densa, acumulada irregularmente por séculos, tal qual o formato da montanha: horas parecia uma planície, sem uma vegetação rasteira sequer senão pinheiros velhos, outras parecia uma elevação densa, ingrime, habitada somente por restos de construções feitas de um material que causava mal-estar em Ereken.

    E frio tentava devorar-lhes até os ossos.

    — Façamos fogueiras mais altas e arranjemos mais gordura — ordenou Ereken. — Também sequemos galhos guardados próximos ao fogo e os levemos.

    Nenhum dos homens que os seguiam desobedeceu. Trouxeram mais galhos do que suas bolsas aguentavam levar. Avançaram cautelosamente, às vezes montados, noutras a pé, mas sempre tentando manter tochas para verem através da névoa crassa, fria para congelar os pulmões.

    — Superem isso! — bravejara Ereken. — É só névoa! Sigam minha voz se não enxergarem!

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