Índice de Capítulo

    Dante abaixou na frente do corpo do adestrador. Ele colocou a mão nos bolsos, puxando algo de dentro, mas não conseguindo sequer uma pista de quem ele era ou porque falava em uma língua diferente.

    Só a habilidade dele conseguir controlar o Felroz já era de se admirar e se assustar. Se alguém conseguisse fazer isso algum dia, em plena convicção, poderia vencer qualquer batalha. Mas, a morte dele ali foi suficiente.

    Um homem não deveria fazer aquilo, era completamente o oposto do que Dante acreditava.

    No meio da floresta, ele tinha que retornar para a Vanguarda. Ele só não fazia ideia de onde estava.

    Foi até os Felroz, dando uma boa observada na sua carcaça e tirou a lança. A arma carregava uma lâmina feita de ferro fino e azulado, mas era denso e bem duro.

    — Isso aqui deve valer alguma informação.

    Procurou ao redor, nas copas escuras, mas a única coisa que viu foi uma fraca luz vindo do sul. Ele não lembrava de qual lado veio, mas aquelas chamas pareciam realmente o lugar que estava antes.

    E que situação. Bem quando estavam prestes a negociar… bom, não iriam negociar. Eles queriam Nekop, e isso já dizia que o Anão era requisitado por Bastardo. Mas, se a habilidade dele fosse tão importante, porque ninguém nunca foi atrás dele antes?

    A pergunta continuava a se desenrolar enquanto Dante fez seu caminho.

    Encontrou um caminho até a base da cidade suspensa; tortuoso, feito de raízes grossas e entrelaçadas que formavam uma espécie de escadaria natural. As árvores em volta, gigantes milenares, se erguiam como colunas de um templo antigo, suas copas perdidas nas nuvens. Dante subia em silêncio, os passos leves sobre a madeira úmida, atento a cada som.

    O cheiro de fumaça ainda pairava no ar, misturado ao perfume adocicado das flores que nasciam nos galhos baixos. Mas havia algo mais, algo que fazia a pele dele formigar: o som das vozes, irritadiças, ordenando, o mesmo som que ouvia quando um lugar abusava dos seus moradores.

    Ao chegar perto da primeira plataforma de madeira, a uns vinte metros do solo, ele viu os guardas de Truman. Estavam enfileirados ao longo da subida, armados com lanças longas, os rostos pintados com traços brancos e vermelhos. Observavam tudo com olhos estreitos, avaliando cada um que passava. E não passavam muitos.

    Na frente, um grupo de moradores, homens e mulheres, alguns com crianças nos braços, esperava, sob o olhar impiedoso dos interrogadores. Dante se aproximou devagar, ficando na sombra de um tronco grosso, observando sem ser notado por enquanto.

    —… Eu já disse! — gritou um dos homens do povo, a voz rouca de exaustão e medo. — Não sei nada sobre essa pedra! Eu sou um pescador, carrego redes, não mexo com essas coisas!

    O guarda à frente dele permaneceu impassível. Seu olhar era de pedra, inabalável.

    — Tem certeza de que jogar assim comigo, pescador? — A voz do homem era baixa, porém carregada de ameaça. — Eu sei onde sua família mora, sei onde posso encontrá-los. Não ouse mentir pra mim.

    O pescador caiu de joelhos, murmurando uma prece entre dentes. Um dos soldados o puxou de volta para a fileira, e outro aldeão foi empurrado para frente.

    — Senhor, por favor. — De joelhos, o homem esticava as duas mãos ao alto, suplicando. — Eu não sei nada sobre essa Pedra Lunar. Por favor. Nunca ouvi falar sobre nenhum Rastro…

    O chicote o acertou bem no rosto, o enviando para o chão, caindo tremendo. Por alguns segundos, ele não se mexeu. Parecia que tinha morrido. O soldado se aproximou, acertando um chute em seu peito, o fazendo estremecer mais ainda.

    — Levante, imundo. Nós sabemos que vocês estão escondendo. Onde estão os Anciãos? Para onde eles fugiram?

    Dante apertou o punho. O nome da Pedra Lunar estava na boca deles, espalhado como semente em terra seca, e isso nunca era bom sinal. Se a cidade já estava de joelhos, a busca pela pedra seria a desculpa perfeita para que todos dessem o que tinham… ou perdessem o que lhes restava.

    Um menino, não mais que dez anos, era o próximo da fila. Trazia um pequeno embrulho no colo, como se fosse um animalzinho ferido. Um dos guardas arrancou o pano das mãos dele com brutalidade, revelando apenas um punhado de raízes e ervas.

    — Para que serve isso? — perguntou o soldado, levantando o pequeno feixe de plantas como se fosse uma arma.

    — É para o remédio da minha mãe… — sussurrou o menino, os olhos arregalados.

    O guarda o empurrou para longe sem dizer mais nada.

    — Senhor, nenhuma notícia do Kaiser. — A voz era grave, carregada de cansaço e frustração. — Montou no Felroz dele logo depois que incendiou a parte alta da cidade, mas não retornou. Eu… eu não entendi o que ele disse antes de sair, mas… não parecia coisa boa. Tava tomado pela raiva.

    — Kaiser sabe se virar. — O segundo homem respondeu, a voz mais fria. Um líder, ou, pelo menos, alguém acostumado a comandar sem piedade. — O Glossário já tem os caminhos traçados. Disse que essa cidade era do Rei morto… E se ele tá certo, os cães dele estão por aqui. Escondidos. Talvez até esperando.

    Dante prendeu a respiração. Estavam mais próximos agora. Passos afundando na madeira antiga da passarela, o ranger suave das botas de couro contra as fibras vivas da árvore. Ele viu as sombras primeiro. Projéteis disformes dançando sobre o tronco da frente, como se algo monstruoso estivesse se aproximando. As silhuetas dos homens tinham ombros largos, capas grossas e lanças com ganchos nas pontas, próprios para puxar corpos de suas tocas.

    — E o navio? — perguntou outro, hesitante. — Aquele navio… O Nokia… Vale mesmo uma fortuna? Mesmo arrebentado daquele jeito?

    O homem de antes — o chefe, Dante apostaria — deu alguns passos ainda mais próximos do seu esconderijo. Tão perto que ele podia ouvir o som ritmado da respiração dele. Como um animal que já sentira o cheiro do sangue e só precisava farejar de onde vinha.

    — O Nokia é um tesouro. — A resposta veio lenta. — E como todo tesouro, precisa de um capitão. Mas antes… antes precisamos esvaziá-lo. Cada maldito que estiver dentro dele tem que sair. Agora.

    Houve um silêncio carregado. Dante sentiu uma gota de suor escorrer pela têmpora até o maxilar. Não se moveu. Não podia.

    — E o Anão? — O tom impaciente voltou. — Encontraram?

    Nekop. De novo Nekop. Maldito seja. Que tipo de sangue corria naquele anão, que fazia meio mundo querer sua cabeça? Que habilidade antiga ele possuía que o tornava mais precioso que um cargueiro cheio de ouro negro?

    — Não, senhor. — A resposta veio abafada. Quase um pedido de desculpas. — Nós tínhamos certeza de que ele estava ali, mas o Kaiser foi primeiro. Depois… nada. Nem sinal do navio, nem do Anão. Eles sumiram.

    — Merda. — O chefe agora soava aflito, como um comandante cujo exército estava afundando em areia movediça. — Perdemos os dois. Então, vamos atrás das Pedras. Se conseguirmos uma… qualquer uma… dá pra negociar com o Bastardo. Ou, quem sabe, com o Rei do Oeste.

    Dante manteve-se imóvel, embora sua mente já estivesse girando. O navio havia partido? Nekop tinha escapado? E se fosse verdade… isso significava que o deixaram para trás. Ou pior: que não tinham escolha. Não importava agora. Só havia uma direção para ele seguir, e não era a mesma deles.

    Ele ficou ouvindo até as vozes se afastarem, os passos sumirem na distância. Respirou fundo, deixando o ar sair devagar. Não era como antes. Não havia força em seus músculos para enfrentar meia dúzia de soldados — e quem sabe quantos outros — com apenas suas duas espadas gastas e um braço que às vezes doía como se ainda estivesse aberto em carne viva.

    Além disso, se atacasse, se ferisse alguém ali, sabia que não só os soldados se voltariam contra ele, mas também os reféns. O medo era uma arma poderosa. Ninguém ali confiaria nele. Ninguém estenderia a mão.

    Então era isso. O navio se fora. Nekop também. Estava sozinho. De novo.

    A missão, antes simples, tornara-se um caminho sem volta. Antes, era só consertar o Nokia. Agora… agora ele precisava sobreviver em uma ilha que não conhecia, entre inimigos que não via, caçado como um cão sem dono.

    Dante passou a mão pela barba malfeita, depois pelos olhos. O mundo parecia mais escuro, mesmo em plena luz do dia. Ele apertou os dedos na cicatriz do antebraço, aquela que nunca deixava de arder quando o tempo mudava.

    — Mãe… — murmurou para o vazio, com uma rouquidão que nem ele sabia de onde vinha. — Não faço mais ideia do que estou fazendo aqui fora.

    E por um instante, na distância, achou ouvir a voz dela. Mas era só o vento, brincando entre as copas das árvores.

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