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    Dante retornou para o alto da cidade por um caminho que só agora parecia reconhecer. Os galhos retorcidos das árvores formavam arcos naturais, com cipós pendendo como cordas de forca, balançando ao sabor do vento úmido que vinha do leste. As casas suspensas nas copas pareciam abandonadas, janelas vazias como órbitas sem olhos. Mas ele sabia que havia olhos ali, observando-o em silêncio.

    O cheiro da fumaça ainda era forte. Madeira queimada, carne queimada, misturando-se com o perfume doce e enjoativo das flores de Truman, como se a própria cidade tentasse esconder a podridão com seus aromas ancestrais. Mas a morte não se escondia fácil. Não ali.

    Ele se moveu devagar, pisando sobre as passarelas de madeira viva que chiavam sob seu peso. O céu tingia-se de um laranja doentio quando ele chegou à clareira alta, onde Kaiser havia caído. O Felroz que ele montava estava morto também. Um amontoado de penas negras e carne estraçalhada, largado no centro como um animal abatido por puro ódio.

    O sangue ainda escorria para dentro dos veios da árvore onde o combate terminara. Os troncos absorviam o líquido aos poucos, manchando-se com padrões que lembravam ossos expostos e músculos esfolados. Dante parou ali, encarando o corpo do homem que, horas antes, havia incendiado a cidade montado em um monstro alado. Agora, estava reduzido a carne fria. O rosto de Kaiser era apenas uma máscara pálida, os olhos vítreos fitando um céu que não dava respostas.

    Por um momento, Dante se agachou ao lado do cadáver. Olhou para as mãos do morto. Algo tinha passado por ele antes. Eram os longos dedos, agora quebrados. Ele pegou um anel que brilhava meio encardido pelo sangue seco — um brasão que não reconheceu, com um símbolo que parecia uma lâmina cruzada por raízes. Enfiou-o no bolso sem pensar duas vezes. Não era saque. Era instinto.

    — Ele não devia ter vindo pra esse lado. — A voz cortou o silêncio como uma faca de osso arrastada sobre couro grosso.

    Dante se ergueu com um movimento lento, sem levar a mão às armas. Ainda. Virou-se devagar e a viu. A mulher estava a alguns passos dele, saindo de um emaranhado de cipós como se tivesse nascido das próprias árvores. Pele de um tom profundo, quase bronzeada pelo sol, cabelos grossos trançados até a cintura. Vestia couro endurecido com placas de madeira negra costuradas nos ombros e no peito, e seus olhos eram escuros como cavernas — sem fundo, sem piedade.

    — E você também não devia estar aqui — completou ela, abaixando sua postura, com uma lança em mãos, sem desviar o olhar.

    Por um instante, nenhum dos dois falou. Só o som distante de estalos da madeira quente, ainda queimando em algum ponto da cidade, e o grito ocasional dos Felroz que circulavam longe.

    Dante soltou o ar pelo nariz, cansado.

    — Eu vim ver um homem morto — respondeu com simplicidade.

    — E o que ele era pra você? — perguntou ela, com a cabeça levemente inclinada. Estava analisando Dante, sentia-se novamente em casa, quando Render fazia o mesmo.

    Ele olhou de novo para Kaiser.

    — Um problema. Agora resolvido.

    Ela não pareceu convencida. Deu um passo à frente, as botas de couro pisando firme nas raízes grossas que emergiam do solo. Havia algo naquela mulher, algo que fazia a própria floresta se calar em torno dela. Um respeito antigo, talvez um medo mais profundo.

    Ou apenas uma habilidade que silenciava seus passos.

    — O que você procura aqui, estrangeiro? — Ela estalou a língua contra o céu da boca, um som curto, que Dante não entendeu de imediato se era de impaciência ou aviso.

    Ele hesitou antes de responder.

    — Sendo sincero, senhora, eu não faço ideia para onde ir. Estou procurando uma forma de sair o mais rápido daqui, e tenho certeza que vou me perder sozinho.

    Por um momento, ele achou que ela fosse rir. Mas não riu. Os olhos dela se tornaram ainda mais sérios, se é que isso era possível.

    — Muitos já se perderam no meio dessa floresta. E ninguém nunca sai vivo dela. Não por baixo. O que te fez descer até aqui? — perguntou ela, voz baixa como um canto fúnebre. — Porque não ficou onde a chama toca o céu?

    Dante encarou suas próprias mãos novamente.

    — Foi de lá que vim. Não quero arrumar problema pra você, então, se quiser ir embora, eu vou entender. Não procuro nada que possa perturbar mais do que… bom, a floresta pegou fogo. Vi aquelas cidades sendo destroçadas e pessoas mortas.

    Ela assentiu, como se tivesse esperado aquela resposta.

    — Então também sabe que não vai encontrar nada além de morte aqui.

    Ele deu um meio sorriso, amargo como ferrugem. E encarou Kaiser ao seu lado.

    — Isso eu já encontrei.

    O silêncio voltou a reinar entre eles, mas era um silêncio carregado. A mulher fitou o céu por um instante, farejando o vento. Depois olhou de novo para ele.

    — Você não devia ficar aqui — repetiu. — Venha.

    Ela deu as costas sem esperar resposta, caminhando para uma passagem entre raízes que Dante não tinha notado antes. Por um instante, ele pensou em recusar. Mas ficou claro, ao olhar para o corpo de Kaiser uma última vez, que não havia escolha melhor.

    Ele seguiu o caminho com a mulher.

    A mulher ia à frente, passos firmes, o corpo inclinado como se fosse parte do terreno. Caminhava sem olhar para ele, mas de tempos em tempos fazia um gesto curto com a mão, indicando que ele a seguisse por algum caminho estreito, ou que se abaixasse para passar sob raízes arqueadas.

    Foi Dante quem quebrou o silêncio primeiro. Não porque estivesse desconfortável com ele — silêncio era algo que conhecia bem. Mas porque precisava entender o que estava acontecendo naquela cidade antes que fosse tarde demais.

    — Quem eram aqueles homens lá em cima? — perguntou, a voz baixa, mas firme.

    Ela não parou de andar.

    — Invasores.

    Ele ergueu uma sobrancelha.

    — Isso eu imaginei. São do Bastardo?

    — Não — respondeu ela, seca. — São deles.

    — Deles quem? — insistiu Dante, forçando o passo para se aproximar.

    — Do Glossário.

    Dante franziu a testa. O mesmo nome que ouviu lá em cima. Mas, não fazia ideia de quem era, apenas que era importante ou poderoso. Os dois, possivelmente.

    — O que eles querem aqui?

    — O que todos querem. — A resposta dela foi um fio de voz. — Poder.

    Ele bufou, desviando de um cipó que quase acertou seu rosto.

    — E a Pedra Lunar?

    — Talvez.

    — Talvez? — Dante mordeu a palavra, irritado. — Você fala como se não tivesse certeza.

    Ela parou, de repente, virando-se para encará-lo. Estavam em um pequeno claro onde a luz fazia o musgo brilhar num verde estranho. Ela olhou direto nos olhos dele.

    — Ninguém tem certeza sobre a Pedra. Só o que ela deixa para trás.

    Dante sustentou o olhar por um tempo. Não havia medo nos olhos dela, só aquela dureza que parecia esculpida em pedra.

    Mas, tinha razão quanto a isso. Realmente era difícil imaginar que a Pedra Lunar lhes entregasse algo além das expectativas. O que se extraía de dentro melhorava ou piorava os homens.

    — E o que ela deixou pra você? — perguntou.

    Ela não respondeu. Virou-se de novo e recomeçou a andar.

    Ele apertou o passo.

    — E o Kaiser? Era um dos deles?

    — Era.

    — E você o conhecia?

    — Não. — A resposta foi imediata. Fria.

    Mais alguns passos e chegaram a uma escadaria de raízes entrelaçadas que desciam em caracol até um platô de terra firme. O cheiro de fogueira acesa veio primeiro, misturado com o de ervas queimando. Lá embaixo, pequenas cabanas circulares, feitas de fibras e barro escuro, se espalhavam como ninhos de algum bicho antigo. Homens e mulheres andavam em silêncio entre elas, vestindo roupas que pareciam ser parte da floresta.

    Dante olhou em volta, surpreso.

    — Vocês vivem aqui embaixo?

    — Vivemos. — Ela passou por ele, descendo mais alguns degraus. — Há gerações.

    Ele a seguiu, desconfiado.

    — Por quê? Por que não lá em cima, como o resto?

    Ela parou de novo, mas dessa vez não olhou para ele. Fitava a aldeia em silêncio.

    — Porque aqui não cai.

    Ele sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe a espinha. Sabia que aquilo queria dizer algo, mas não conseguia entender completamente. Talvez, da mesma forma mais literal possível, era de que homens e as cidades caíam.

    — E o que caiu? — perguntou, baixando o tom.

    Ela virou o rosto por sobre o ombro.

    — Truman. Mais de uma vez.

    Dante ficou em silêncio, acompanhando-a quando ela seguiu para uma das cabanas maiores. Lá dentro, ele viu homens afiando lanças, mulheres preparando ervas, e crianças brincando com ossos entalhados.

    — O ataque que vi… não foi a primeira vez? — ele arriscou.

    Ela apenas negou com a cabeça.

    — E não será a última.

    Ele soltou um suspiro cansado.

    — E mesmo assim ficam.

    — A floresta nos aceita. — Ela passou a mão em um tronco ao lado da porta, como se tocasse um animal de estimação. — A cidade nunca aceitou ninguém.

    Dante apoiou as mãos nos quadris, pensativo.

    — Muito bom o assunto de adivinha, mas eu realmente preciso de uma resposta correta. O que eles estão procurando?

    Ela balançou a cabeça devagar.

    — Qualquer coisa que vai levá-los a morte.

    — É o que costumam encontrar. — Dante sorriu de canto, mas sem humor. — E você? Por que me trouxe aqui?

    — Porque você vai morrer também — respondeu, sem qualquer emoção. — Mas, talvez, não agora.

    Ela deu de ombros e entrou na cabana, deixando Dante do lado de fora. A luz do entardecer fazia o ar parecer grosso, e ele sentiu que as sombras vinham rápido demais.

    Dante passou a mão sobre o rosto, cansado.

    — Talvez não agora — repetiu para si mesmo, encarando o céu fechado pela copa das árvores.

    Mas não soava como um consolo.

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