Capítulo 282: Turbo
O Nokia rangia sob seu próprio peso.
As placas metálicas que formavam o casco se contraíam devagar, como se o navio respirasse, um som úmido e profundo ecoando pelos corredores. A estrutura, embora ancorada no lodo da ilha, parecia impaciente. Vibrações sutis percorriam o chão de aço frio sob as botas dos Vanguardistas.
— Ele não vai segurar muito mais tempo — disse Miatamo arrastando um dedo pela solda trincada de uma viga lateral. Havia ferrugem ali, mas por baixo, o ferro e a madeira se misturavam. — A raiz da ilha já está subindo. O casco vai rachar se a pressão aumentar.
— A culpa não é do casco — respondeu Porto, afiada como sempre. Estava encostado no console central da ponte, uma bota firmemente apoiada na borda. — Nós viajamos praticamente semanas para cá. Nekop disse que ia conseguir um reparador, mas ficamos entalados aqui agora.
Os olhos dele, de um preto breu, se estreitaram quando os ruídos profundos ecoaram de novo, como se confirmassem suas palavras.
O Anão respondeu com um apontar de dedos.
— Eu tinha um contato nessa parte da ilha. Mas, como eu ia saber que ele se mudou? As pessoas também mudam.
— Dá pra ver — devolveu Porto, mais irritado. — Se não tivesse dado aquela ordem de antes, nós estaríamos juntos. Temos muitos feridos. Precisamos zarpar o quanto antes para o lugar mais longe.
Pomodoro não dizia nada. Sentado num banco improvisado feito de caixas empilhadas, ele mantinha os olhos presos na brecha da escotilha lateral, onde a chapa do casco se afastava dois dedos da parede. Tinha enfaixado os próprios pulsos — de novo — depois do último surto de pressão de Energia Cósmica que liberou de Sinora. Seus dedos tremiam um pouco, não pelo medo. Pela proximidade do Rastro.
Ele via a sombra se mover lá fora. Um vulto que se aproximava pela encosta lamacenta, discreto demais para ser um animal, confiante demais para ser um soldado perdido.
Pomodoro apertou os olhos e sentiu o sangue correr mais quente nas veias.
Dante.
Ele abriu a boca para avisar, mas a voz morreu quando Nekop bateu a palma aberta sobre a mesa de mapas, no centro da ponte.
— Temos que decidir agora — rosnou o anão, os dentes cerrados e a barba presa em três tranças que desciam até o peito. — Ou levantamos voo, ou nos afundamos aqui e viramos carniça de Felroz ou de qualquer coisa que está lá.
— Não temos energia pra levantar o Nokia, Nekop — rebateu Guaca, sem levantar o tom, mas com firmeza. — Nem com todos os homens disponíveis. Não em terra firme. Precisamos empurrar ele de volta pro mar.
— Como? — Nekop girou para encará-lo, a mão no cabo do machado que nunca largava. — Você quer empurrar isso tudo com as costas? Com reza? Esse casco pesa mais que Truman inteira.
Pomodoro inspirou fundo. O vulto lá fora se aproximava. A forma de Dante mais nítida agora, atravessando a bruma que subia do pântano como um espectro decidido.
Ele tentou de novo.
— Dante está vindo.
Ninguém o ouviu.
— Precisamos de propulsão externa. — Miatamo encarava seus aliados ao redor. — É disso que estou falando. Ficar aqui dentro não vai ajudar em nada.
— Se você tiver algum tipo de jato que sai dessa sua bunda gorda, então, fala.
As provocações de Porto nunca eram usadas nas melhores horas, ainda mais contra Miatamo. Os dois travaram uma batalha de olhares antes de virarem um pra cada lado. Mas, mesmo com seu ego ferido, Miatamo continuava a falar:
— Há gás de compressão preso nos tanques inferiores. Se usarmos como propulsão… podemos arrancar o casco do solo por alguns minutos. O suficiente para deslizar até a enseada.
Nekop bufou.
— E explodir a nós todos no processo.
A discussão começou a aflorar. Miatamo apontava o dedo para Porto, que rebatia segurando o saco e mostrando. Guaca e Nekop debatiam sobre os propulsores que ainda funcionavam. Era a única coisa que Pomodoro acreditava ser capaz de funcionar naquele navio no momento.
Mas, ao olhar mais uma vez para o lado de fora, viu a aproximação de Dante se tornar uma decaída. Ele se jogou para trás, esticando as mãos para cima e usando o disparo para chegar ainda mais rápido.
— Capital está vindo!
O aviso mal atravessou o ar quando veio o choque.
O Nokia gemeu, um lamento grave que reverberou pelo esqueleto do navio como um trovão engasgado. O chão tremeu debaixo de todos eles, como se o casco fosse um animal gigante tentando se sacudir das pulgas. Um estampido metálico soou, e a lateral onde Dante havia atingido cedeu um palmo, rangendo como uma porta velha arrombada com força demais.
Miatamo caiu de costas, o braço direito batendo no batente da porta, tropeçando e girando em cima do banco. Porto foi ao joelho, os dentes trincados num xingamento abafado, enquanto o saco de ligantes caía e rolava até bater contra o pé de Guaca.
Nekop agarrou-se ao suporte mais próximo, as pupilas estreitas como as de um rato encurralado, varrendo o espaço ao redor como se já calculasse o caminho de fuga.
— Esse desgraçado apareceu do nada e quer nos afundar mesmo?! — grunhiu.
— Ele não vai quebrar o navio, — disse Pomodoro, o tom mais baixo, mas firme. Ele mantinha os olhos fixos no ponto de impacto, onde agora sombras se moviam, devagar, antes de um segundo empurrão.
A escotilha rangeu. E por alguns segundos, eles sentiram juntos o navio se movendo um pouco para frente. A pressão do lado de fora simplesmente se tornou um pequeno alvoroço quando as vozes se misturaram a um rugido agudo que eles reconheceram na mesma hora.
Miatamo correu para onde Pomodoro estava, observando através da fresta.
— Merda — a visão da criatura cheio de lama, com tentáculos e uma boca cheia de dentes, enfurecida, não foi das melhores. — É outro daqueles Felroz.
— Rá, é o Capital. — Porto empurrou o grandalhão pro lado vendo que ele estava forçando os pés contra o casco e usando um imenso jato de ar pelas mãos, forçando-se ao máximo. — Ele precisa de ajuda.
Nekop negou na mesma hora.
— Precisamos de gente para acionar os dois tanques que temos.
A porta que dava para o corredor se abriu e Thelia entrou com seu machado na mão. Ela segurou na porta, e atrás dela, dezenas dos tripulantes que ainda sobravam. Mesmo feridos, machucados, caindo aos pedaços, eles foram até lá.
— Se aquele desgraçado lá fora morrer depois do que fez pela gente — Thelia apontou sua arma para Porto — é melhor que me desconsidere como irmã, seu desgraçado. Leve esse seu rabo pra lá e ajude ele. Todos vocês, agora.
Miatamo soltou uma risada e Guaca fez o mesmo indo pela outra porta. Passando por Thelia, Trahaus girou a adaga, dando uma encarada em Nekop.
— Vou também. Eles vão ajudar a consertar o que for necessário. Os Técnicos servem pra isso.
O Anão engoliu em seco ao ver a quantidade de gente entrando naquela sala. Os propulsores, até mesmo os cascos. Ele não tinha ideia de quem faria o que, mas não foi nem necessário. Os homens sentaram em lugares, usando suas habilidades para consertar, interligar fios, alguns para refazer a parte férrica.
Trahaus passou correndo pela porta depois de Porto, seguindo para o lado de fora.
Quem gritou para os Técnicos foi Thelia:
— É melhor que façam um reparo improvisado, seus molengas. Ficaram acamados esse tempo todo, mas agora, vocês vão trabalhar. Nekop — chamou pelo Anão, apontando com o machado. A mulher dava medo nele. — Pode dar as ordens, agora. Precisamos saber o que é necessário consertar primeiro.
Pomodoro olhou para o lado de fora, observando Dante forçando o navio, soltando um urro. E a aproximação dos soldados e da criatura.
Sempre se impressionava com aquele velhote, ainda mais quando ele era o único que tinha ideias tão estranhas que davam certo. Mas… como ele tinha achado o Nokia tão rápido?
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