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    Dante ainda sentia o peso do discurso de Glossário quando se viu arrastado pelo turbilhão de soldados, todos avançando a passos rápidos, determinados, pela saída do pátio. O chão de pedra fria ressoava sob as botas, um eco ritmado que se misturava ao vento cortante da noite. Ele lançou um olhar ao redor, absorvendo a cena, tantos homens, todos em direção a um único alvo.

    Eles se espalharam pelos corredores como uma matilha caçando presa, movendo-se com precisão letal. Alguns avançavam em linha reta, outros desapareciam em becos estreitos, deslizando como sombras entre as estruturas de madeira e metal.

    O Setor Industrial ficava no Terceiro Anel. Dante não sabia o caminho exato, mas isso não importava. Ele precisava chegar lá antes que o chão da cidade estivesse pintado de sangue.

    O grupo passou por um corredor aberto, e por um instante Dante viu Singapura estendendo-se abaixo deles, um amontoado de casas comprimidas, suas janelas iluminadas por lamparinas fracas, em contraste com postes escuros e inúteis. Os prédios, imponentes mas inferiores à grandiosidade de Kappz, erguiam-se como sentinelas adormecidas, testemunhando a decadência que se espalhava pelas ruas.

    Adiante, um dos soldados ergueu o braço, disparando um gancho contra as vigas expostas de uma construção. O ferro cravou-se na madeira velha com um estalo seco, e o homem foi puxado para cima, desaparecendo por um instante antes de se lançar na direção da cidade, caindo com precisão calculada sobre os telhados abaixo.

    Dante não pôde evitar um aperto no peito.

    Esses caras…

    Não eram apenas mercenários comuns. Conheciam suas habilidades e seus limites.

    Um clarão azul rasgou a escuridão quando outro soldado se atirou da borda, uma rajada de energia emanando de suas mãos e impulsionando-o adiante em um arco perfeito.

    Dante continuou se movendo, um pouco estático. Energia Cósmica.

    Ou tecnologia. Difícil saber, mas era um problema. Mercenários preparados.

    — Aposto que ele deve estar na casa dele! — gritou um dos soldados mais à frente antes de desaparecer na noite.

    — Casa? — Outro soldado riu, os pés deslizando pelo chão enquanto unia as mãos em um gesto estranho. — O Carpinteiro nunca deixa sua forja.

    O Carpinteiro. Se fosse realmente homem incansável, cuja fama não vinha de títulos ou riquezas, mas da dedicação ferrenha ao próprio ofício, então, ele estaria em seu trabalho.

    Jack havia dito que ele trabalhava horas seguidas, sem descanso, sem pausas, moldando ferro e madeira como um deus silencioso esculpindo o próprio mundo.

    Eram palavras pomposas demais, Dante tinha que aceitar.

    Mas vendo como os soldados agiam seguir a ordem do Glossário, precisava se apressar.

    Se havia um lugar para começar, seria lá.

    Os soldados ao redor chegaram à mesma conclusão e mudaram de direção, os corpos inclinando-se no movimento repentino. Dante seguiu com eles. Não havia escolha. O destino do Carpinteiro estava selado. Ele só não sabia ainda se seria como aliado… ou como cadáver.

    I

    Jack deslizou pela porta lateral como um espectro, silencioso, fundindo-se à penumbra do vasto galpão. O ar carregava o cheiro de fuligem e ferro quente, uma mistura pesada que grudava na garganta. A Forja de Singapura, como era chamada, não passava de um armazém imenso, com vigas de madeira enegrecidas pela fuligem e paredes de ferro corroído pelo tempo e pela maresia. Seu único ocupante? Um homem que, para alguns, estava preso ali. Para outros, trabalhava como se fosse um cativo de sua própria arte.

    Jack encostou-se a uma das vigas e esperou. Os sons da forja preenchiam o ambiente — o martelar ritmado contra o aço incandescente, o crepitar das brasas e o leve assobio do ar quente escapando das chaminés improvisadas. Movimentações erradas poderiam fazer o Carpinteiro fugir, e Jack não podia arriscar.

    Do lado de fora, Porto e Trahaus esperavam. Ele havia ordenado que não se movessem sem seu sinal.

    Ainda lembrava do homem diante dele, anos atrás, vestindo o mesmo uniforme: azul-escuro, marcado por fuligem e óleo impregnado no tecido. Nem o tempo, nem os produtos de limpeza mais fortes conseguiam arrancar aquelas manchas.

    — Existe gente demais nesse mundo — Jack murmurou da escuridão.

    O martelo do Carpinteiro congelou no ar, sua musculatura travada. O braço forte permaneceu erguido, tenso, como se um único movimento errático pudesse quebrar o instante.

    — Isso não é verdade — respondeu o ferreiro. O martelo desceu, encontrando o metal com um som oco. — O mundo é vasto, mas não há gente demais. O que temos são problemas demais.

    As chamas das lamparinas dançaram quando Jack emergiu das sombras. O Carpinteiro virou o rosto lentamente, atento à silhueta projetada contra a parede oposta. Seus olhos não estavam cansados como Jack esperava. Pelo contrário — eram duros, prontos para um combate iminente.

    Mas, ao reconhecer o visitante, algo mudou.

    O ferro escorregou de seus dedos e caiu no chão com um baque surdo. Num instante, o homem girou sobre os calcanhares e avançou. Jack, por reflexo, enrijeceu o corpo, esperando um golpe, mas o impacto veio de outra forma.

    Braços calejados o envolveram.

    A força do abraço o pegou desprevenido, os dedos ásperos apertando suas costas.

    — Garoto… — A voz do Carpinteiro falhou, embargada. — Meu Deus, há quanto tempo.

    Jack sentiu o aperto aliviar, apenas para ver o homem recuar de repente, como se tivesse lembrado de algo sombrio.

    — Não… não pode ser. Você voltou. Isso quer dizer…

    Jack assentiu, a voz carregando um peso de lealdade e luto.

    — Bulianto está morto.

    Os olhos do Carpinteiro endureceram.

    — Um novo Rei surgiu. O Bastardo. Ele tomou controle das terras e do mar. E mandou o Glossário atrás de você.

    O ferreiro piscou, confuso.

    — Atrás de mim?

    Jack não queria perder tempo.

    — O Glossário, senhor. Ele vai mandar todos virem atrás de você. Como fizeram com a Holanda. O senhor lembra o que aconteceu?

    O Carpinteiro deu um passo para trás, como se estivesse se afastando não apenas de Jack, mas da própria realidade.

    — Senhor, por favor — Jack insistiu, sentindo a urgência queimando dentro dele. — Eu imploro. Precisa sair dessa cidade.

    O Carpinteiro franziu o cenho, e então soltou uma risada seca e incrédula.

    — Sair? — O desprezo na voz veio como um esbravejo. — Não. Nunca. Cresci nesta cidade. Vivo aqui desde sempre. Eu não tenho para onde…

    — E vai morrer se continuar — Jack cortou, ríspido.

    Os punhos do ferreiro se fecharam.

    — Eu lembro o que fiz pelo Rei. Fiz o que qualquer homem faria quando sua filha é tomada como refém! — Ele respirou fundo, os ombros tensos. — Agora você me diz que há um novo Rei?

    O Carpinteiro abriu os braços, um desafio silencioso.

    — Que venham todos esses malditos. Acha que eu não sei me defender, garoto?

    Jack cerrou os dentes. Ele sabia que convencer aquele homem seria difícil, mas ver sua teimosia agora, diante da tempestade que se aproximava, o fazia sentir o coração apertar.

    A porta lateral se abriu, e Trahaus espiou para dentro, o olhar cauteloso.

    — Tem muitos mercenários vindo pra cá. Se vamos sair, é agora.

    Porto resmungou lá de fora, sem paciência.

    — Mesmo que saíamos correndo, não vai adiantar. Ele precisa pegar tudo o que for necessário e sair daqui agora. Vamos ter que subir tudo.

    Jack olhou para o Carpinteiro, esperando sua decisão.

    — Quem está no comando do Nokia é diferente. Ele não faz sacríficios sem sem por ele mesmo, senhor. Por favor, escute a voz da razão. Da última vez, eu estive aqui para poder fazer uma proposta, agora, estou fazendo um apelo.

    — Minha filha, Jack. Como vou deixar minha filha pra trás?

    — Ela não vai ser deixada, prometo. Elise nunca vai ficar sem o senhor. Mas, nós precisamos ir.

    Trahaus bufou da porta.

    — Temos menos de um minuto. É agora ou nunca. Vamos ou não?

    Jack olhou para o Carpinteiro. Pôs sua mão no ombro do homem.

    — Se o senhor confiar em mim dessa vez, prometo que trago o Ferro Tintilo para você.

    — É uma promessa e tanto, mas não quero isso. Quero minha filha. Se pegarem ela, então, talvez…

    Jack aceitou na hora.

    — Feito.

    No mesmo instante, a porta da frente foi arregaçada. A grande porta de metal foi curvada para dentro, e explodida, sendo enviada para baixo com dois homens caindo um em cima do outro. Eles lutavam entre si, acertando socos.

    Trahaus e Porto entraram pela lateral, vendo a briga se desenrolar.

    — Vou pegar primeiro o velhote. O desejo é meu.

    O outro acertou um soco, afastando uma rajada de poeira, o fazendo levantar e cair pro outro lado.

    — Vai se foder. Eu estou trabalhando por anos por essa chance.

    Os dois homens se encararam, mas pararam. As luzes chamaram sua atenção. Viram o soldado parado, Jack, bem ao lado do Carpinteiro. Eles voltaram a se encarar e depois encararam novamente os dois.

    — Parece que chegamos atrasados. Mas, esse ai é novato. Vamos pegar ele primeiro e depois nós vemos quem…

    Um pedaço de madeira voou, acertando a cabeça do homem da direita. Ele bateu contra a parede, e caiu sentado. Jack e os outros viram o outro soldado virar de costas, para a direção da entrada, e uma outra viga o acertar, o enviando para o chão.

    — Quem vocês pensam que são para tentar acertar esse velhote? — o grito causando um alarde imenso no meio da cidade. — O Carpinteiro é meu por direito. Venham, seus fedelhos. Nem cabelo no saco vocês tem.

    No canto, Trahaus deu uma risada.

    — Parece que o Comandante também entrou na disputa.

    — Comandante? — O Carpinteiro ficou um pouco confuso. — Aquele homem que manda na cidade também está vindo? Deuses.

    — Não esse. — Jack viu o estrago que o lançamento de uma madeira causou naqueles dois. — É o nosso Comandante. Temos que achar Elise, e depois vamos embora. Agora é a hora, senhor.

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