Capítulo 298: Subindo Anéis (II)
Jack não perdeu tempo. Assim que viu Trahaus avançando, seguiu logo atrás, os pés deslizando levemente sobre a superfície instável. O Carpinteiro hesitou por um momento, olhando para os moradores ainda tentando se levantar ao redor, os rostos estampados com surpresa e fúria. Mas Porto não lhe deu escolha.
— Anda logo, antes que eles fiquem realmente putos.
Porto o empurrou adiante, e o Carpinteiro resmungou, resmungou muito, mas correu junto com eles.
Os gritos começaram a se erguer enquanto atravessavam a feira. Alguns comerciantes já estavam se levantando, olhos arregalados de indignação. Um deles, um homem barrigudo com uma faixa vermelha no braço, apontou um dedo trêmulo.
— Eles fizeram isso! Estão fugindo com o Carpinteiro!
O burburinho se espalhou. Um grupo de homens largou seus sacos de grãos e puxou pequenos punhais das vestes. Outros apenas olhavam, incertos, mas prontos para tomar uma decisão assim que alguém começasse o primeiro movimento.
Jack sentiu o suor frio escorrer pela nuca.
“Se esses malditos resolvem atrapalhar, vai ficar pior.”
Trahaus, no entanto, não demonstrou nenhuma pressa. Parou ao final da travessia, virou-se e observou os homens se armando.
— Se eu fosse vocês — disse ela, erguendo a mão —, ficaria fora disso.
A energia ainda pulsava ao redor de seus dedos, pequenas faíscas cósmicas dançando na pele. O aviso ficou no ar. Nenhum dos moradores ousou dar o primeiro passo.
— Vamos — Jack rosnou, puxando o Carpinteiro pelo braço.
Eles seguiram pelas ruelas sinuosas do distrito comercial, evitando as vias principais onde a patrulha do Glossário poderia estar. O chão de pedra úmida fazia os passos ecoarem alto demais, então tentavam pisar leve, mas o Carpinteiro, mesmo tentando, era um peso morto com suas botas desgastadas batendo pesadas contra o chão.
— Eu não corro há anos! — reclamou entre arfadas. — O que diabos vocês querem que eu faça?
— A gente quer que você cale a boca e continue se mexendo — Porto rebateu.
Jack sentiu quando o ar ao redor mudou. A princípio, era uma sensação incômoda, como se uma corrente fria tivesse se enfiado por entre os becos. Então, ouviu.
O som de botas.
Muitas botas.
Ele olhou para Trahaus, que já havia notado também.
— Merda…
A rua que levava ao Segundo Anel estava a poucos metros à frente. Mas entre eles e a passagem, uma figura surgiu na esquina.
O primeiro que apareceu usava uma armadura leve, um tecido escuro sobre o peito e lâminas presas ao cinto. Mas foi o que veio atrás dele que fez o estômago de Jack afundar.
Um sobretudo longo, negro, esvoaçante na brisa da cidade. O tecido era fino, mas forrado por dentro com placas metálicas. Um terno escuro por baixo. Luvas de couro impecáveis.
E um rosto conhecido.
Glossário. Sua vestimenta era de um verdadeiro cavalheiro. Diferente dos soldados, seu terno e sua gravata calhavam bem em seu torno magricelo. Os óculos por cima do nariz, alfinetando suas orelhas pelas laterais.
A definição da classe em pessoa. E Trahaus sentia nojo na mesma hora.
Os olhos dele varreram o grupo com um interesse quase acadêmico, como se estivesse analisando um conjunto de dados em vez de pessoas. E quando parou, suspirou com todos os seus soldados atrás.
Uma ordem, apenas isso, e eles avançariam simplesmente para matar.
— Ah… então é verdade. — Sua voz soou como um suspiro entediado. — O Carpinteiro realmente está tentando fugir.
Ele inclinou a cabeça para o lado, os cabelos escuros penteados para trás sem um fio fora do lugar.
— Lamentável.
Os soldados ao redor se mexeram, prontos para atacar. Mas Glossário ergueu uma mão enluvada, interrompendo qualquer ação.
— Vamos ter calma. Eu gostaria de entender.
Ele deu um passo à frente. O som dos sapatos contra a pedra ecoou pelo beco estreito.
— Diga-me, Carpinteiro. Depois de tantos anos servindo esta cidade, o que o faz pensar que agora é a hora de correr?
— Por que continua fazendo isso com as pessoas? — A voz do Carpinteiro tremeu, carregada de um desespero crescente. — Por que está tentando destruir tudo o que um homem honrado tentou refazer? Essa cidade já foi boa… já foi grande! Por que quer acabar com isso?
Seus olhos percorriam as construções ao redor, velhas e desgastadas, mas ainda sustentando o peso de uma história que um dia foi próspera. Os murmuros da multidão cresciam, acompanhados de olhares curiosos e desconfiados. Todos conheciam a figura de Glossário, sua postura relaxada, suas roupas bem ajustadas, o ar de quem sempre sabia mais do que demonstrava. O sorriso diabólico que curvava seus lábios apenas reforçava a sensação de que aquele homem jamais perderia o controle.
— Um homem honrado? — Glossário arqueou uma sobrancelha, sua voz pingando ironia. — Você fala do Bulianto como se ele fosse um salvador. Mas me diga, Carpinteiro, o que exatamente ele fez de bom para essa cidade?
Ele se virou para a multidão, os olhos brilhando sob a luz opaca das chamas que ainda ardiam em alguns cantos.
— Nada! — Sua voz ecoou, cortando o burburinho. — Nada além de problemas! Ele trouxe promessas vazias, jogou esta cidade no caos e depois desapareceu! Onde estão as negociações que ele jurou proteger? Onde estão os acordos que ele fez?
Ele fez uma pausa, deixando que suas palavras se infiltrassem na mente das pessoas ao redor.
— Não foi só aqui — continuou, sua voz mais baixa, porém cortante. — Todas as cidades que tiveram o desprazer de cruzar com Bulianto passaram pelo mesmo problema. Dívidas, traição e um rastro de destruição.
— Você fala como um ingrato — rosnou Carpinteiro. — Bulianto pode não ter sido perfeito para você, mas ele manteve a palavra com esse povo! E você, Glossário? O que fez além de nos afundar ainda mais nesse buraco? Nem mesmo vemos a luz do sol mais!
Glossário inclinou a cabeça, o sorriso se alargando.
— Ah, então o Carpinteiro quer ver o sol? — sua voz carregava um veneno sutil. — Deve ser triste ficar aqui embaixo, protegido das tempestades de poeira, enquanto os soldados vivem lá em cima.
Ele se aproximou, seus passos ecoando na rua enlameada.
— O que você esperava? Que saísse por essa cidade sem ninguém te prender? — Ele fez um gesto e, ao fundo, os gritos dos soldados estouraram como trovões.
Do outro lado da rua, um grupo de guardas rolava no chão, pegos por uma onda repentina de lama e fogo. As chamas subiam em espirais violentas, sombras tremulando nas paredes. Alguns soldados tentavam se levantar, apenas para serem puxados de volta por correntes que se enroscavam em seus tornozelos.
Glossário observou a cena com um suspiro teatral.
— A cada dia que passa — ele disse, como se falasse consigo mesmo —, entendo melhor por que o mar é mais calmo do que esse lugar. Pelo menos no oceano, ninguém começa uma briga dessas sem motivo.
Ele voltou seu olhar afiado para o Carpinteiro.
— Mas vamos direto ao ponto. Aqui está minha proposta: me diga como construiu o navio de Bulianto e de onde vieram aquelas pedras. Se fizer isso, pode pedir o que quiser. Vou garantir que tudo seja entregue a você.
O Carpinteiro riu, um som amargo.
— Você é um mentiroso.
Jack não se moveu. Apenas encarava Glossário, os olhos escuros como a noite sem lua.
— Mentiroso, eu? — Glossário riu, mas havia algo afiado em sua voz. — Como pode dizer isso se nem me conhece, rapaz? Eu faço o que posso para que os meus tenham uma vida melhor. Quem os jogou nessa miséria foi Bulianto.
Porto bufou, cerrando os punhos.
— A gente já pode cortar esse cara? — sibilou para Trahaus. — Esse desgraçado tá falando do Bulianto como se ele fosse um pedaço de merda.
Trahaus sequer olhou para ele. Seus olhos estavam fixos nos fios que balançavam acima, conectando os prédios a uma tubulação enferrujada.
— Está na hora de sairmos daqui — ela murmurou.
Jack percebeu a mudança de tom. Era uma ordem.
— Olá.
A voz arrastada ecoou pelo outro lado da feira, carregada com um tom despreocupado, quase zombeteiro.
Trahaus sorriu, reconhecendo imediatamente de quem se tratava. Porto se virou, gargalhando alto, como se já soubesse o que vinha a seguir. Carpinteiro, por sua vez, ficou atento, os olhos estreitando na direção da voz. Mas Jack não desviou o olhar de Glossário. Algo estava errado ali. Ele viu o rosto do homem se enrijecer, a postura relaxada desaparecer em uma tensão quase imperceptível.
Essa era a expressão de um homem que sabia que o jogo estava prestes a mudar.
Os murmúrios se espalharam entre os comerciantes e moradores, que recuavam instintivamente, abrindo um corredor improvisado entre as barracas. Foi então que ele surgiu.
O velho Capitão deslizava pelo chão coberto de gelo, como se o caos à sua volta fosse apenas um detalhe insignificante. Dante vinha com o braço erguido, acenando com um sorriso travesso no rosto, como se estivesse cumprimentando velhos amigos.
Jack sorriu de canto.
— Pode não ser hoje, Glossário — disse ele, sua voz firme como aço —, mas um dia você vai provar do veneno que espalhou nessa cidade. E eu farei questão de estar lá para ver você se engasgar com ele.
Glossário não respondeu, mas Jack percebeu o brilho em seus olhos. Não era medo, nem raiva. Era algo pior.
Certeza.
Mas Dante não parecia se importar com a tensão no ar. Ele deslizou até o grupo e bateu as mãos nos quadris, olhando ao redor como se estivesse admirando uma obra de arte.
— O que estamos esperando? — disse ele com sua habitual irreverência. — Vamos embora.
Trahaus soltou uma risada curta. Gostava da forma como o Comandante sempre surgia com aquele sorriso meio maluco. Para ela, significava liberdade. Uma desculpa perfeita para criar o caos sem precisar se preocupar com as consequências.
Era confiança.
— Tem um caminho, mas vou precisar de ajuda — disse ela.
Sem esperar resposta, abaixou-se e tocou o chão com ambas as mãos. A Energia Cósmica fluiu de seus dedos, vibrando como uma força viva. O gelo se espalhou rapidamente, formando uma imensa rampa que subia na direção dos fios e da tubulação acima. Mas não parou por aí. A rua inteira foi tomada pela crosta espessa de gelo, cobrindo cada centímetro do solo em uma superfície traiçoeiramente escorregadia.
Porto e Jack deram um passo para trás, alarmados.
— Você precisa avisar antes de fazer isso! — reclamou Jack, os olhos percorrendo a estrutura improvisada. — E como diabos vamos subir?
Dante riu, dando um passo à frente.
— Simples. — Ele ergueu as mãos, os olhos brilhando com entusiasmo. — Estiquem suas mãos na minha direção.
Jack e Porto trocaram um olhar. Trahaus sorriu. Carpinteiro hesitou.
— Esse é mesmo o Comandante de vocês? — perguntou Carpinteiro a Jack.
— O próprio.
Jack foi o primeiro a esticar a mão.
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