Índice de Capítulo

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    — Merda!

    A palavra escapou com força, como se tentasse sair há horas e só agora tivesse encontrado uma brecha. Um segundo depois, uma taça de vidro se espatifou contra a parede, encerrando qualquer chance de um momento silencioso. O estalo ecoou pela cabine, multiplicado em mil pedacinhos que se espalharam como pequenos espiões indiscretos.

    Ana apoiava ambas as mãos na mesa, os dedos cravados na madeira como se pudessem afundar até o outro lado do mundo. A superfície, resistente até ali, começava a ceder sob a pressão constante. Sua respiração não era apenas ofegante — era desequilibrada, cortada, como se cada inspiração viesse com um preço alto demais. Os olhos semicerrados tremiam, e a boca se mantinha cerrada por pura obstinação, engolindo palavrões como se fossem pedras.

    “Merda, merda, merda…”

    Outra taça voou, desta vez contra uma estante vazia. O som da colisão foi seguido por um estalo seco, e alguns estilhaços voltaram em sua direção. Cortaram-lhe a bochecha e o pescoço como pequenas punições insolentes. Ela sequer piscou.

    A voz dentro dela não gritava — ela sussurrava. Mas fazia isso incessantemente, como goteira em noite longa. Não cedia. Não deixava espaço para mais nada. Podia tentar se concentrar, respirar, contar de trás pra frente, recitar mentalmente os nomes de todos os animais que conhecia em ordem alfabética… nada silenciava aquilo.

    A taça não foi o suficiente. Com raiva, virou a própria estante em direção ao chão. A cadeira seguiu. O impacto a ajudou a se acalmar, e Ana passou a pressionar as têmporas com força, os dedos afundando nas laterais da cabeça como se pudesse apertar os pensamentos para fora.

    Era a mana. Ou a ausência dela. A carência estava atingindo níveis críticos, como fome depois de dias no deserto — mas uma fome específica. Uma que não aceitava pão, só sangue. E Ana a reconhecia bem. Tinha sentido isso antes. Com a Colecionadora, talvez. Ou, com mais certeza, na chacina dos insectoides no outono do ano passado. 

    Queria fazer os marujos sangrarem. Queria fazer cada um deles pagar por simplesmente estarem ali. Não existia razão real, a vontade simplesmente a estava consumindo.

    Mas aí veio Alex.

    Com um único gesto de recusa, a arrancou da beira do colapso. Ana queria socá-lo. De verdade. Com força. Mas, em vez disso, só conseguiu lembrar do olhar que ele lançou — um olhar que não julgava, não suplicava… apenas entendia. E aquilo foi o bastante para que a vontade de matar perdesse momentaneamente o foco.

    — Aquele idiota merece uma recompensa… — resmungou, sem muita convicção.

    O som atrás dela foi discreto, quase gentil. Um arrastar leve, como se o silêncio estivesse dando espaço para alguém entrar. Ana se virou bruscamente, os olhos ainda dilatados, o corpo tenso. Por um segundo, parecia pronta para atacar.

    — O que aconteceu aqui, mulher?

    Madame estava encostada na porta, empurrando cacos com a biqueira da bota, reunindo-os num canto com a delicadeza de quem recolhe memórias mal resolvidas. O rosto não trazia julgamento, só uma curiosidade cética.

    — As coisas estão caminhando rápido lá fora. Logo vão esvaziar o barco.

    Ana fechou os olhos. Respirou fundo, depois outra vez, como se tentando empacotar a loucura e jogar por baixo do tapete. Endireitou-se. Não podia se mostrar vulnerável, nem mesmo para Madame.

    — Obrigada pelo aviso. Sem baixas?

    — Sim. A maioria nem conseguiu se levantar.

    — Isso é… bom. Sim, muito bom.

    Ela já estava indo em direção à porta quando Madame se colocou no caminho. Não foi agressiva, nem teatral. Apenas firme. E o olhar, sempre tão afável, agora trazia algo mais denso. Um alerta velado.

    — Ana, se algo estiver acontecendo, preciso que me fale.

    A capitã hesitou. Apenas por um segundo. Mas o silêncio que pairou foi mais eloquente que qualquer resposta. Madame manteve a postura, sustentando o olhar.

    — Vamos. Eu não te entreguei nem quando achei que era uma sombra há anos. Isso me rende ao menos um pouco de confiança, não?

    Ana a encarou. De perto. Cinco segundos de uma intensidade que poucos aguentariam. Madame, para sua surpresa, recuou meio passo. E odiou ter feito isso.

    — Eu conheço você. E com certeza não é o tipo de pessoa que quebra uma sala dessas por tédio — murmurou, apontando para a bagunça ao redor.

    Lenta, quase com relutância, Ana ergueu a mão direita. Em um gesto único, puxou a luva que cobria a pele até então escondida.

    Madame piscou duas vezes. Não por descrença, mas porque precisava de um segundo extra para digerir a imagem à sua frente.

    A mão de Ana não estava apenas estranha. Estava… errada de um jeito sofisticado. Os dedos, negros como se carbonizados, não tinham aparência doentia — havia até uma elegância inquietante neles. Mas logo abaixo das articulações, o grotesco tomava conta: uma costura viva de flores e carne, coloridas como um jardim repleto de diversão mórbida. Só que a maioria das flores já havia desistido. Estavam murchas, cabisbaixas. Somente as negras permaneciam intactas, quase orgulhosas. Como se soubessem que estavam ganhando.

    Ana olhou para a própria mão e bufou alto.

    — A mana… não, a falta de mana… a mana reversa… sombras… matar, sabe?

    Madame apenas assentiu. Não por entender, mas porque não queria interromper o fluxo de delírio poético que a capitã parecia estar entoando.

    Com calma, segurou o braço da mulher e o abaixou.

    — Não faço ideia do que você tá falando. Mas antes de ir lá fora, acho que precisa — com urgência — de uma cerveja.

    Ana poderia ter argumentado, feito uma analogia grandiosa sobre guerra interna, ou apenas rosnado. Mas em vez disso, sorriu. Talvez, porque pela primeira vez em horas, a proposta parecia razoável. Ou porque estava cansada demais para contrariar.

    Com um gesto rápido das duas mãos, indicou que a taverneira fosse na frente, e as duas saíram sem alarde. A poucos lances dali, já se sentavam nos bancos altos do balcão improvisado da embarcação

    — Preciso de mana.

    As palavras saíram separadas, como se precisassem passar por um filtro antes de escapar pela garganta. Madame apenas observou, esperando que a explicação viesse com o segundo gole.

    — Está tão ruim assim só pela falta de mana? — ela perguntou, genuinamente surpresa. — Isso sim é novidade.

    — Não é pela falta — Ana respondeu, apoiando o copo com mais força do que deveria. — É pelo excesso da outra.

    Madame arqueou uma sobrancelha. O tipo de arqueio que dizia: “Vai ter que ser mais clara que isso, florzinha.”

    — A energia das Sombras?

    — Isso. A mana reversa.

    — E ela é tão ruim assim?

    — Ruim? Claro que não.

    O sorriso que veio depois era o tipo que deixaria um inquisidor inquieto. Ana bateu com o punho no balcão. Uma rachadura fina se formou, correndo de uma extremidade à outra como uma linha de pensamento pessimista. Madame, por instinto, afastou o copo.

    — Ela é maravilhosa — continuou Ana, agora com voz baixa, quase terna. — Tão maravilhosa que vai acabar comigo.

    Passou os dedos — ainda sem luva — pelas flores em sua pele, com um carinho que lembrava alguém acariciando o próprio tumor. Não era amor. Era familiaridade.

    — Collectio vai me transformar em algo que eu não deveria ser.

    Madame tamborilou os dedos no balcão. Um de cada vez. Depois suspirou, serviu outro copo para a rainha mercenária e apoiou o cotovelo no balcão.

    — É por isso que quer o navio daqueles caras lá fora?

    Ana balançou a cabeça com lentidão.

    — Não. Eu não posso sair daqui.

    — E tem escolha?

    — Você quem me diz — respondeu, soltando um pequeno pingente de metal que prendia uma mecha do cabelo. O objeto tilintou levemente sobre o balcão. — Vai dirigir ele por mim?

    Madame afastou a mão dela, como quem afasta um prato exótico demais pra confiar.

    — Não sou boa com essas coisas. Mas… e aquele cara?

    Ana virou o rosto na direção apontada por um leve aceno de queixo.

    — O Luiz?

    Demorou um segundo para focar no vulto sentado à mesa. Um vulto com a postura de quem não sabia exatamente onde deveria estar, mas tinha certeza de que não era ali.

    — Ei, vagabundo! — Ana levantou a voz, mas sem levantar do banco. — Você não devia estar lá em cima ajudando?

    — Não perco tempo com coisas sem sentido. O bruta-montes já não tá lá resolvendo tudo?

    A resposta de Luiz veio com o desânimo meticulosamente calculado de quem vem se especializando em fugir de responsabilidades desde a adolescência. Ana voltou a rir. Era um riso seco, quase protocolar, mas sincero na essência. Estava claro: ninguém estava obedecendo porra nenhuma naquele dia. E o mais irritante era que ela não conseguia nem ficar brava com isso.

    — Que seja — murmurou, apoiando os cotovelos no balcão com o peso de quem já desistiu de fingir controle absoluto. — E aí? Acha que se garante controlando o navio?

    — Nem fodendo vou me meter nisso. Minha cabeça já tá explodindo nessa porcaria de navio — respondeu Luiz, agora massageando as têmporas como se isso fosse convencer alguém de que o cérebro ainda funcionava. — Parece que meus pensamentos carregam três vezes mais devagar. 

    Ana bufou. Longo e audível.

    — É um vagabundo mesmo…

    Não era exatamente um insulto. Soava mais como uma constatação biológica, do tipo que se aceita quando se descobre que algumas pessoas realmente nasceram para fazer o mínimo necessário e ainda sair dizendo que estão “cansadas demais pra discutir”.

    Madame, por sua vez, balançou a cabeça em um gesto automático. Terminou o que restava de sua bebida, e enquanto pensava em sugerir outro nome, uma voz ressurgiu da penumbra com a clareza desconfortável de uma ideia ruim.

    — É só dar ordens pro navio… né?

    A frase veio de um canto da mesa, onde até dois segundos atrás repousava uma figura que, se não estivesse tecnicamente viva, podia ter passado facilmente por decoração abandonada. A mulher mal conseguia manter os olhos alinhados, mas sua voz saiu com uma firmeza incompatível com o estado físico.

    — Vai ser bom. Achei que ia aproveitar a liberdade, mas… sinto falta de mandar em algo.
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