Capítulo 145: Sangue, álcool e Poesia.
Tâmara ainda era criança quando começou a escutar os tapas e gritos, e socos, e chutes.
Ela nem se lembrava mais quando começou. Talvez estivessem lá desde sempre e ela só foi prestar atenção quando já tinha idade o suficiente para entender.
Sua mãe lhe trancava em seu quarto sempre que via o marido surgindo no portão. Isto é, quando a menina ainda estava acordada. Às vezes acontecia de madrugada e a garota apenas acordava com o barulho.
Essa tinha sido uma dessas vezes.
Primeiro, houve um estrondo alto, como algo caindo. Provavelmente, o armário dos pratos.
E então os gritos de sua mãe:
— Para com isso! — implorava ela. — Vai acordar a Tâmara!
— Eu não tô nem aí! Aquela pirralha nem deve ser minha filha! Você é uma puta que deu pra toda a vizinhança! Todos sabem! Sua puta!
E sua mãe começava a chorar e gritar, com os consecutivos golpes que levava de seu marido.
Tâmara pôs os fones de ouvido e deu play na primeira música que apareceu no seu celular.
Fechou os olhos com força, apertando as pálpebras até elas doerem.
— Deus! Faça isso parar!
Mas sua oração nunca foi atendida. Aquilo nunca parou. Não até…
Acordou de manhã.
Assim que abriu os olhos, sentiu o cheiro de café fresquinho e pão de forma caseiro assando. Essa se tornaria uma das poucas lembranças boas de sua infância.
Sua mãe estava lhe esperando à mesa.
O pão, recém tirado do forno, estava coberto com um pano.
Ao lado, a garrafa de café e um pote de margarina.
Sua mãe sorriu ao vê-la.
— Que bom que acordou — disse, alegremente.
Estava maquiada, mas os hematomas ao redor de seus olhos ainda estavam visíveis.
A menina permaneceu calada. Tinha uma boa casa; uma boa família; sabia disso.
Tirou uma fatia de pão. Estava quentinho. A margarina derreteu assim que ela a espalhou sobre o pão.
— Está gostoso.
— Que bom! — Os olhos de sua mãe brilhavam, num misto de alegria e lágrimas querendo escorrer.
— Mãe… por que você… por quê não…?
— Por quê não o quê, querida?
— Quanto tempo mais pretende aguentar isso? O papai te bate quase todo dia. Por que não se separa? Por que não denuncia?
Sua mãe deu um sorriso resignado e triste.
Baixou o rosto e serviu um pouco de café numa xícara. Suspirou. Bebeu um gole.
— Seu pai ama a gente. Ama você e ama a mim. Ele não deixa faltar nada em casa. Ele sempre…
— Jeito estranho de demonstrar amor!
A mulher deu de ombros.
— Ele tem o jeito dele. Nem todo mundo demonstra amor da mesma maneira, filha. O mundo… as pessoas são mais complexas e difíceis de entender do que parecem. Seu pai nos ama. Ele só não é bom em dizer isso.
Tâmara comeu mais um pedaço de pão.
Estava realmente gostoso.
Na semana seguinte, num sábado chuvoso, em mais uma noite de palavrões e gritos, e socos, algo diferente aconteceu.
O silêncio cortou a barulheira violenta sem mais e nem menos. Foi algo repentino. Num segundo, sua mãe estava gritando, no outro, não estava mais.
Tâmara achou aquilo um tanto estranho. Levantou-se de sua cama, abriu a porta, e viu seu pai, tão bêbado que mal conseguia se manter de pé, e cambaleava para os lados.
Ele a olhou como se ela fosse um fantasma. Os olhos arregalados. A boca aberta.
A garrafa de cachaça pela metade em cima da mesa.
E no chão, sua mãe. Estava caída, desacordada, com um ferimento na cabeça que sangrava.
Tâmara correu até ela. Viu que não estava respirando. Tentou ouvir o coração no peito, mas não havia mais som de batidas.
A garota ficou um tanto confusa. Ela não queria chorar, mas sabia que deveria. Sua mãe era a única pessoa por quem nutria algum respeito. Alguma simpatia.
O resto do mundo era todo cinzento, sem cor e sem cheiro.
Matá-la daquele jeito foi como uma agressão pessoal a ela mesma. Feriu seu orgulho.
Um dia, sonhara em levar sua mãe para um lugar bonito, cheio de passarinhos e flores, com música boa e comida gostosa, e o principal: longe dos punhos daquele homem.
Mas agora ela entendia. Enfim ela estava livre. O presente finalmente foi dado.
— Vim cantar-te a canção do mundo, mas estás de ouvidos fechados. — Tâmara se lembrou de um poema que leu há algum tempo. Cecília Meireles, talvez.
O homem parado ao seu lado pigarreou e rosnou feito um porco.
— O que está murmurando aí, menina? Aposto que vai virar uma puta igual a ela! — Ele teve que segurar o vômito que emergiu até a garganta; e então o engoliu de volta.
— Ela está morta — respondeu Tâmara.
— Tá nada! Daqui a pouco ela levanta pra fazer o café. Humpf!
Ele se inclinou sobre a mesa para pegar a garrafa de cachaça.
Mas Tâmara foi mais rápida que ele e pegou a garrafa primeiro. Bateu ela contra a quina da mesa, quebrando-a. O líquido amargo se espalhou pelo chão, com inúmeros pedacinhos brilhantes de vidro.
Tâmara ficou segurando a metade da garrafa, com as pontas afiadas do vidro na extremidade oposta.
— Você libertou ela! — Tâmara riu. — Ela tinha razão! Você realmente a amava! Finalmente demonstrou algum amor!
— O que está dizendo, sua vagab… urg!
Parou de falar devido a dor lancinante em sua barriga. Era como a mordida de um animal que lhe devorava as entranhas.
Tâmara havia enfiado a garrafa quebrada nele, como uma arma branca. E afundou. O sangue quente banhou suas mão.
— E agora — continuou — vou libertar você também! Vá chorar no Inferno, meu pai! Talvez o demônio te acompanhe na bebida!
Apertou aquela garrafa quebrada contra o abdome do homem a ponto de enfiá-la totalmente, e continuou até suas próprias mãos afundarem nas vísceras dele, e ela sentir o toque da gordura e da carne, e a maciez dos intestinos.
O homem caiu de joelhos antes de bater o rosto no chão.
Tâmara ficou um tempo olhando para ele. Era como se admirasse o que tinha feito. Pensou que aquele sentimento deve ser exatamente o sentimento que os artistas sentem após terminar uma obra de arte. Era como Van Gogh admirando a Noite Estrelada após pintá-la, ou talvez como Fernando Pessoa depois de escrever mais um poema genial.
— Vereis, talvez, como é suave a sorte daqueles que deixaram de sofrer — disse ela, contemplativa.
Tâmara afastou as memórias da cabeça. Elas eram como assombrações sussurrando da escuridão, tentando mexer com sua sanidade.
Seu pai, sua mãe… depois daquilo ela se envolveu com algumas pessoas de péssima influência. Foi quando começou a namorar o Roger e, dessa vez, as agressões eram dirigidas a ela.
Tudo o que conheceu, durante toda a sua vida, foram as agressões.
Tâmara cresceu acreditando que a violência era uma forma saudável de amor.
Seu coração estava necrosado. Apodrecido, sangrava lentamente.
Foi por isso que quando Renato a defendeu, algo mudou dentro dela. Pela primeira vez, ela conheceu outra forma de amor.
Tâmara suspirou e se concentrou na estrada.
Escondido no meio de todas aquelas sacas de soja na carroceria da carreta, havia alguns pacotes com uma carga diferente. Notas de cem e de duzentos. Algumas manchadas de sangue, é verdade, mas nada que um pano úmido e um pouco de atenção não resolvesse.
Também havia as armas que ela tomou como saque, afinal, os mortos não precisavam atirar. Dois fuzis, uma metralhadora, duas espingardas calibre doze e algumas pistolas.
Tinha sido um ótimo dia. Não é isso que aqueles garotos do colégio, viciados em RPG, chamam de farm?Ou seria loot? Ela não era boa com esses termos.
Nesse momento, estava indo para uma propriedade em especial, que ficava numa região de chácaras na periferia da cidade. Um lugar chamado Cinturão Verde.
Era lá que ficava a base do grupo de Kath. Ela conheceu o lugar há um tempo.
Kath, é claro, mentiu sobre quase tudo. Queria usar Tâmara para obter informações sobre o Renato. Porém, Tâmara também mentiu o suficiente e à sua maneira.
O objetivo dela era obter mais informações sobre o mundo que a cercava, e também mais recursos.
Agora que Andrei e Kath estavam mortos, o lugar estva abandonado, e Tâmara era a única que conhecia a localização.
Seria um desperdício deixá-lo abandonado.
Lá, ela teria acesso a toda a tecnologia que precisava.
Assim que chegou no local, acessou seu celular e, colocando sua própria digital, fez o portal se abrir.
As digitais dela não estavam cadastrados, é claro. Mas Tâmara deu um jeito.
No Japão, quando os pedaços de Kath caíram do céu como chuva, junto dos escombros do prédio, Tâmara encontrou um pequeno dedo que guardou no bolso.
O resto foi fácil.
Finalmente tinha chegado a hora de pôr a parte principal do plano em prática.
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