— O quê?! — assustou-se o senhor. — Fui eu quem salvou sua vida — defendeu-se com sua voz rouca. — Sou o médico da família Cammary há três gerações. Jamais tentaria contra a vida do Rei, jamais!

    Todos ficaram surpresos com a acusação. Os guardas acataram a ordem e chegaram a avançar no idoso, mas Charlie os impediu levantando sua mão esquerda antes que pudessem prosseguir.

    — Três gerações, é…? — observou o detetive, ainda com a mão para cima. — E como chama-se o experiente doutor?

    — Me chamo Lehandro Arnaud.

    — E onde o bandido do doutor Lehandro encontrava-se na hora do atentado?! — questionou Charlie, pegando seu chapéu de volta, das mãos de seu pupilo. — Obrigado, Lance.

    — Disponha, Chefe.

    — Eu estava na enfermaria real — respondeu o médico. — Fiquei o tempo todo conversando com o bobo da corte, só paramos quando Clarisse, a camareira, entrou gritando, me chamando para socorrer o Rei.

    Charlie olhou para o rapaz vestido espalhafatosamente na ponta direita da fila, mas decidiu primeiro falar com a camareira na ponta esquerda. Ele se dirigiu até a jovem de avental branco e lhe perguntou:

    — Então, Clarisse, você confirma o que aquele crápula disse?

    — Me chamo Alisse, senhor — corrigiu a moça. — Clarisse é ela. — Apontou para a mulher de cabelos trançados, ao lado.

    — Ah, claro! Bem que desconfiei… — disse Charlie. — Vocês são irmãs?

    — Sim! — responderam as duas, ao mesmo tempo.

    — Sabia! — exclamou ele, estalando os dedos. — Vocês são bem parecidas, por isso confundi-me! Minha intuição nunca falha…

    Charlie teve sua atenção tomada pelo enorme sorriso que o rapaz espalhafatoso exibia em sua face, coberta de pó de arroz e tintas coloridas.

    O detetive caminhou até ele, parou em sua frente e lhe perguntou:

    — Está rindo do quê, palhaço?! Viu algo engraçado?!

    — Peço perdão, senhor, mas rir é o meu trabalho — ironizou ele. — Ou seria fazer rir? — perguntou a si mesmo, olhando para cima. — Eu sempre me confundo haha!

    — Que hilário — retrucou Charlie, de cenho completamente fechado. — Você é muito engraçado, sabia?

    — Obrigado, senhor! E você é muito inteligente, sabia?

    — Qual o seu nome, palhaço? — perguntou o detetive.

    — Sou o bobo da corte, senhor! — respondeu ele em voz alta, batendo continência e abrindo um enorme sorriso.

    — Qual é o nome deste idiota? — perguntou Charlie ao homem de libré, ao lado.

    — Gielson Cristielson! — respondeu prontamente o mordomo.

    — O quê?! Isso não pode ser verdade. Lance! — chamou ele, virando sua cabeça na direção de seu pupilo. — Já pode encerrar o caso. Achamos os culpados! — ironizou, voltando a olhar para o rapaz à sua frente. — Parece que os verdadeiros criminosos aqui são seus pais. Eles devem odiar-lhe muito para darem-lhe este nomezinho desgraçado! Já pensou em processá-los?… Ou será que foi este nome ridículo que garantiu-lhe o emprego de palhaço da corte?!

    O sorriso de Gielson Cristielson fora se desfazendo aos poucos, conforme ouvia as palavras do detetive. Charlie puxou um caderninho do bolso esquerdo de sua calça e estalou os dedos:

    — Lance, poderia emprestar-me uma caneta!

    — Claro, Chefe! — O rapaz abriu imediatamente sua maleta. — Aqui, Chefe!

    Charlie abriu na primeira página e estreou seu caderno novo escrevendo bem grande: “Sempre no meio do caminho tem um boçal!”. Fez questão de ler em voz alta para que todos ouvissem. Em seguida, devolveu o caderno ao bolso da calça e guardou a caneta na parte interna do seu terno; andou até Clarisse e lhe perguntou:

    — Então, senhorita, confirma o que o médico disse?

    — Sim!… Ele diz a verdade. — confirmou ela, um pouco amedrontada.

    — Muito bem… — exclamou o detetive, soltando um leve suspiro. — Quero ver o Rei. Onde ficam seus aposentos? — perguntou ele, olhando para todos.

    — Infelizmente, o senhor não conseguirá falar com ele! — alertou o doutor. — Vossa Majestade não abre os olhos há dois dias. Está inconsciente desde que sobrevivera ao atentado.

    — Lance?!

    — Diga, Chefe!

    — O que foi que pedi?

    — Pediu para ver o Rei, Chefe!

    — Muito bem… então responda-me uma coisa: para ver uma pessoa, você é obrigado a falar com ela?

    — De forma alguma, Chefe! Ver e falar são coisas completamente diferentes.

    — Hmm… então por que este cretino está impedindo-me de ver o Rei?

    — Está bem, está bem! Vamos até os aposentos de Vossa Majestade! — cedeu o senhor de idade, evitando mais humilhações. — me sigam.

    Todos o acompanharam pelos corredores do castelo até a bela porta dourada do quarto real, onde havia dois homens armadurados fazendo a guarda. No entanto, esses nem se deram ao trabalho de perguntar algo ou avisar a Rainha; apenas abriram espaço para o grupo passar.

    Assim como fora dito, o Rei se encontrava desacordado, dormindo profundamente em sua enorme cama. Ao seu lado esquerdo estava a Rainha, sentada, com um livro aberto em mãos.

    — O que estão fazendo aqui? — perguntou ela, interrompendo sua leitura.

    — Relaxe, querida! — respondeu Charlie, contornando o outro lado do leito. — Sei muito bem o que estou fazendo.

    A Rainha cogitou dizer algo sobre a ousadia, mas se conteve. Sabia da fama de Charlie: o detetive excêntrico, porém genial, que nunca deixara de resolver um único caso, não importava a dificuldade. Aquele, em sua visão, era o homem ideal para desvendar este mistério.

    — Então… descobriu algo, senhor Mighnovit? — perguntou ela.

    — Talvez… o que fazia na hora do ocorrido, Vossa Alteza? — questionou o detetive, enquanto se sentava na cama e olhava atentamente para as bandagens no pescoço do Rei.

    — Está desconfiando de mim? — ergueu uma de suas sobrancelhas. — Esqueceu quem o contra…

    — Como ousas falar de tal maneira com Vossa Majestade?! — brandou o cavaleiro real, sacando sua espada e se dirigindo pelas costas do distraído detetive.

    — Vladimir! — gritou a Rainha. — Guarde essa espada imediatamente, retorne ao grupo e não me interrompa nunca mais, entendeu?!

    O cavaleiro embainhou sua lâmina novamente, se ajoelhou em direção à Majestade e com a mão no peito disse:

    — Mil perdões…

    — Tá bom, tá bom! Não é para tanto! Saiba que não levo nada para o coração — interrompeu Charlie, acenando para trás. — Se não importa-se, Vlad, temos assuntos mais importantes para tratar aqui! — olhou para a Rainha. — Então, Vossa Alteza, você ainda não respondeu minha pergunta.

    — Fiquei o dia todo em meus aposentos escolhendo tecidos para alguns vestidos. Pode confirmar com Dominick, nosso organizador real. Ele esteve o tempo todo comigo.

    — Lance?

    — Diga, Chefe!

    — O que um “organizador real” faz?

    — Ele organiza as coisas, Chefe!

    — Hmm… você é sempre tão didático, Lance, parabéns!

    — Obrigado, Chefe!

    Após a explicação, Charlie se virou em direção ao grupo e perguntou:

    — Qual de vocês é o organizador que organiza?

    — Sou eu! — respondeu um homem bem trajado, dando um passo à frente. — E, sim! Vossa Majestade e eu ficamos o tempo todo escolhendo…

    — Que esquisito!… — interrompeu Charlie, coçando o pescoço.

    — O que tem de esquisito? — perguntou a Rainha, com as sobrancelhas franzidas.

    — É que… para mim soa um pouco estranho colocar a pessoa que ficou o tempo todo perto de você como um dos suspeitos… — observou o detetive, olhando para o alto. — Mas, enfim! Doutor, poderia contar-me como foi o ferimento? — indagou ele, mudando de assunto.

    — Claro! — respondeu Lehandro, dando um passo à frente. — Foi um corte razoavelmente profundo no pescoço. Por sorte não acertou a artéria carótida. Talvez porque não era uma lâmina convencional. Acredito que tenha sido um abridor de latas ou algo semelhante. Além…

    — Não sabia que você também era detetive! — interrompeu Charlie, se levantando e caminhando até o senhor. — Então você é tão bom que até já descobriu qual foi a arma do crime?… Não entendo qual o meu papel aqui se você já descobriu tudo! — deixou seu rosto bem próximo. — Está querendo roubar meu emprego? Acha-se melhor que eu?!

    — De forma alguma — defendeu-se o médico. — Eu só fiz alguns testes em carne de porco, usando diversos tipos de objetos cortantes. Depois os comparei, e o corte que mais se assemelhava ao ferimento do Rei, era justamente o de um abridor de latas. Não foi algo tão difícil…

    — Até porque não há nenhuma diferença entre carne suína e humana… — satirizou Charlie. — Diga-me, doutor… descobriu algo a mais com sua genialidade desbalanceada que possa compartilhar com este inepto investigador, cuja serventia já não parece ter mais sentido?

    — Sim!  — respondeu Lehandro, ignorando os deboches e lamúrias do detetive. — Percebi que o Rei estava com a língua um pouco amarelada, então resolvi fazer alguns testes com sua saliva; com isso, acabei descobrindo que Vossa Majestade havia sido envenenado um pouco antes da tentativa de assassinato.

    A nova informação pegou Charlie de surpresa, o fazendo dar um pequeno passo para trás. Ele ficou um tempo coçando o queixo, pensativo; mas logo retomou o interrogatório:

    — Qual foi o horário do atentado?

    — Por volta das duas da tarde!

    — Sabe quais são os efeitos do veneno?

    — Dependendo da dosagem, a substância utilizada causa vertigem, fadiga, fraqueza e falta de alguns sentidos.

    — E você saberia informar-me onde alguém poderia encontrar tal substância? — questionou o detetive, erguendo uma das sobrancelhas, desconfiado.

    — Sei onde quer chegar, senhor! — rebateu Lehandro. — E já o informo que o veneno fora retirado da enfermaria real. Eu verifiquei cada frasco em cada prateleira depois que descobri sobre o envenenamento, e estava faltando justamente o que causava os efeitos que mencionei. Alguém certamente entrou lá sem que eu percebesse…

    — Relaxa! Ninguém aqui está acusando-te de nada — retrucou Charlie. — …Só acho um pouco estranho alguém, além de você, saber exatamente do que tratava-se o conteúdo do tal frasco… — divagou ele.

    — Deixo tudo anotado nos rótulos para não me confundir. — explicou o senhor. — Qualquer um que o lesse, saberia dessas informações.

    — Por que tudo que sai da sua boca é tão conveniente?! — irritou-se o detetive, encurtando novamente a distância e o encarando friamente. — Por que não confessa logo que foi você quem tentou contra a vida do Rei, cretino vigarista!?

    — Olha aqui, senhor! — Lehandro respirou fundo. — Estou cooperando com o máximo que posso. Já contei tudo o que sei; descobri a arma do crime; lhe informei sobre o envenenamento; há duas pessoas que confirmam onde eu estava; salvei a vida do Rei após o atentado e, mesmo assim, mesmo assim! Você continua me acusando sem prova alguma! — Fechou o cenho enrugado e o encarou de volta. — Você tem algo pessoal contra mim, ou só está agindo feito uma criança mimada porque teve seu ego ferido ao perceber que não é o homem mais inteligente do recinto, que dirá do leste inteiro!?

    Charlie foi pego de surpresa pelas palavras do doutor e não viu outra saída a não ser jogar sua carta na manga:

    — E você é um drogado!

     — Retire o que disse imediatamente! — ordenou o médico, exaltado. — O senhor está ferindo minha honra!

    — Honra? — retrucou o detetive, com o tom de voz ainda mais alto. — Que honra tem um senhor da sua idade chapando-se de substâncias ilícitas!?

    — Senhores! Senhores! — gritou a Rainha, interrompendo a discussão. — Já chega! — olhou para Charlie. — Senhor Mighnovit, que absurdo! O que o leva a acusar o médico real de tais práticas?

    — Perdão, Alteza, mas conheço um viciado quando vejo um. — respondeu ele. — Seja pela cor da esclera, o ritmo da respiração ou simplesmente pelo hálito de cachorro! E esses, senhora, não são nada confiáveis — balançou a cabeça —, nadinha!

    Lehandro se afastou abruptamente para trás, tapando a boca. Olhou assustado para a Rainha e clamou:

    — Vossa Majestade, mil perdões! Juro que são apenas algumas ervas medicinais que testo — justificou ele, tremendo. — Por não ter cobaias, sou obrigado a testá-las eu mesmo. Juro que é apenas isso!

    Enquanto o doutor se resolvia com a Rainha, Charlie deu uma breve caminhada, se afastando do grupo. Voltou a pegar a caneta e seu caderno de anotações, abriu na segunda página e escreveu: “O que deve ser alterado?”. Em seguida, os guardou e retornou.

    — Chega! Chega! — disse ele em voz alta, encerrando a discussão da Rainha com Lehandro. — Vamos mudar um pouco a rota… Quem preparou o almoço do Rei dois dias atrás?

    Um homem pequeno deu um passo tímido à frente.

    — E-eu… senhor!

    — Qual seu nome, cozinheiro? — perguntou o detetive, se aproximando dele.

    — Eu, eu sou o chefe de cozinha, senhor — corrigiu nervosamente o homenzinho. — A cozinheira é Cecília.

    — Lance?

    — Diga, Chefe!

    — O que perguntei para este ser?

    — Perguntou qual seria o nome dele, Chefe!

    — Então por que este idiota está dando-me uma aula sobre a hierarquia da cozinha?!

    — Desculpe, senhor! Me chamo Romério… — respondeu rápido. — É que já contei tudo o que sei para a Rainha e Vladimir. — explicou-se ansiosamente, de ombros trêmulos. — Juro que não coloquei nada de ruim na comida do Rei!…

    — Calma, calma, relaxa! — tranquilizou-o Charlie. — Olhe para mim. Sei que Vlad é um troglodita e deve ter ameaçado-te durante as perguntas, mas comigo é diferente. Não precisa ter medo. Vamos, leve-nos até a cozinha. Preciso verificar uma coisa.

    Todo o grupo, inclusive a Rainha, foi junto; a pedido do detetive. Mas esse disse que queria falar a sós com Romério. Deixou todos aguardando na sala de jantar, que era ligada à cozinha por uma porta, e foi junto de Lance fazer o interrogatório.

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