Todos estavam reunidos em volta da cama do doutor, que permanecia inconsciente. Ficaram um tempo quietos, olhando preocupados para o rosto enrugado do senhor. Não demorou muito para Charlie quebrar o silêncio com um de seus comentários:

    — O assassino quase conseguiu o que queria… — disse ele, esfregando a mão no pescoço. — O infeliz percebeu que ter alguém com 901 de QI, como eu, causaria-lhe problemas…

    — Deve ter visto o teste de cabeça para baixo. — comentou baixinho o bobo da corte, o provocando novamente.

    — Ainda assim seria maior que o seu e de toda a sua família juntos! — respondeu Charlie, aumentando o tom de voz.

    — Ao menos eu e minha família não seríamos burros o suficiente para beber um chá preparado por um suspeito de assassinato! — devolveu ele, com um enorme sorriso.

    — Então guardou isso durante todo esse tempo, não vendo a hora de pôr para fora?! — retrucou Charlie, se aproximando. — Como você é patético! Isso só comprova o que disse de você e sua família… — o olhou no fundo dos olhos. — Passou pela sua cabeça que; se um detetive morre envenenado após beber um chá preparado por um suspeito, esse suspeito já deixa de ser só “suspeito”?!

    Gielson outra vez retirou seu sorriso enquanto via o detetive  lhe dando as costas com desprezo.

    — Como esse boçal cortou o clima; não farei mais mistérios… — menosprezou Charlie, enquanto caminhava até uma cadeira próxima à mesa de cabeceira.

    Ele a arrastou, sentou-se ao contrário e apoiou seus braços por cima do encosto do móvel, então apontou para o homem na frente do grupo e proferiu:

    — O assassino é Vlad, o cavaleiro real!

    — Vladimir! Meu nome é Vladimir Constyne! — corrigiu ele. — E não adianta vir com isso de novo, todos já vimos esse seu joguinho!

    — Joguinho, é?! Pois então responda-me uma coisa, Vlad: Onde o responsável pela segurança do Rei estava, quando ele mais precisou? — iniciou Charlie o interrogatório.

    — Fazendo uma ronda pelos corredores do castelo…

    — Isso não seria trabalho para guardas menores?! Por que o guarda pessoal do Rei estaria “fazendo rondas”?

    — E-eu, você está, você sabe…

    — Sem gaguejar! Fale a verdade, assassino! Vamos, confesse!!

    — Você sabe muito bem que o reino está com problemas financeiros! Não há mais guardas fazendo patrulhas, foi por isso que…

    — Se ficou o tempo todo pelos corredores, alguém deve tê-lo visto, certo? Alguém aí pode confirmar?

    Charlie se levantou do assento e apontou para os homens armadurados.

    — Vocês, os dois guardas! Viram Vladimir fazendo essa tal patrulha?

    Todos voltaram seus olhares para eles, que apenas negaram com a cabeça, balançando-a de forma sincronizada.

    — Eles nem sequer estavam aqui! — exaltou-se o cavaleiro. — Fui eu quem convocou esses dois imbecis para ajudar na proteção do castelo depois do atentado. É graças a mim que estão aqui! — apontou para Charlie. — Eu já entendi o seu jogo… Está me acusando sem provas porque tentei te matar a pedido da Rainha, mas isso…

    — Primeiro — interrompeu Charlie —, já mencionei que não levo nada para o coração; segundo, quem disse que não tenho provas?! Acha mesmo que um detetive do meu calibre acusaria alguém assim, sem ter alguma prova concreta?! — retrucou ele, sentando-se novamente. — E terceiro, você poderia mostrar-nos o que tem aí no bolso esquerdo da sua calça?

    Todos voltaram sua atenção ao cavaleiro; que, apesar de receoso, seguiu o pedido do detetive. Assim que pôs a mão no bolso, sua expressão mudou completamente. Ele arregalou os olhos e prendeu a respiração, espantado.

    — Sem fingimentos, cretino! Mostre logo o que tem aí, ou os guardas terão de ajudar-te. — ameaçou Charlie, dando um sinal com a mão para os dois soldados; que ficaram em alerta.

    Todos se assustaram ao ver o abridor de latas visivelmente manchado de sangue que Vladimir retirara de seu bolso.

    — E-eu… eu não sei como isso veio parar aqui. Eu juro que…

    — Poupe-nos de suas desculpas clichês, meliante! — interrompeu Charlie, puxando a aba de sua cartola para sua testa. — Esse objeto espetou-me quando você estava tentando estrangular-me, e foi naquele exato momento que entendi tudo! — revelou ele.

    — …Lance?

    — Diga, Chefe!

    — Já deduzi todo o mistério. Quer ouvir?

    — Por favor, Chefe!

    Charlie tossiu duas vezes para limpar a garganta, respirou fundo e declarou:

    — Vi nos documentos do tesoureiro que, exatamente quatro dias atrás, completaram-se seis meses que Vladimir não recebe seu salário. Ele certamente tentou falar com o Rei, mas não obteve resultado. E esse, meus amigos, foi o estopim para ele tentar contra a vida de Sua Majestade! O canalha pegou o veneno na enfermaria real e esperou o momento certo para usá-lo; que foi quando Romério distraiu-se com o bule de chá. Com o Rei fraco o suficiente para não conseguir emitir algum som, ele cometeu o terrível atentado…

    O grupo não sabia se olhava para o detetive ou para o rosto espantado do cavaleiro. Charlie respirou fundo outra vez e prosseguiu:

    — O patife já esperava ser o principal suspeito; pois não estaria protegendo o Rei na hora. Por isso teve a sacada de usar um abridor de latas; sabendo que, se o doutor descobrisse a arma do crime, as suspeitas desviariam-se para o chefe de cozinha. Achou que estava dois passos à frente ao guardar o objeto manchado de sangue, pois, caso a Rainha chamasse um investigador, ele poderia usá-lo para incriminar outra pessoa… O coitado só não imaginou que o detetive fosse ser justo este que vos fala!

    — Sublime, Chefe! Sublime!! — aclamou Lance, aplaudindo.

    — Isso não faz nenhum sentido!! — gritou Vladimir em desespero. — Por que alguém esperaria o momento exato de distração do cozinheiro se bastava passar a substância em algo como um lenço e pressionar contra o rosto de Vossa Majestade?! É ilógico! E sobre…

    — Está tentando provar sua inocência ou só comentando alguns dos planos que pensou? — interrompeu novamente Charlie. — Vai fingir que não lembra da coloração da língua do Rei?! Ele foi envenenado pelo paladar, meu querido Vlad! Agora chega de desculpas pífias. — voltou a apontar para o cavaleiro e gritou:

    — Guardas!!

    Os dois, de prontidão, avançaram simultaneamente em Vladimir, o imobilizando e o levando para fora do quarto.

    — Me soltem, bastardos! Vocês nem deveriam estar aqui!! — gritava o cavaleiro, sendo arrastado. — Majestade! Majestade! Por favor, Majestade! Majestadeeee…

    A Rainha não respondeu a nenhuma das súplicas; ficou apenas estática, de cabeça baixa e mãos no rosto.

    Charlie outra vez pegou seu caderno e caneta, abriu na quinta página e escreveu: “Fim do caminho. Caso encerrado!”. Depois devolveu a caneta a Lance e retornou o caderno para o bolso esquerdo de sua calça. Em seguida, se dirigiu até o abridor de latas que Vladimir deixara cair.

    — Peçam para o doutor, assim que acordar, tentar confirmar se é o sangue do Rei. Sei que é óbvio, mas é só para não ficar nenhuma dúvida. — disse ele, colocando o objeto na mesa.

    “Uau”, “nossa”, “magnânimo”, “incrível” foram algumas das palavras que saíram da boca de quase todos da plateia, enquanto aplaudiam maravilhados.

    — Chega! Chega! Não preciso de aplausos — disse humildemente o detetive —; já sei que sou maravilhoso! O que preciso é do meu pagamento — olhou para a Majestade. — Então, Rainha Roxanne, como vai ser?!

    — Você aceita um conjunto de louças Porcelana Cristal?

    — Não! Mas aceito joias; são mais resistentes! Já tive problemas demais com coisas frágeis por hoje…

    — Tudo bem, irei buscar. Espere aqui — disse ela. — E vocês! — se voltou para o grupo. — Podem voltar aos seus trabalhos. Vamos! Vamos!

    Após todos saírem, Charlie se deitou ao lado do médico. Colocou seu chapéu no rosto, as mãos no peito com os dedos entrelaçados e esticou as pernas naquela longa e macia cama. O pupilo se acomodou no antigo assento do detetive. E assim, permaneceram em silêncio por um tempo…

    — Lance?

    — Diga, Chefe! 

    — Você poderia tapar o nariz do doutor rapidamente? Ele está fazendo alguns grunhidos esquisitos, está incomodando-me.

    — Claro, Chefe!

    O rapaz se levantou e fez o que lhe fora pedido. 

    — Melhorou, Chefe?

    — Bem melhor! Obrigado, Lance!

    — Disponha, Chefe!

    Após isso, ele retornou para sua cadeira e ficaram mais alguns minutos em silêncio…

    — Lance?

    — Diga, Chefe!

    — Acho que fiz merda!

    — Como assim, Chefe?!

    — Vladimir não é o culpado!

    — Você sempre diz isso depois da resolução de um caso, Chefe. Relaxa!

    — Não! Dessa vez tenho quase completa certeza. Meus instintos de detetive fora da curva estão tentando alertar-me de algo.

    — Sua dedução foi cirúrgica, Chefe! Não tem como ter sido de outra maneira. Todas as peças foram devidamente encaixadas!

    — Onde o Rei está neste exato momento?

    — Em seus aposentos, Chefe! Por quê?

    — Não acha estranho ele ter sobrevivido ao ataque?

    — Vai ver o cavaleiro estava com pressa para não ser pego…

    — Duvido muito!… Vladimir possui duas qualidades que o assassino não tem: força, que você mesmo pôde conferir quando ele, sozinho, conseguiu derrubar nós dois e o tesoureiro juntos; e experiência, pois acredito que um cavaleiro real possua habilidade suficiente para matar alguém furtivamente, sem precisar envenenar antes. Minha nova hipótese é que o assassino tem de ser fraco o bastante para precisar dopar o Rei e, inexperiente o suficiente, para achar que só aquele corte bastaria para matá-lo.

    — Nossa! Incrível, Chefe! Mas… e a arma do crime no bolso dele?

    — Poderia emprestar-me de novo sua caneta?

    — Claro, Chefe! 

    Lance apalpou onde a guardara, mas não a encontrou. Então ficou de pé e continuou checando outros bolsos, porém, ainda sem resultados. Até que Charlie a ergueu no ar.

    — Procurando isso?

    — Eu… é… mas, como?!

    Charlie se sentou na beira da cama e retornou o objeto ao bolso de seu terno.

    — Peguei de você quando veio tapar o nariz do doutor! Não foi tão difícil. Assim como não foi tão difícil para o assassino colocar o abridor de latas no bolso de Vladimir quando estávamos todos amontoados na sala do tesoureiro, ou até antes.

    — Mas… quem, Chefe?! Quem poderia…

    — Talvez o mordomo simpático! O qual foi o único que não interroguei.

    — Mas, Chefe! Não seria bastante clichê se fosse ele? Pois sempre é o mordomo! Então seria muito óbvio, não acha?!

    — Sim, claro! Muito óbvio! Nunca é o mais óbvio! nunca…

    Charlie voltou a se deitar, ainda pensativo. E assim os dois passaram mais um breve momento em silêncio…

    — Lance?

    — Diga, Chefe!

    — Vamos atrás daquele mordomo!

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