Capítulo 3 - De que adianta?
As névoas dançavam em volta das pedras nuas esverdeadas pelo bolor – restos de estruturas destelhadas e marcadas por anos de abandono – e rastejavam pelo chão, cobrindo os pés de todos. Sons eram amplificados pelo clima úmido e sem vento. O que fazia uma voz parecer mais alta do que o normal.
— Tá bom, então escuta essa: dois pais e dois filhos foram pescar. Cada um pescou um peixe, e no fim do dia voltaram para casa com três. Como? — Leandro perguntou. Um sorriso convencido marcava seu rosto.
Jonas balançou a cabeça, negando saber a resposta. O que fez com que o sorriso de Leandro aumentasse.
— Eram filho, pai e avô — Erik respondeu secamente.
O sorriso de Leandro desapareceu.
— Como sabia? — questionou ele.
Eric deu de ombros e continuou a andar. Leandro, dobrou os lábios, deu-lhe um olhar desafiador e voltou a falar.
— Certo, agora me responde isso…
Jonas suspirou. Fora assim o dia inteiro, desde que eles começaram a vagar pelas ruínas próximas a Beuha atrás de ratos marrons, uma peste bem numerosa na região. Numerosa o suficiente para que a guilda pagasse uma moeda de cobre por animal. Um serviço feito por aventureiros novatos, como eles bem eram.
Cada um dos três carregava um porrete em uma mão e um saco cheio de ratos mortos sobre os ombros. O que poderia ser muitos, se, os ratos fossem do mesmo tamanho dos ratos de seu mundo. Aqueles, no entanto, possuíam o tamanho de um coelho adulto, e tinham caninos proeminentes que saiam do focinho pontudo.
A névoa os escondia, de forma que Jonas e os outros precisavam tomar cuidado com seus pés, pois poderiam ser atacados sem ver as criaturas se aproximando. Mas Jonas podia ouvi-las e encontrá-las. Ele caminhava na frente do grupo, seguindo em direção aos guinchados agudos que as pestes faziam.
Jonas também levava a espada que trouxeram da torre na noite em que foram atacados por aquela criatura. A lembrança fazia seu estômago se remexer.
“Túlio e Orlando”, pensou com pesar. Não podiam fazer nada quanto a isso, no entanto, apenas continuar caminhando.
Caminhavam, matavam ratos, então voltavam a caminhar para matar mais ratos. Era uma tarefa monótona, o que fazia com que eles fossem obrigados a se entreter com qualquer coisa até se cansarem. Jonas estava cansado, Eric, aparentemente também. Leandro, no entanto, ainda mostrava disposição para charadas. Jonas invejava isso. Desejava apenas ir logo para a hospedaria e deitar-se por sobre a cama de palha, mas precisavam garantir todo o dinheiro que pudessem todos os dias, além de comprar medicamentos para Graça que permanecia em um estado estável na cama da hospedaria. Então os três se esforçaram para continuar até que o céu começasse a escurecer.
“Aventureiros”, pensou. Uma onda de memórias atingiu sua mente. Franquias de GAMES, filmes, séries e desenhos com temática de fantasia e aventura, onde esses desbravadores eram a peça principal da história. Nenhum deles caçou ratos até onde Jonas se lembrava.
— O que é uma grande bola preta cercada por um mar colorido? — Leandro perguntou.
— Um metaleiro obeso em uma parada gay — respondeu Erik, o que evocou um ataque de riso em Jonas e Leandro.
— Caralho, como tu sabia dessa? — perguntou Leandro.
— Eu assisti aquela live — afirmou Erick, sem conseguir conter o riso também.
As risadas reverberaram pelas ruínas, gerando ecos que voltavam constantemente aos ouvidos de Jonas. Quando o último resquício do som cessou, ele conseguiu ouvir apenas os passos no piso molhado.
— Acham que não é melhor a gente voltar? Já temos bastante — sugeriu Leandro.
De repente Jonas se sentiu cansado.
— Está escuro também — observou, olhando para as nuvens que ocupavam toda a vista do céu.
Erik suspirou.
— Tudo bem — disse. — Mas vamos pegar os que encontrarmos pelo caminho.
Jonas assentiu. Haviam caminhado o dia inteiro por aquelas ruínas. Os restos da grande cidade que um dia Beuha pertencera. Dizia-se que aquele amontoado se estendia pelo dobro da área da cidade, até findar-se nos antigos muros fendidos. Árvores, vinhas e arbustos cresciam por entre as rachaduras das pedras lisas em que as construções eram construídas. Tornando o ambiente ainda mais desolado. Ainda assim, era considerado mais seguro do que a floresta de Sevyen, que cercava tudo.
Jonas imaginava como a cidade deveria parecer nos dias de seu resplendor. Com toda a certeza nenhum de seus habitantes imaginou que tamanha beleza seria reduzida àquelas ruínas. Ele se surpreendeu com seus próprios pensamentos, percebendo que tentava relacionar a paisagem destruída a sua volta consigo mesmo.
“Ela era bonita, sim…” pensou, “Alegre e divertida. A achava demais para mim…”, e ela também pensou isso, percebeu.
Em seu peito ele sentiu um aperto familiar. Não importava o quanto tentasse, nunca se via livre daquilo. Daquele sentimento de perda. Do sentimento de fracasso.
Algo se aproximava.
Seus ouvidos perceberam outra coisa além dos próprios passos e dos de seus dois companheiros. Um pequeno raspar de garras nas pedras, percebeu. Ouviu um guinchado parecido com o de um apito. “Ratos”, percebeu. No entanto, era esquisito a Jonas que o som produzisse tantos ecos.
— Ali — disse, apontando com o dedo.
Uma corcunda peluda surgiu em meio a neblina, correndo em sua direção. Ele golpeou com o porrete, acertando o chão com um banquete pesado.
A criatura havia mudado de direção.
— É meu! — gritou Leandro, afundando seu braço e fazendo o porrete desaparecer em meio a neblina.
Outro som seco ecoou na pedra quando a arma errou o alvo. E a criatura pulou por cima de seu braço. Leandro caiu no chão devido a surpresa de seu movimento inesperado. Jonas achou que ela fosse escapar até que Eric a acertasse no ar com o bater de sua arma.
O rato soltou um ganido fino quando caiu no chão, e Erik o golpeou novamente repetidas vezes, até que ela não mais se movesse.
— É, acho que já dá pra ir — ele disse.
Mas Jonas não concordava. Ainda ouvia o som ecoante do raspar de garras vindos da mesma direção em que o rato viera. Em pouco tempo mais corcundas surgiram em meio a neblina. Podia-se contá-las as dezenas.
Jonas girou seu braço, acertando duas de uma vez. A maioria, no entanto, passou por eles como um rio sobre rochas.
— Acertei uma, galera — Declarou Leandro, levantando o rato morto pelo rabo. Um dos olhos vermelhos havia saltado para fora e a boca pingava uma secreção.
Erik o pediu para que guardasse aquilo.
Jonas prestou atenção em por onde os ratos vieram. Ainda ouvia outro som vindo naquela direção. Não o pequeno som que os ratos faziam, mas algo mais pesado e barulhento. Algo maior.
— Vocês não acharam isso estra… — Eric foi interrompido quando um rugido ressoou em meio às ruínas.
Uma silhueta surgiu na neblina longínqua e então a forma de um grande urso. Quando se revelou, os três deram passos para trás, receosos, deixando cair os sacos.
Manchas brancas, em volta dos olhos, das orelhas, e dos braços e um pelo negro cobrindo completamente seu corpo. Parecia um panda invertido. A criatura parou em frente, se pondo em pé sobre as duas patas traseiras, abriu os braços e rugiu. Os grandes caninos brancos abriram-se de cima para baixo. “Caberia uma bola de basquete ali”, Jonas percebeu.
O urso avançou contra eles.
— Vamos correr — Leandro gritou.
Mas nenhum deles se moveu. O medo parecia congelar as pernas de Jonas. Até que ele se lembrou da torre novamente, daquela sensação de impotência, e de como detestara aquilo.
Soltou de lado o porrete e puxou a espada. Por quê fugiria? Não fugira na torre. Não fugira no pântano, não fugira sequer na quadra quando um pedaço quente de metal tomou sua vida. Por quê fugiria naquele momento?
“Para continuar vivo”, algo nele respondeu de imediato. Para viver teria de fugir. No entanto, suas pernas não o fizeram.
“De que adianta?”, outra voz perguntou em sua mente.
Jonas avançou contra o urso. O braço automaticamente assumindo uma postura estranha ao corpo enquanto se movimentava.
Os dois braços do urso desceram sobre ele. Os pés de Jonas saltaram para o lado, escapando do ataque, e seu corpo continuou se movendo. O braço da espada moveu-se horizontalmente, desferindo um corte que partiu a orelha da criatura em duas partes.
O urso urrou e girou o corpo agachado na direção de Jonas, que balançou sua espada novamente, acertando mais uma vez a lateral da cabeça do monstro. A espada cortou a pele, mas não atravessou os ossos. O urso moveu suas garras. Jonas soltou a espada e deu um grande salto para trás, evitando o abraço da criatura.
Pisou em falso numa pedra e se desequilibrou, caindo de costas.
O urso se pôs em pé e abriu os braços.
“Tudo bem… ”, pensou, “Não iria ser melhor do que isso mesmo”, ao menos ele havia conseguido um pouco de tempo para os outros conseguirem escapar. Se consolou nisso.
Fechou os olhos e esperou pelo impacto. Que não veio. Ao invés disso, ouviu o som do grunhido de dor do monstro. Abriu os olhos vendo Leandro fincar uma espada no flanco direito da criatura, que tinha metade de um dos braços pendurada no restante, como um tronco cortado por um machado.
— Corre! Sai daí Jonas! — Leandro gritou ajoelhado no chão a alguns metros do urso.
A criatura virou-se, batendo com as costas da pata que ainda jazia inteira em Leandro. O garoto foi arremessado e rolou por alguns metros no chão devido a força do impacto.
O urso rugiu mais uma vez até que algo o atingiu. Três flechas acertaram sua cabeça. Uma das pontas atravessou o olho. Então uma chama se espalhou por suas costas, chamuscado o pelo negro, e o urso tombou no chão.
Jonas ouviu o som de passos ressoarem na pedra úmida, junto a vozes. Silhuetas surgiram na neblina já escurecida pelo fim da tarde.
— Acertei-o — vibrou uma voz feminina e jovial.
— Maldição, Lect! Disse-lhe para não perdê-lo de vista — bradou uma voz grave e incômoda.
— Ele movia-se tão rápido que eu não conseguia ver para onde corria — Outra voz grasnou como um ganso.
— Deixe estar, o encontramos — Disse rapidamente uma quarta voz.
As quatro pessoas se revelaram.
Uma garota de cabelos ruivos, vestida de uma jaqueta de couro e saias de longos babados de diferentes tons de vermelho que iam até seus pés. Segurava um cajado com uma jóia vermelha na ponta, a qual irradiava um brilho carmesim – assim como seus olhos. O segundo era um homem que devia ter dois metros de altura inteiramente revestidos de metal dos pés à cabeça. Levava um grande martelo sobre o ombro e caminhava com passos pesados, como se estivesse esmagando formigas em um jardim.
Outro, magro e de membros finos, levava um arco e usava um chapéu com uma penas na ponta. Algo em seu andar lembrava a Jonas os movimentos de um louva-a-deus.
O último era um homem com roupas de couro e placas de aço nas juntas. Usava um elmo redondo e segurava uma espada com uma incandescente lâmina vermelha.
— Agora, vejo que não somos os únicos a persegui-lo — observou o homem da espada incandescente, olhando para Jonas e os outros.
Jonas então fez um esforço para se reerguer e notou Leandro tentando se pôr em pé também.
Erik continuou caído de joelhos no chão.
— Estão bem enganados se pensam poder roubar nossa presa! — Afirmou o grandalhão, com uma voz metálica.
Ele deu um passo à frente e segurou o martelo com as duas mãos.
— Não tentamos roubar nada — Jonas berrou. — Estávamos caçando ratos e essa coisa nos atacou!
— E porquê não fugiram? Se tem de caçar ratos para sobreviver, de certo que não pensariam poder vencer uma besta tão grande — O homem do chapéu de penas questionou.
— Nós… — Jonas parou de falar percebendo que se envergonhava em dizer o verdadeiro motivo.
— Sim, por que? — A garota reforçou a pergunta do arqueiro.
— Porquê não houve tempo — A voz sufocada de Erik ecoou. — A besta já estava sobre nós antes que pudéssemos dizer algo.
Leandro foi até ele e o ajudou a se levantar.
— Talvez fosse melhor que vocês não deixassem uma criatura dessas correr solta por aí, que tal — berrou ele, enquanto passava o braço de Eric ao redor de seu pescoço como apoio.
O grandalhão de armadura soltou uma onda de pragas e estendeu o martelo para trás enquanto assumia uma postura de avanço, quando o homem com a espada incandescente a ergueu horizontalmente, pondo-a entre ambos os grupos. O homem do martelo parou.
— Qual a vossa classificação? — perguntou o da espada.
— Somos legianos — admitiu Jonas.
O homem fincou a espada no chão, levou as mãos a cabeça e tirou o elmo, revelando um rosto jovial e ao mesmo tempo maduro.
— Me chamo Leovard, líder do “Plumas negras”. Somos centos, todos nós. Com exceção da Morda — disse ele com um aceno para a garota, que revirou os olhos.
Jonas piscou os olhos. A guilda, como todas as organizações nos jogos e histórias tinham rankings para aventureiros. “S, A, B, C”, “Diamante, Ouro, Ruby e ferro”, coisas simples. Naquele mundo, a guilda de aventureiros dividia seus rankings em palavras mais complexas:
Legianos, Deconos, Centos, Tribunus e Legados.
Legianos era a classificação que os novatos recebiam. Novatos como Jonas. Legados, a classificação mais alta, conhecida por ser a elite dos aventureiros, segundo as conversas de bar que Erik ouvira. Poucos se tornaram Legados ao longo de toda a existência da guilda e menos ainda já viram um.
Os Tribunos eram a segunda classificação mais alta. Embora não fossem tão raros quanto os Legados, poucos aventureiros selecionados eram elevados a tal nível, também não sendo fácil de se encontrar. Era dito nas conversas de taberna que existiam em maior quantidade em vilas e cidades com muitos monstros em suas redondezas, e aquelas que disponibilazavam missões perigosas, as quais pagavam mais. O que significava que eles não teriam motivos para permanecer em um simples assentamento como Beuha, com monstros menores e missões pouco lucrativas.
Sendo assim, a terceira classificação mais forte era a mais alta que se podia encontrar em um lugar como aquele. E naquele momento, Jonas e os outros estavam diante de um grupo composto por ela.
— Estamos em uma área próxima da floresta de Sevyen. Então monstros assim podem aparecer a qualquer momento.
— Mesmo assim, deviam tomar cuidado! — disse, tentando impor sua razão. — E se esse bicho matar alguém?
— Se tens medo da morte, não deverias ser um aventureiro — zombou o grandalhão.
“Não tenho… eu tentei quase agora…”
— “Aventureiros de classificação inferior, ao ver uma caça que está além de sua capacidade, devem desistir de imediato”, isso é o que nós, que somos senhores de muitas caçadas chamamos de bom senso, meus caros cordeirinhos — O arqueiro tagarelou enquanto mantinha o indicador levantado na altura do ombro.
— Se tivesses desistido e fugido, talvez tivessem evitado esse encontro desafortunado — concluiu o homem com a espada incandescente.
Jonas quis continuar a discussão. Abriu a boca para falar, mas Eric o interrompeu.
— É verdade, desculpe — disse ele. — Vamos seguir nossos caminhos então. Vocês levam o urso e nós os ratos, que é o que viemos buscar. Agradeço por nos ter ajudado — baixou a cabeça.
Jonas tentou falar, mas a voz doente de a Eric abarcou a sua quando este gritou:
— Já tá tudo bem, idiota!
Um sorriso de satisfação percorreu o grupo de Centos.
— Muito bem — Leovard pegou a espada, que perdeu o brilho avermelhada e se tornou em um cinza opaco. — Fiquem mais próximos dos limites da cidade. Quanto mais adentrarem às ruínas exteriores, de certo que mais monstros como esse encontrarão. E eu não creio que tereis a sorte de hoje — declarou ele.
— Assim está bom, fiquem com os ratos — cantarolou o grandalhão com sua voz metálica.
Leovard começou a andar.
— Vamos embora. Dork’t, traga o urso.
O grandalhão se adiantou, levantou o urso com os braços, e os pôs sobre as costas. Então caminhou, arrastando os pés da criatura no chão. O resto do grupo o seguiu.
Leovar passou por entre Jonas, Eric e Leandro, acenando com a cabeça para os três. A garota não lhes deu qualquer atenção, e o arqueiro virou-se para trás após alguns passos, retirou o chapéu e fez uma referência enquanto caminhava, girando novamente e retomando o passo logo em seguida.
E assim se foram, desaparecendo na escuridão da neblina que já tomava o ambiente. Jonas assistiu-os partir, e então caminhou em direção a Erik.
— Porra, cara! — berrou. — Por que pediu desculpas daquele jeito? Ficamos parecendo um bando de retardados.
— Prefere ser visto como retardado, ou acabar sendo esmagado por aquele martelo? — retrucou Erik com uma voz afiada.
Jonas engasgou.
— Talvez não chegasse a isso — pontuou Leandro.
— Talvez chegasse. E se chegasse, o que faríamos. Não daria mais pra correr. E mesmo se corrêssemos, seríamos acertados pelo arqueiro, ou vocês não viram as flechas que atingiram o urso? — Fez uma pausa e suspirou — Sem contar que ainda tinha os outros dois.
Jonas chutou uma pedra em frustração, ouvindo o som de seu estalido ecoar pela neblina.
— Então o que faremos, vamos caçar ratos e ser humilhados por caras como esses para sempre? — gritou com insatisfação. Não entendia porquê, mas aquilo o incomodava. Tudo o incomodava.
— Não exagera, não vai ser pra sempre, né Erik? — abrandou Leandro.
— Só até subirmos nesse maldito ranking — Erik respondeu.
Jonas riu.
— E quantos ratos vamos precisar caçar para isso acontecer — chutou um dos sacos com ratos mortos.
— Não vão ser os ratos que vão nos fazer subir. Apenas me dê tempo — Erik disse. A sugestão de um sorriso tremulava em seu rosto.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.