Capítulo 308: Rota D’água (III)
A sala estava iluminada apenas por uma lamparina pendurada no gancho torto de uma viga. As sombras dançavam nas paredes, jogando luz amarelada sobre os rostos atentos. Nekop, Miatamo e Guaca já esperavam ali dentro quando Dante empurrou a porta, com Pomodoro logo atrás.
O som da madeira rangendo sob seus passos parecia mais alto do que o normal. Todos se viraram ao mesmo tempo. Nenhuma saudação. Apenas o peso de quem sabia que o momento exigia mais do que gentilezas.
Dante fechou a porta atrás de si com um leve empurrão e foi direto ao ponto.
— Vamos atrás do navio do Duncan.
Ninguém respondeu de imediato. Guaca se recostou contra a parede, os braços cruzados. Miatamo girava uma pequena peça metálica entre os dedos, sem tirar os olhos de Dante. Pomodoro permaneceu calado ao lado do comandante, olhando para Nekop.
O anão ajeitou os óculos sobre o nariz e soltou um suspiro baixo, como se estivesse pensando alto antes mesmo de falar.
— Se é isso que quer mesmo… existe um caminho. — Ele pausou, como se testasse o silêncio. — A Rota D’água.
Os olhos de Dante se estreitaram.
— Eu gosto do nome, mas o que seria ela?
— Um nome bonito pra um lugar perigoso — respondeu Nekop, sem ironia. — É um corredor fluvial clandestino, usado quase exclusivamente pelos Comerciantes. Evita patrulhas, zonas de conflito e regiões marcadas por piratas. Mas não é um mapa… é um conjunto de movimentos. Uma dança nas águas. Você precisa saber quando virar, quando esperar, e principalmente… quando desaparecer.
— Como isso nos ajuda? — Miatamo perguntou, sem esconder a dúvida.
— Se soubermos usá-la — respondeu Nekop, voltando-se a Dante —, conseguimos alcançar um dos cargueiros de Reborn sem sermos vistos. Mas tem um detalhe…
— Sempre tem — murmurou Guaca, com um canto de riso seco.
— …precisamos manter o Nokia longe de qualquer batalha. Qualquer combate e eles saberão que não somos comerciantes. A Rota exige silêncio. Invisibilidade. Uma única troca de tiros, e vão caçar a gente como traidores atravessando território sagrado.
Dante cruzou os braços, encarando o chão de madeira por um momento, pensando. Havia algo inquieto em seu olhar, como se o tempo estivesse empurrando suas decisões para um beco sem volta.
— Conseguimos fazer isso? — perguntou, olhando para Pomodoro.
O homem soltou um resmungo e coçou a barba.
— Só se o navio estiver em plena forma. E não estamos nem perto disso. Mas se for esse o caminho… talvez seja a única chance de chegar até Reborn antes que ele venda as cargas.
— Acha que algum dos Comerciantes pode nos reconhecer? — perguntou Miatamo, agora mais focada.
Nekop balançou a cabeça negativamente.
— Não se formos rápidos. E se ninguém mais souber o que estamos tentando fazer. A Rota é uma área onde a gente consegue montar nossa própria camada. Lá, não somos ninguém. Vamos precisar de um plano de ataque e saída.
Dante assentiu, lentamente.
— Então vamos fazer funcionar. Nenhum erro. Nenhum barulho. Nenhum nome além dos nossos. — Ele olhou para cada um deles. — Se Duncan tem madeira e ferro, nós vamos tirar deles para construir. Pelo que parece, ele está em contato com Bastardo e Glossário, então, vamos mostrar pra eles do que somos capazes.
Silêncio.
Miatamo parou de girar a peça metálica. Guaca descruzou os braços. Pomodoro suspirou, mas não protestou.
E então Nekop deu o último aviso, com o olhar sério por trás das lentes embaçadas:
— Se a gente entrar nessa Rota… não tem volta. Ou saímos do outro lado com o que queremos ou afundamos com o navio.
Dante deu um passo à frente e pousou a mão sobre a mesa ao centro da sala.
— Então é melhor todo mundo aprender a nadar.
Eles sorriram. Praticamente ninguém rejeitou a ideia. Dante esperava que tivesse, no mínimo, um pequeno lamento de estarem indo na direção de um navio de batalha. O que responderam foi um olhar e convicções.
Esse tipo de gente ninguém esperava.
— Nekop, junte alguns técnicos que consigam utilizar habilidades de lançamento, envio ou que possam criar camadas. — Ele cruzou os braços. — E alguém avise a Flicks para ficar pronto. Nós vamos pegar o primeiro navio e vamos trazer tudo de volta. Quero pelo Trahaus comigo, e também quero Eggis.
Miatamo e Guaca se entreolharam. Eggis não era chamado fazia mais de semanas. Ele tinha uma estrutura única para problemas, mas desde a derrota e morte de Bulianto, ficou de lado, apenas bebendo e treinando em algum lugar mais afastados dos demais.
Nunca demonstrou tristeza, mas sentia a culpa também. Como todos os outros. Dante tinha certeza de que esse homem faria de tudo para honrar o legado do seu antigo Rei. Era por isso que queria a presença dele.
Sua habilidade também era importante. Dante faria bom uso dela.
Precisava que seus tripulantes fossem bons usando tudo o que possuíam. A habilidade deveria ser um alerta para suas capacidades, mas Bulianto tinha feito algo com esses homens que os deixaram receosos de usar qualquer coisa que fossem em área.
As habilidades de Guaca e Miatamo eram o exemplo vivo. Se fosse usado na batalha contra o Bastardo, claramente as chances seriam maiores. Habilidades que utilizavam em área se tornavam um bombardeio.
— Vamos nos mover — finalizou Dante para todos eles. — E finalizar qualquer um antes mesmo de saberem que nós somos. Dispensados.
I
Dante observou o Anão sentar-se sobre o tampo da mesa, os pés mal tocando o chão enquanto abria um dos pergaminhos com rapidez. Os dedos pequenos folheavam as páginas com uma urgência contida, olhos correndo pelas marcações feitas à mão — traços tortos, coordenadas, setas e símbolos. Uma dança de tinta que só Nekop parecia compreender de verdade.
— Vamos entrar na Rota em poucos minutos, senhor — disse ele, sem levantar a cabeça. — Eu gostaria que subisse. A tripulação gosta de saber o que vamos enfrentar com o Capitão presente.
Então olhou para Dante, os olhos fixos por trás das lentes sujas, firmes, quase desafiadores.
— E tenho certeza de que quando começarmos a nos mover de verdade, vamos atrair problemas. Muitos.
Dante assentiu. Não era só intuição de Nekop — era quase uma certeza gravada no casco do navio.
Juntos, saíram pelo corredor estreito. Os passos pesados ecoavam no chão de madeira, e, um a um, os portais foram se abrindo. Como se o som dos passos tivesse acordado o navio inteiro. Homens e mulheres emergiram das sombras das cabines, ergueram os queixos e os seguiram. Vanguardistas armados, Técnicos com ferramentas nas mãos, Curandeiros de jaleco e olhar atento. O ar ganhava peso a cada passo que davam rumo às escadas.
Quando emergiram no convés, o céu parecia em guerra com o mundo. As nuvens, carregadas e enegrecidas, giravam sobre si como feras famintas. Raios cortavam o véu da noite em ângulos tortos, e a chuva caía como pedras, castigando os ombros de todos com fúria.
A bordo do Nokia, mais de cem tripulantes se alinharam sem que ninguém precisasse ordenar. Estavam ali, encharcados, de olhos fixos em Dante. Esperavam-no. Não como quem espera ordens, mas como quem espera alguém em quem acredita.
Pomodoro se aproximou com passos firmes, retirando das mãos um casaco enegrecido, forrado por dentro, com detalhes dourados nas ombreiras e nas costuras laterais. Estendeu-o sem dizer uma palavra. Dante o vestiu, e à medida que o tecido se ajustava, parecia se fundir ao seu corpo, como se as marcas bordadas contassem uma história antiga.
Nekop veio em seguida, segurando uma espada curta, mas de cabo grosso e empunhadura desgastada pelo tempo. Dante a prendeu à cintura com um único gesto, ainda de olhos voltados para a frente.
Foi quando o Nokia deu um leve tranco. O casco vibrou com um estalo profundo, e então o navio virou lentamente, como um animal vivo mudando de curso. Uma curva suave os colocou em direção ao leste. Mas não por muito tempo.
De repente, o leme girou outra vez. Uma virada seca. O trovão estourou no céu e, com ele, um clarão revelou o mar revolto — uma onda gigantesca erguia-se à distância, crescendo como se o oceano tivesse decidido se levantar com raiva.
A madrugada parecia mergulhada em breu. A única luz vinha de uma lamparina oscilando na ponta do mastro. E foi sob essa luz fraca que Dante viu o que chamariam de monstro dos mares.
Um novo estrondo ressoou, mas agora não do céu — vinha do oceano. Do meio dele. Vozes humanas começaram a gritar, algumas em desespero, outras rindo com crueldade. E então: uma explosão. Lâminas de luz azul e vermelha cruzaram o céu, como feixes de energia em guerra.
Tiros. Raios. O som de metal se partindo.
— Senhor, estamos prontos — disse Nekop, dando um passo para o lado.
Dante não respondeu de imediato.
— Todos eles estão prontos? — perguntou, ainda olhando para o caos adiante.
— Sim, senhor. Todos. — A voz do anão era firme, carregada de certeza.
Dante virou-se.
Cem rostos o encaravam. Molhados. Fadigados. Mas com os olhos acesos. Determinados. Não pediam garantias. Pediam liderança.
A chuva escorria pelo rosto dele, e mesmo assim ele caminhou até a ponta do convés. Respirou fundo.
A promessa que fez começava agora. O caminho estava traçado. E mesmo que não voltassem… precisavam ir.
Ergueu o punho.
— Vamos em frente!
E o Nokia respondeu com um novo tranco — como se também tivesse aceitado o chamado.
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