Capítulo 310: Fantasmas (I)
O Nokia pairava invisível como um fantasma prestes a cravar os dentes. O casco, envolto por uma camada de névoa artificial, tremia levemente com o avanço silencioso. Lá de cima da torre de comando, Dante mantinha os olhos fixos na movimentação à frente. Através da lente do escopo, a cena era clara: Saul, imponente, arrastava a espada com desdém, enquanto os comerciantes eram rendidos e amarrados como peças sem valor.
— Estão terminando — disse Nekop, ao seu lado, a voz baixa e contida. — Devem zarpar em minutos. Se esperarmos mais, vão usar os projéteis de propulsão e entrar direto no nevoeiro do sul.
Dante não respondeu de imediato. A mão apoiada no corrimão tremia imperceptivelmente. Ele não olhava apenas para o saque. Olhava para o método. Para a crueldade. Era um ataque limpo demais, rápido demais, como se já tivessem feito isso dezenas de vezes — e provavelmente tinham.
Um pouco mais atrás, Egiss observava em silêncio. O manto que usava cobria até o pescoço, e os dedos, enluvados, apertavam o coldre de seu rifle como se a madeira o queimasse. Ele deu um passo à frente.
— A gente deveria ir agora — disse, sem esconder a ansiedade. — Eles vão queimar o navio. Vão deixar esses homens à deriva.
Dante virou os olhos para ele.
— Você está com pressa?
O silêncio cortou o ar. Nekop desviou o olhar. Egiss engoliu seco.
— Não é pressa. Estou apenas querendo mostrar serviço, senhor. — A voz dele não tremeu, mas havia peso. — Não quero que ache que estou aqui apenas por ser um peso morto. Nunca deixarei que pense nisso. Por isso, peço que o senhor me deixe ir sozinho.
— Não vai acontecer — cortou Dante. A voz firme, direta. — Agir agora sem um plano claro só vai fazer o Nokia se tornar o próximo alvo.
Egiss encarou-o, os olhos úmidos sem chegar a marejar.
— Se Bulianto estivesse aqui, ele já teria descido a espada.
— Bulianto morreu por uma armadilha que ninguém teve como ser capaz de prever, e você parece querer correr direto pro inimigo para causar outro problema.— disse Dante, frio, direto. — Eu não vou repetir os erros dele e você não vai repetir os seus.
Egiss deu um passo para trás. Silenciado.
Não muito distante, os comerciantes estavam ajoelhados. Um dos mastros já começava a queimar. Haviam outros dois para que ficasse inoperante. Se fosse realmente o plano do tal Saul, então, ele deixaria que queimassem no meio daquela tempestade para serem levados embora.
— Nekop — disse, finalmente —, a lateral oeste do cargueiro está desprotegida?
— Sim, senhor. Estão focados demais no saque. Aqueles dois lá em cima disseram que apenas quatro guardas estão fixos na popa. O restante está ou no convés ou dentro da câmara de carga do navio comerciante.
— Ótimo, vamos ficar numa distância de duzentos metros deles.
O Nokia deslizou pela lateral oeste do cargueiro pirata como uma sombra viva. Invisível, silencioso, mas cheio de intenções. A névoa artificial o envolvia por completo, mascarando qualquer vestígio de presença enquanto o casco metálico rangia suavemente sob o esforço de manter a posição. Lá de cima, Dante observava o convés inimigo se mover num balé desatento — os homens de Saul estavam todos voltados para o saque. Era a abertura que precisavam.
No convés do Nokia, os Técnicos já estavam posicionados, alinhados ombro a ombro. Seus mantos, encharcados de chuva, tremulavam com o vento forte. Cada um carregava no olhar a tensão de quem sabia que não havia margem para erros. Nekop caminhou calmamente até o centro da formação, sua capa escorrendo água e sua mão direita já envolta em eletricidade estática.
O trovão cortou os céus como um chamado dos deuses.
— Agora! — gritou Nekop, e o ar pareceu se partir ao meio.
Os Técnicos dispararam juntos. Uma explosão elemental, carregada de fogo, vento e impacto arcano, se formou como um raio horizontal que colidiu com violência brutal contra o casco do navio inimigo. O estrondo reverberou pelo mar. A madeira estalou, rachou e cedeu. Um rombo se abriu como uma ferida viva na lateral do cargueiro, fazendo o navio inclinar-se bruscamente para o lado oposto.
O alarme foi imediato. Gritos se espalharam no convés. O caos, enfim, começava.
— Egiss, Trahaus, Porto! — vociferou Dante por cima do barulho da tempestade. — Comigo, agora!
Os três se aproximaram correndo. Os olhos de Egiss brilhavam com adrenalina, mas havia controle ali. Atrás deles, o Técnico Rudini já havia traçado os glifos no chão, brilhando num tom púrpura intenso. Rudini esticou a mão com a palma aberta.
— Vocês vão voar — disse ele, com um sorriso rápido e determinado. — Se acertarem o timão, já quebramos metade da manobra deles. Assim que quiserem voltar, digam o meu nome. Serão enviados de volta para cá.
Dante assentiu uma vez. O vento soprou com mais força.
Rudini liberou o feixe.
Num disparo vertical, o chão sob os pés do grupo sumiu. Dante, Egiss, Trahaus e Porto foram lançados como flechas humanas em direção ao navio inimigo, envoltos numa cápsula de vento e luz. No segundo seguinte, o estrondo do impacto deles com o convés ecoou por toda a estrutura.
Eles haviam caído exatamente sobre o timão.
Os tripulantes do navio pirata giraram os rostos em uníssono, olhando para o nível superior do convés, onde agora se formava uma figura impossível. Dante e seus companheiros pareciam espectros surgidos do nada — sem cordas, sem barulhos, apenas uma presença repentina e avassaladora. Ainda havia fumaça do rombo no casco, e aquela névoa que parecia se recusar a dissipar dava ao cenário um ar irreal.
Dante notou o medo nos olhos deles. Era o mesmo medo que homens têm de coisas que não compreendem. Como se os mortos tivessem voltado para cobrar dívidas.
Ele girou sobre os calcanhares, encarando a escada que levava ao convés inferior. A voz saiu com firmeza:
— Avancem.
A ordem rompeu o silêncio como uma pedrada num espelho — e o que veio depois foi uma sinfonia de gritos, aço e caos.
Eles esperavam um ataque frontal, talvez disparos ou flechas. Mas o que viram foi uma mulher saltando do timão como um projétil, corpo flexionado, duas adagas em punhos. O tempo pareceu desacelerar. Quando Egiss tocou o chão, uma rajada de gelo se espalhou num raio. O convés estalou e uma crosta espessa se formou em segundos, engolindo os pés de três piratas antes que pudessem reagir. Suas pernas congelaram até os joelhos, presas, indefesas.
Porto surgiu como um trovão atrás deles, as duas machadinhas girando num arco frenético. Três golpes. Três corpos. Membros cortados, gritos sufocados pela chuva e pelo estrondo das ondas. O sangue quente evaporava assim que tocava o gelo.
Lá embaixo, no outro navio, Saul ergueu o olhar em direção ao massacre repentino no convés superior. Seus olhos se arregalaram ao ver seis de seus homens tombarem em menos de dez segundos. Ele rangeu os dentes.
— Recuar! Agora! Todos, recuar! — berrou, apontando na direção oposta.
Dante desceu os degraus calmamente, a mão deslizando pelo corrimão encharcado. Não havia pressa nos movimentos dele, apenas um olhar concentrado, como um caçador diante da presa exata. Seus olhos seguiam seus subordinados transformarem o convés num campo de extermínio.
Trahaus deslizou pelo piso molhado, desviando de três disparos inimigos sem perder o equilíbrio. Parou diante de dois brutamontes armados com espadas largas, cada um deles com armaduras reforçadas e chamas envolvendo as lâminas. Mas antes que pudessem cruzar os golpes, uma rajada invisível os cortou.
Trahaus nem se mexeu.
Os dois homens tombaram, partidos ao meio, seus torsos desabando enquanto o restante de seus corpos permanecia de pé por um instante antes de ceder.
Dante chegou ao centro do convés. Seu manto escorria água, o cabelo colado à testa, a espada em mãos — uma lâmina antiga, reluzente mesmo na escuridão.
Ao redor dele, os próprios piratas recuavam, mesmo os que haviam retornado ao navio. Era como se algo os prendesse ali. Como se o ar ao redor de Dante tivesse se tornado mais pesado. Mais cruel.
Egiss, Porto e Trahaus se colocaram a seu lado. O trio, coberto por sangue e vapor, não dizia nada, apenas esperava. Até mesmo eles hesitaram ao ver Dante inspirar lentamente… e sorrir.
Um sorriso que mostrava os dentes.
— Por que estão com essa cara? — disse ele, com um brilho afiado nos olhos. — Parece que viram um fantasma.
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