Capítulo 22 - Canção
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
— Será que vão demorar para encontrar cavalos? — Júlia resmungou entre uma respiração ofegante e outra, enxugando a testa com as costas da mão.
— E isso importa? — Alex respondeu com um sorriso torto, sem desacelerar o ritmo. — Nem temos dinheiro pra cavalos.
— Mas se tivéssemos, valeria a pena?
— Nem um pouco. Hoje, por exemplo, eles só teriam morrido.
Júlia bufou, chutando uma pedrinha do caminho com irritação.
— Desde o novo teletransporte, tá tudo uma bagunça. A vida vai voltar a ser um inferno.
— Voltar? — Alex riu, arqueando a sobrancelha. — Da primeira vez você mal tinha saído das fraldas. Duvido que lembre de como eram as coisas.
— Eu já era uma pré-adolescente, babaca! E você tem a mesma idade que eu! — resmungou, jogando um olhar de desdém para o companheiro. — E, de qualquer forma, lembro sim. E odiei morar no meio do mato.
— As coisas vão ser mais rápidas que antes — disse ele, confiante. — Tá todo mundo mais preparado. Não viu a velocidade com que subiram os muros?
— É, mas vai demorar uma eternidade até eu ter uma casa só minha de novo.
— Ah, isso vai mesmo… Mas já foi uma sorte que alguns prédios tenham vindo junto dessa vez.
— Com certeza… — Júlia suspirou e jogou o peso para trás, parando a carroça por um momento para alongar o corpo, e logo voltando a empurrar.
Ana já estava desperta há algum tempo. O cansaço inicial se dissipara, substituído por uma lucidez inquieta. Seu silêncio era um véu estratégico. De olhos fechados, apenas absorvia as informações soltas no ar. Às vezes, ouvir valia mais do que perguntar.
“Novo teletransporte.” “Dessa vez.” “Subiram os muros.”
As palavras se alinhavam em sua mente, tecendo uma narrativa que, pouco a pouco, começava a fazer sentido.
A conversa dos dois tinha uma naturalidade quase brutal. A casualidade com que mencionavam deslocamentos massivos, reconstrução, até mesmo a morte, era assustadora. Qualquer traço de choque ou luto parecia dissolvido em aceitação pura e simples. Como se tudo aquilo fosse apenas um inconveniente, e não uma tragédia.
Com o novo silêncio que se instaurou, Ana refletiu sobre o quão ridícula era a ideia de erguer estradas logo após um evento caótico como um teletransporte mundial. Um absurdo. Mas, ao mesmo tempo, uma necessidade óbvia.
Tal infraestrutura era a espinha dorsal de qualquer civilização. Sem estradas bem estabelecidas, não havia comércio eficiente, não havia segurança, não havia fluxo de recursos.
Transportar carga por entre a vegetação densa seria um pesadelo.
Patrulhar uma estrada reta era infinitamente mais fácil do que tentar proteger trilhas improvisadas por entre a vegetação densa.
Uma estrada bem alinhada indicava planejamento. E um planejamento como esse indicava que a humanidade já estava organizada há tempo suficiente para pensar além da simples sobrevivência.
Se Barueri estava sendo reconstruída, então as outras cidades também deveriam estar. Mas até que ponto? Eram cidades de verdade, ou apenas aglomerados de refugiados? As pessoas voltaram para seus locais de origem? Havia governos? Hierarquias? Comércio? Contato entre as regiões?
E, talvez a questão mais importante de todas:
Essas crianças assistiram à morte de seis pessoas sem piscar. Ninguém chorou. Ninguém falou seus nomes. O máximo que ouviu foi a palavra “azar” antes de os amontoarem como uma carga qualquer, um detalhe inconveniente. Que tipo de sociedade emergiu das cinzas da antiga?
Isso a fez arquear a sobrancelha. As respostas que buscava talvez não fossem tão agradáveis assim.
Suspirando, se ajeitou no banco, fingindo sonolência enquanto Alex e Júlia voltaram a um debate inútil sobre cavalos.
Finalmente abriu os olhos, e foi recebida por um par de grandes olhos castanhos a encarando diretamente. Um som abafado escapou da garota loira, seu rosto adquirindo um rubor intenso, quase febril, que se espalhou do pescoço às orelhas. Ana piscou, surpresa, antes de sorrir. Não esperava ser observada tão de perto, mas a timidez da jovem era quase cômica.
— Não tive a chance de me apresentar — sua voz saiu suave, como se um tom mais alto pudesse espantar a garota. Levantou uma das mãos em um cumprimento preguiçoso. — Meu nome é Ana. Você é a Marina, certo?
A jovem maga hesitou por um instante antes de acenar lentamente, como se estivesse sendo julgada por cada movimento. Ainda meio tonta, Ana se endireitou no banco, ajustando a postura para se sentar melhor. A falta de palavras fez seu sorriso se alargar.
— Te ouvi cantar. Foi bem curioso naquela situação, mas preciso dizer… você tem uma voz linda.
— O-obrigada. — Marina finalmente respondeu, com olhos arregalados e um rosto ainda mais ruborizado. Seus dedos apertaram nervosamente a barra do manto puído que vestia. — Eu… eu não consigo visualizar bem a manifestação sem ela.
Ana inclinou ligeiramente a cabeça.
— Visualizar?
— Sim… demoro muito pra me concentrar sem ela.
— Entendi.
Não entendeu. A resposta foi insuficiente, mas tudo bem, não queria prolongar o assunto. Soltou um suspiro leve e se espreguiçou, inclinando-se para trás, deixando que o corpo relaxasse contra a carroça.
A escuridão ao redor era densa, mas curiosamente acolhedora. O clima estava agradável, uma brisa noturna suave bagunçando os fios já desordenados de seu rabo de cavalo. Seus olhos varreram a mata ao lado, acompanhando as silhuetas das árvores que passavam vagarosamente. Um oceano de folhas dançando ao ritmo do vento.
Os sons da noite eram vívidos. Insetos zumbindo, folhas sussurrando ao sabor do vento, o ranger ocasional das rodas contra a terra compactada. Então, como se o cenário a puxasse para um tempo distante, seus olhos cor de mel se ergueram. Ali, imponente no céu escuro, estava a lua — enorme, brilhante, como um farol solitário guiando a noite.
A cena a deixou solitária. A solidão trouxe memórias de noites silenciosas em que se refugiava entre discos antigos, suas únicas companhias em um mundo que se recusava a falar.
Sem perceber, começou a cantarolar.
Sonata ao Luar. A 14ª sinfonia de Beethoven.
Aquela melodia a acompanhou durante incontáveis momentos de quietude. Seus dedos a haviam dançado em teclas de pianos esquecidos até sangrarem. Tocou-a tanto que sentiu que a música pedia por palavras, por uma voz que narrasse o que as partituras sozinhas não podiam expressar.
Mas nunca houvera ninguém para fazê-lo. Então, Ana tomou essa liberdade.
A princípio, foi apenas um murmúrio, uma extensão natural do cantarolar. Mas conforme se perdia no ritmo, a melodia tomou forma, e sua voz ganhou corpo, transformando-se em algo maior.
“Noite que abraça, sussurra e devora,
Onde escondeste os sonhos de outrora?
Sob as estrelas, meu peito em tormenta,
Canta à lua, que o tempo não lenta.”
Seus olhos se fecharam, o passado fluindo junto com as palavras.
“Luz tão distante, fria sentinela,
Vela os errantes em sombras singelas.
Chuva de prata em céus apagados,
Reflete as dores dos passos calados.”
O mundo ao redor parecia desaparecer. A carroça continuava se movendo, mas o tempo se desdobrava de maneira peculiar, como se a música o tivesse enredado em sua própria cadência.
“Velho silêncio, guardião das estrelas,
Chore comigo, que o tempo se esqueça.
Nas asas do vento, segredos se vão,
Mas tua luz sussurra a ilusão.”
Um arrepio rastejou por sua espinha, mas era uma sensação familiar. Como se estivesse voltando para casa. Sua voz ganhou força, embalada pela emoção que surgia de um canto profundo de sua alma.
“Dorme, ó mundo, sob véu cintilante,
A eternidade é um sopro errante.
Se em teu brilho há memórias perdidas,
Guarda-me nelas, em noites antigas.”
Só quando a última nota escapou de seus lábios e se dissipou no ar como um sussurro quebradiço, Ana baixou o rosto e encontrou todos a observando.
O silêncio que se seguiu não foi o silêncio comum das noites tranquilas, nem o silêncio expectante de uma plateia aguardando o fim de uma canção. Era algo diferente. Algo denso, que pairava no ar e se recusava a se dissipar.
Alex foi o primeiro a se mover, mas não para falar. Sua mão apertou o próprio peito como se tentasse conter algo. Seus olhos brilharam, marejados, e sua respiração ficou curta, trêmula, como se tivesse esquecido como se respira.
Júlia virou o rosto, mordendo o lábio com força, os ombros tremendo levemente. A ruiva que até então se mostrava tão firme, tão resistente, parecia prestes a desmoronar.
Felipe, mesmo ainda fraco, encarava Ana como se ela tivesse acabado de arrancá-lo de um sonho antigo e jogá-lo cruelmente na realidade.
E Marina… Marina não conteve. Lágrimas rolavam pelo rosto da garota como se uma represa tivesse sido rompida dentro dela. Era um choro silencioso, doloroso, como se a melodia que Ana havia cantado tivesse escavado um buraco em sua alma.
Ana arqueou uma sobrancelha, desconfortável com tanta atenção repentina.
— Que foi?
Alex fechou os olhos e balançou a cabeça, inspirando fundo como se tentasse colocar as emoções de volta para dentro. Felipe virou o rosto para o chão. Marina passou a manga da blusa pelo rosto, fungando baixinho. Júlia, por sua vez, soltou um soluço contido, fungou forte e então limpou o nariz com o braço. E então, sem aviso, apontou um dedo trêmulo para Ana, a voz embargada de choro e indignação.
— C-Caralho… você é muito estranha! Quem diabos canta uma coisa dessas do nada?! Eu nem sei porque eu tô chorando, mas dói tanto!
— Ah… — murmurou Ana, soltando uma risada curta enquanto balançava a cabeça. — Vou cantar alguma coisa mais animada da próxima.
Júlia fungou mais uma vez, mas antes que pudesse responder, Alex ergueu uma das mãos e apontou para frente.
— Olhem.
Todos se viraram. No horizonte, muros erguiam-se contra o céu escuro.
Estavam de volta.
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