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    Minutos passaram como os de um condenado contando os segundos antes da execução — exceto que, neste caso, a execução era voluntária e se chamava “aprendizado”. Ana deitou no chão, se apoiou nas prateleiras, rodou no próprio eixo como um compasso sem rumo. 

    Poderia ler mais rápido — sabia disso. Já fizera antes, incontáveis vezes. Mas queria absorver com calma. Engolir cada palavra e mastigar o significado. Seu estômago roncava em um protesto distante, como se fosse outra pessoa sentindo fome e não ela. Fazia quantas horas desde a última refeição de verdade? Nem ideia. A ração sem graça entregue pelo grupo já era uma lembrança nebulosa, e a maçã que comeu no caminho mal serviu para forrar seu estômago.

    Brayner a observava de longe, vez ou outra, curioso, admirado, talvez até um pouco preocupado. Dormira num canto, a cabeça apoiada na mochila, e quando despertou, seu primeiro instinto foi exclamar algo entre o choque e a confusão ao notar que Ana continuava ali, absolutamente absorta. Perguntou-se se deveria intervir. Mas intervir em quê, exatamente? Quem interrompe alguém que parece tão satisfeita em sua estranheza? No fim, desistiu e voltou às suas tarefas.

    Boa decisão. Ana sequer teria notado.

    A mulher beirava a obsessão, e parar não estava em seus planos.

    Mergulhou no livro com uma voracidade que faria um acadêmico orgulhoso, ou, talvez, desconfortável. Mesmo ultrapassado, o conteúdo era um tesouro. Cinquenta páginas foram devoradas sem cerimônia, e o que encontrou ali foi fascinante.

    A humanidade não estava apenas se agarrando à sobrevivência com unhas e dentes. Estava reescrevendo as regras. A engenharia mágica não era mais apenas uma ciência rígida e previsível; agora era uma dança entre o pragmatismo e o impossível. Estruturas que ririam na cara da física, caso a física tivesse um rosto. Materiais vivos que se regeneravam como organismos, mas obedeciam comandos como máquinas. O casamento improvável entre circuitos elétricos e manipulação de mana, criando dispositivos que faziam a tecnologia antiga parecer brinquedo de criança.

    Máquinas funcionando sem combustível, absorvendo energia da mana ambiente. Prédios sustentados por pilares tão finos que deveriam desmoronar — mas não desmoronavam, porque as runas inscritas em suas bases redistribuíam peso como se as leis gravitacionais fossem sugestões, não regras. Armas que, em simbiose com seus usuários, tornavam-se muito mais mortais do que deveriam ser.

    Tudo isso fazia seu coração acelerar cada vez mais.

    E então veio a parte sobre a mana em si.

    No começo, não achou que um conceito tão abstrato fosse cativá-la tanto quanto a engenharia, mas estava errada. O que encontrou ali foi… esclarecedor.

    A ciência falhava em explicá-la por completo, mas os efeitos estavam por toda parte, dando voz a uma nova forma de existência. Criaturas que antes pertenciam apenas a fábulas agora vagavam pelo mundo, e até mesmo os animais mais mundanos se tornaram predadores imprevisíveis, evoluindo sob o olhar invisível dessa força.

    Pensou nos lobos-guará que enfrentara no dia anterior. Não eram só mais fortes — eram espertos. Tinham uma inteligência incomum, como se estivessem a meio passo de entender o mundo de uma forma que jamais deveriam. Um arrepio subiu por sua espinha, mas não era medo. Era entusiasmo. O que mais estava por aí? Que outras aberrações evolutivas rondavam o mundo? O que poderia enfrentar, estudar, catalogar?

    Seus dedos se crisparam sutilmente ao redor do livro, como se segurassem algo muito mais selvagem do que páginas encadernadas. Um desejo pulsava em seu peito. Queria explorar. Testar seus limites.  

    Mas continuou.

    A humanidade, como suspeitava pelas conversas que tivera, fora reduzida a uma fração do que já foi. Agora se amontoavam em fortalezas urbanas, enquanto o restante do planeta se tornava um palco mortal. Não que estivessem indefesos. Longe disso. Mas a verdade era cruel, o mundo evoluía de forma frenética, mas eles caminhavam a passos lentos.

    Demorou a última década toda para que os corpos das pessoas fossem efetivamente moldados. Músculos se tornaram mais densos, o sangue correu mais rápido, a resistência superou os limites conhecidos. Crianças em especial, crescendo sob tal influência, fortaleceram-se como touros, pois cada célula parecia ter sido aprimorada para sobreviver a um mundo que já não era apenas deles. 

    Alguns, mais talentosos, aprenderam a brincar com a mana com destreza, dobrando a realidade à própria vontade.

    Mas pelo que leu, Marina estava certa: eram poucos. E mais intrigante ainda, menos ainda podiam usá-la em combate. Não era tão simples quanto a maioria imaginava, e, para o desgosto de Ana, os escritos não traziam muitos detalhes além desse mero reconhecimento do fato.

    Sentia a necessidade de entender aquilo na própria pele. De descobrir, sem intermediários, o que fazia aquela energia pulsar e mudar o mundo. Mas, por ora, estava limitada ao papel e à especulação. Havia uma possibilidade nada absurda de que seu corpo fosse apenas fortalecido, sem qualquer afinidade com as manipulações mais extravagantes. 

    E se fosse? Tudo bem. Talvez até melhor. Amava lutar, e, pelo que entendeu, manipuladores não possuíam a mesma expansão física que os fortalecedores.

    Suspirou, deixando a página virar sob os dedos com um leve estalo. A cada parágrafo, a nova era se tornava menos um mistério e mais uma equação incompleta. Mas nada, absolutamente nada, além de breves menções dispersas, falava sobre a chamada dádiva da absorção. O que era curioso. Talvez fosse conhecimento comum, tão básico que ninguém se incomodava em registrá-lo. Ou talvez fosse algo incerto, uma teoria vestida de fato. De qualquer forma, teria que descobrir sozinha.

    — E essas torres?

    Falou propositalmente em voz alta. Sabia que estava sendo vigiada, então não viu necessidade em formalidades.

    — Torres?

    A voz de Brayner veio do canto da sala, ainda mergulhado em suas anotações.

    — Sim. As tais redes internas que foram construídas em Aurórea.

    O jovem finalmente largou a caneta, cruzando os braços enquanto pensava na resposta.

    — Ah, você não viu lá fora? Já começaram a erguer algumas… — coçou a cabeça. — Pelo que ouvi, querem espalhar ao longo das estradas. Mas deve levar meses.

    Ana fechou o livro, inclinando levemente a cabeça.

    — E os fóruns?

    — Devem demorar ainda mais. As guildas daqui não parecem tão interessadas nessa parte.

    — Entendi… obrigada.

    Guildas. Aquele sistema intrigante de pseudo-reinos privados, governando através da força e da influência.

    Em Aurórea, eram o novo governo. E mesmo que as pessoas por trás delas fossem diferentes, o modelo se repetia em Barueri. Definiam regras, cobravam impostos e, de forma conveniente, também ofereciam proteção. Não era muito diferente do que reis faziam, exceto que aqui, as coroas eram invisíveis e trocadas por brasões costurados nas roupas.

    Havia guildas para tudo. Se alguém quisesse estudar mana, havia uma guilda. Se preferisse botânica, existia outra. Se quisesse sair caçando monstros até morrer de exaustão, bom, também havia uma guilda para isso.

    E teoricamente, qualquer um podia fundar uma. Bastava reunir pessoas o suficiente, arranjar uma base, e pronto! Você se tornava um líder de guilda.

    Na prática, era bem diferente.

    Em um mundo onde pessoas se tornavam mais poderosas em tempo real, a força não era apenas uma vantagem — era a única moeda que realmente importava. Ou você subia ao topo e fazia o necessário para se manter lá, ou… bom, os muros das cidades eram altos. E nem sempre alguém caía por acidente.

    Por sorte — e sorte era a palavra certa, porque raramente as coisas se equilibravam sozinhas — três grandes grupos haviam se estabelecido na cidade. Surgiram logo após o teletransporte como fungos após a chuva, absorvendo recursos, conquistando influência e contratando caçadores — coisa que descobriu ser apenas o nome de uma profissão, não uma classificação existencial. 

    Em pouco tempo, um equilíbrio de forças se formou.

    Chamavam isso de estabilidade. Mas para quem prestava atenção, era mais uma guerra fria à moda antiga, travada nos bastidores, nos olhares prolongados demais, nas palavras cuidadosamente escolhidas. Ninguém declarava hostilidade abertamente. Pelo contrário, davam tapinhas nas costas, trocavam cortesias em público, brindavam ao futuro. Mas havia tensão no ar, como um nó na garganta prestes a ser desfeito por um deslize.

    Ainda assim, para a população, essa rivalidade velada era o melhor dos cenários possíveis. Três facções significavam que nenhuma delas poderia simplesmente engolir o restante e se proclamar soberana absoluta. Ditadores floresciam em tempos de caos, e Aurórea já havia provado isso de forma exemplar — e sangrenta. Ana sabia que Barueri não seria exceção.

    Era como dizia Santayana: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. O problema é que, agora, o passado mal existia. Memórias eram fragmentadas, registros se perderam, histórias foram reescritas ou simplesmente apagadas. Então talvez a frase precisasse de uma atualização: aqueles que não têm passado estão condenados a tropeçar no presente até construírem um futuro igualmente desastroso.

    Ana respirou fundo.

    Sentiu algo incômodo crescendo dentro de si, uma pressão surda no peito, como um motor ligado em baixa rotação, esperando o momento certo para acelerar.

    Urgência.

    O novo mundo não ia desacelerar para esperá-la. Ele girava rápido, cuspindo mudanças, engolindo os que não acompanhavam o ritmo.

    Também tenho que me adaptar.

    A conclusão era óbvia, mas óbvias eram as coisas mais difíceis de aceitar.

    Quando sozinha, Ana sempre fez as coisas no próprio tempo. Adquiriu conhecimento devagar, se atentando a cada detalhe, saboreando a compreensão antes de seguir em frente. Nunca teve pressa. Não existia a ideia de correr sem saber onde iria chegar.

    Mas esse luxo não existia mais.

    Ou ela se movia, ou seria deixada para trás.

    E não seria.
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