Índice de Capítulo

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    — Alguma coisa tá errada — disse Júlia, abaixando-se rapidamente para encostar o ouvido no chão.

    A cena era no mínimo curiosa, pensou Ana. Uma arqueira com as orelhas coladas ao chão não parecia exatamente a definição mais adequada de “pronta para combate”. De qualquer forma, ela preferiu não comentar. Até porque, apesar da postura estranha, Júlia não tinha o costume de brincar em serviço. Além disso, Ana sentia também: uma vibração inquietante percorria discretamente o solo, anunciando problemas futuros imediatos.

    Júlia ergueu-se num salto, olhos arregalados e tom alarmado:

    — Tá vindo da direita!

    — Armas, agora! — ordenou Ana com urgência, torcendo internamente para não soar tão apavorada quanto realmente estava.

    Antes que qualquer um deles tivesse tempo de respirar fundo ou questionar a lógica por trás do comando, o chão explodiu em terra e poeira, dando origem a algo que Ana só pôde classificar mentalmente como um “tamanduá-bandeira”, embora o termo agora fosse extremamente inadequado para descrever aquilo. A criatura era grande, grande o suficiente para colocar no chinelo o lobo-guará monstruoso que haviam enfrentado dias antes, e definitivamente mais perturbadora.

    Seu corpo lembrava em grande parte a silhueta do animal original, mas se alguém resolvesse imaginar, seria um tamanduá com a proporção e o peso aproximado de um Fusca. As patas musculosas terminavam em garras que pareciam feitas de obsidiana, longas e brilhantes sob o sol, e seus movimentos deixavam marcas fundas na terra seca. A característica mais perturbadora, no entanto, não eram as garras, ou mesmo o tamanho absurdo. Era a pele, ou talvez fosse melhor chamar de carapaça: um mosaico perturbador de tufos de pelos grossos e placas irregulares, espessas e ásperas, semelhantes a camadas de rocha vulcânica. Cobriam-lhe o corpo como uma armadura natural, com pequenas rachaduras por onde se via tanto a carne exposta quanto uma espécie de líquido viscoso e escuro que Ana não tinha o menor desejo de analisar mais de perto. Não naquele momento, pelo menos.

    Os olhos pequenos e completamente pretos eram ridiculamente desproporcionais ao tamanho do animal — duas minúsculas manchas negras perdidas naquela cabeça enorme. A expressão geral transmitia uma sensação estranha de raiva e confusão existencial, o que, levando em conta sua aparência, fazia sentido.

    Seu focinho, ao contrário do que se poderia esperar de um monstro absurdo como aquele, permanecia fiel à forma original do animal. Estreito e longo, terminava em uma pequena boca arredondada, de onde escapava uma língua preta e absurdamente longa, pendendo solta no ar com um movimento oscilante e casual. Embora a boca fosse pequena, alguns dentes afiados — pequenos e estranhamente desnecessários — apareciam entreabertos, num esforço inútil para tornar a criatura ainda menos convidativa.

    Por fim, completando o pesadelo zoológico à frente, havia a cauda: longa, grossa e coberta por um denso pelo escuro, balançando lentamente de um lado para outro como se tivesse decidido assumir uma existência independente do resto do corpo. Em sua pelagem, havia algo semelhante ao padrão original do tamanduá-bandeira — uma faixa diagonal cinza-clara contrastando com o preto dominante, quase como um detalhe irônico da natureza, lembrando sutilmente o que aquele ser deveria ser antes de alguém decidir brincar de genética com ele.

    Os caçadores reagiram com uma agilidade que, francamente, não combinava com o evidente medo estampado em seus rostos. Cada um se espalhou para uma posição já treinada tantas vezes que Ana desconfiava que poderiam fazer isso dormindo — não que dormissem muito ultimamente.

    A criatura, no entanto, não parecia particularmente impressionada com o espetáculo tático dos jovens guerreiros. Avançou numa velocidade imprópria para sua estrutura anatômica duvidosa, abrindo suas longas garras negras num abraço desconfortavelmente convidativo.

    Ana desviou com uma cambalhota que quase funcionou perfeitamente, sentindo um arrepio nada agradável percorrer sua nuca. Júlia, aproveitando a distração pelo desvio, disparou uma flecha diretamente na criatura, apenas para ver o projétil ricochetear inutilmente contra as placas de pedra.

    — Odeio quando são desse tipo duro… — Não satisfeita, a ruiva desatou imediatamente o nó que prendia seu enorme martelo com um suspiro resignado. Avaliou brevemente o tamanduá mutante, procurando uma área vulnerável onde pudesse descarregar não só seu martelo, mas também a irritação crescente que acumulava em tempo recorde.

    Por outro lado, Alex, o lanceiro, já estava avançando em ataques ritmados e insistentes. Sua lança encontrava as brechas entre pele grotesca e placas rochosas, provocando pequenas faíscas a cada golpe. Na prática, o dano era mínimo, mas ao menos criava um espetáculo visual suficientemente bonito para disfarçar sua relativa ineficiência. Seguia incansavelmente atacando, determinado a eliminar o animal, mesmo que uma lasca de cada vez.

    — Pelo menos esse aqui não chega nem perto da velocidade que enfrentamos com a chefe — comentou o guerreiro, ganhando confiança suficiente para acrescentar comentários de zombaria enquanto mantinha o ritmo dos golpes. — Ela sim é um monstro de verdade.

    — Parece que alguém precisa treinar um pouco mais para aprender a ter bons modos — retrucou Ana, também permitindo-se soltar palavras bobas.

    O progresso foi incrível para apenas meio mês. Parece que minha escolha de talentos não foi ruim.

    Respirando fundo, Ana analisou a criatura com mais atenção. O susto inicial havia passado, e agora ficava claro que, embora aquele tamanduá gigante estivesse longe de ser inofensivo, ele não representava a ameaça devastadora que esperavam inicialmente. Nem sempre as classificações oficiais das criaturas correspondiam à realidade, mas, desta vez, a classificação como ameaça “E” parecia bastante apropriada. O tamanduá mutante era resistente, sim, mas não possuía a esperteza malévola dos ágeis guarás que haviam encontrado em outro momento menos agradável.

    Com os olhos ainda atentos à batalha, Ana aproveitou a pausa momentânea para estalar discretamente as costas. Seus dedos, segurando a faca, tremiam levemente, exigindo impacientes uma chance de participar mais ativamente, mas ela conteve o impulso. Uma ameaça moderada como aquela era mais útil como treino para a equipe do que como oportunidade para ela exibir habilidades já consolidadas. Além disso, alguém precisava supervisionar e garantir que ninguém cometesse erros particularmente idiotas.

    Foi durante essa breve reflexão que Marina ergueu as mãos rapidamente, fechou os olhos, apertando-os com força, e logo os abriu. No instante seguinte, uma luz forte e penetrante tomou conta do ambiente, forçando Ana a desviar o rosto rapidamente antes que a intensidade ferisse sua visão.

    — Não olhem diretamente! — gritou a manipuladora, com uma firmeza rara para sua personalidade, enquanto guiava a mana das ondas luminosas.

    A luz refletida nas placas rochosas do tamanduá criou múltiplos reflexos e ilusões brilhantes ao seu redor, confundindo-o completamente. O monstro girava frustrado, golpeando o vazio como alguém que tenta matar mosquitos invisíveis. Era exatamente o tipo de abertura que Felipe precisava para agir.

    — Perfeito, Marina! — exclamou ele, satisfeito, enquanto se posicionava rapidamente numa rocha mais alta para ter uma visão privilegiada. Apoiou cuidadosamente a escopeta improvisada no ombro, mirando diretamente nas juntas vulneráveis do monstro. Apesar do equilíbrio ainda imperfeito depois da perda do braço, ele disparou com uma precisão que o surpreendeu agradavelmente. O impacto, embora não fatal, fez a criatura rugir e recuar alguns passos.

    Não é tão ruim quanto pensei, posso me acostumar com isso…

    Felipe sorriu discretamente, sentindo o punho latejar com o recuo do disparo. A princípio, quando Ana lhe entregara aquela arma peculiar no dia anterior, sua reação havia sido rejeitá-la categoricamente. Parecia absurda demais, desajeitada demais. 

    Mas bastaram alguns minutos com sua velha espada — agora terrivelmente estranha e desconfortável após a perda do braço dominante — para perceber que precisava considerar seriamente a alternativa menos convencional. 

    Sentia-se como uma criança que pega uma espada de madeira pela primeira vez, ou seja, uma bela merda. Podia melhorar, é claro, mas quanto tempo demoraria isso? 

    Logo, com relutância, guardou o saco de pequenas munições e o objeto esquisito. Apenas agora, em seu primeiro uso real do item — afinal, não se treinava com algo de usos tão limitados. Balas eram relativamente raras — percebeu que talvez seu orgulho ferido pudesse aceitar essa mudança.

    Alex, aproveitando o breve espaço criado pelo ataque de Felipe, girou a lança com movimentos circulares exageradamente provocativos, trazendo a atenção da criatura de volta para si. Júlia não deixou essa oportunidade escapar e avançou, ostentando no rosto um sorriso repleto de satisfação vingativa. O martelo desceu com uma precisão violenta, atingindo diretamente uma das patas traseiras do monstro. Um estalo agudo soou pelo ar, acompanhado por fissuras profundas que se espalharam rapidamente pelas pedras atingidas, fazendo o tamanduá mutante soltar um gemido estranhamente humano e cair pesadamente para trás.

    Ana, porém, não permitiu que seu otimismo crescesse demais. Algo naquele movimento súbito parecia errado. Na verdade, tudo naquela criatura parecia errado, mas o importante era não a subestimar. “Ainda não acabou”, alertou mentalmente, observando com atenção a cauda do animal. Até então, aquele pedaço peludo e desajeitado do corpo mutante havia permanecido inerte e inofensivo, o que, em retrospectiva, já deveria ter levantado suspeitas.

    Dito e feito, a cauda tensionou-se abruptamente e impulsionou o corpo do monstro novamente para cima, num salto tão surpreendente que arrancou um suspiro incrédulo até mesmo da arqueira ruiva. Com um giro, usou a mesma cauda peluda para jogar os três guerreiros de proximidade para longe.

    A ferreira apenas cruzou os braços, sentindo que merecia ao menos algum crédito por ter previsto isso.

    Ana podia notar o movimento da cauda. Apesar de ter ficado quieta durante a luta, agora, com o monstro no chão, tensionou-se de forma extrema. Sem aviso prévio, lançou-o de volta para cima de forma surpreendente. A ferreira cruzou os braços.

    — Ei, pequena Mari, tá tudo bem? — perguntou Ana, aproximando-se cuidadosamente da manipuladora que observava o combate de perto, com o rosto pálido e respiração ofegante.

    Marina pareceu despertar de um breve transe de esforço, assentindo rapidamente com um sorriso fraco, mas genuinamente animado.

    — Sim! Eu… eu ainda consigo lançar luz mais algumas vezes — respondeu, com um entusiasmo que sugeria menos confiança e mais um esforço para agradar.

    — Bom, ótimo… Mas não faça isso de novo.

    — Ahn…? — Marina piscou, confusa. Sua expressão sugeria que estava pronta para ouvir uma reprimenda ou uma crítica construtiva, ou talvez ambas ao mesmo tempo.

    — Quero dizer, não repita exatamente o mesmo truque. Lembra do que conversamos antes? Teve algum avanço naquela coisa toda da refração?

    Marina mordeu o lábio, hesitando por um instante antes de responder, quase como se admitir sucesso fosse algo terrivelmente embaraçoso:

    — Ah, sim… Consegui, e um pouco de difração também. Mas não tenho certeza se sou boa o suficiente ainda. É complicado, um bocado complicado…

    — Tenho certeza absoluta de que é suficiente, Mari — afirmou Ana, dando uma leve batida de encorajamento no braço da subordinada, como quem tranquiliza uma criança antes de mandá-la para um palco lotado.

    Marina enrubesceu imediatamente, olhos arregalados numa surpresa quase cômica diante daquela repentina confiança que lhe era oferecida. Sua expressão era uma mistura curiosa de orgulho desconfiado e puro terror de descobrir que aquilo não passava de uma tentativa desajeitada de confortá-la diante do inevitável fracasso.

     — Vamos lá, me mostre.

    — Espera… Agora? — perguntou, incrédula.

    — Claro que sim. Você não quer ver seus amigos morrerem, quer?

    Ana apontou com tranquilidade fingida para o restante do grupo, que continuava a luta com eficiência questionável e um nível crescente de cansaço. A combinação deles contra aquele inimigo estava longe do ideal, e era óbvio para todos os envolvidos que precisavam urgentemente de uma solução melhor.

    — Não! — respondeu Marina, com uma determinação repentina que surpreendeu até a si mesma, endireitando as costas e apertando os punhos de um jeito resoluto. — Eu não vou deixar ninguém morrer.

    Ana apenas sorriu discretamente ao ver a garota endireitar as costas e apertar os punhos de forma resoluta. Talvez seu método de motivação fosse um pouco cruel demais, mas parecia ter funcionado bem.
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