Capítulo 318: Além Mar
Nekop e Dante reuniram-se com Flicks no convés inferior do Nokia, onde a reforma recém-finalizada dava ao lugar um ar completamente novo.
Diferente da semana anterior, quando o espaço ainda exalava cheiro de poeira, graxa e madeira crua, agora o chão não rangia a cada passo. As tábuas estavam firmes, polidas, encaixadas como se tivessem sido moldadas de uma só peça, e o ferro entre elas parecia fundido à madeira, parte de um único corpo.
Não apenas o interior havia sido renovado, o convés superior e as passarelas externas, como haviam visto no dia anterior, também estavam refeitos. A embarcação, antes marcada pelos impactos da última batalha, agora era um reflexo da recuperação e disciplina da nova tripulação.
Dante sentou-se em um banco baixo de madeira reforçada, o olhar perdido por um instante. Não pôde evitar lembrar de Clerk, o velho carpinteiro levaria semanas, talvez um mês e meio, para fazer algo parecido. Flicks havia feito em poucos dias. A diferença entre habilidade e experiência, ele pensou, é o tempo que se economiza entre os erros.
Flicks limpou o suor da testa com o antebraço e, ao se virar, encontrou os dois o observando.
— Parece que acabou, finalmente. — Ele soltou o ar com força. — Fiz tudo que estava ao meu alcance.
— Está ótimo — respondeu Nekop, sem tirar os olhos do caderno em suas mãos. Ele rabiscava algo rapidamente, mas o olhar estava concentrado. — Os materiais que sobraram serão estocados. As ligas que você mencionou foram usadas pela metade. Vamos guardar o restante para quando for necessário. Mas ainda temos um problema: as Pedras Lunares.
Flicks sentou-se numa cadeira de encosto largo, relaxando como alguém que carregou peso por horas.
— Esse problema… — murmurou, com uma ponta de cansaço na voz — pode ser resolvido se contratarmos um Artesão Energético. Gregoriano tinha razão. No fim das contas, eu não sei lidar com essas coisas. E já passei da idade de querer aprender.
— Sim — confirmou Nekop, as palavras surgindo e sumindo no papel à sua frente, enviadas diretamente para as páginas indestrutíveis que Sinora espalhara em suas viagens sob a bandeira de Bulianto. — Já estou à procura de alguém com esse perfil.
Ele fechou o caderno com um leve estalo, marcando a transição para o próximo assunto.
— Nossa próxima reunião será com o Convidado — disse. — Como marcamos, será amanhã, no mesmo local de antes. Mas duvido que sejamos recebidos com entusiasmo.
— Você sabe lidar com ele? — perguntou Dante, cruzando os braços.
— Ele já tentou ser capitão de frota algumas vezes, mas sempre foi preterido pelos outros. — Havia um tom de pesar em sua voz. — Eram bons homens. Ainda não entendo como foram derrotados tão facilmente.
— Talvez não tenham sido.
A voz feminina os interrompeu. Todos viraram-se para a porta.
Uma mulher estava ali, apoiada no batente. O rosto marcado pela dor, mas firme. Usava uma cota de malha leve, sem armas à vista. Seus cabelos loiros encaracolados caíam sobre os ombros, entremeados por uma mecha escura que serpenteava pelo couro cabeludo como uma linha de carvão. Nekop arregalou os olhos, levantando-se de imediato.
— Sinora!
O anão caminhou com rapidez, a mão estendida em respeito.
— É uma honra reencontrá-la. Por favor, entre.
Ao lado dela, um curandeiro sustentava seu outro braço, ajudando-a a avançar com calma. Mas antes de alcançar a cadeira, Sinora parou diante de Dante. Inclinou a cabeça numa reverência curta, mas firme.
— Obrigada por cuidar dos meus amigos, senhor. — Sua voz era grave e gentil. — Gostaria de conversar depois sobre os planos que tem para nós. Ouvi dizer que nos tornamos… fantasmas.
Dante riu, fazendo sinal para que ela se sentasse ao seu lado.
— Tivemos que agir assim para sobreviver. Foi uma tática que incomodou alguns, sim, mas não é definitiva. — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos. — Vamos nos encontrar com antigos colegas de Bulianto, mas… o que quis dizer com os capitães não estarem mortos?
Sinora cruzou as pernas com cuidado, e sua expressão tornou-se sombria.
— Eu descobri algo quando lutei contra Bastardo. A maioria dos planos dele tinha como objetivo enfraquecer e desestabilizar Bulianto. Algumas das informações que você recebeu, Nekop, não eram verdadeiras. Uma delas era a morte dos outros dois capitães de frota. Eles não foram derrotados. Foram… lançados.
— Lançados? — repetiu Flicks, inclinando-se para frente.
— Para um lugar do qual poucos voltam. — Ela encarou Dante com firmeza. — A situação é pior que a morte. Eles foram jogados para uma área dentro do Lagmorato que não pode ser governada apenas com experiência ou razão. Ali, é preciso instinto.
Nekop sentou-se de novo, pensativo. Flicks se aproximou devagar.
— O Lagmorato — continuou Sinora — é um território imprevisível, cheio de desafios, mas há regiões específicas nele… regiões ocultas. Uma delas, onde os capitães estão, é chamada de Mundo Espelhado.
Dante franziu o cenho.
— Está dizendo que é… no fundo do mar?
Sinora balançou a cabeça.
— Mais do que isso. É além do fundo. Um reflexo distorcido da realidade. E eles estão lá. Vivos. Só que em um lugar onde ninguém deveria estar.
Dante cruzou as sobrancelhas. Era a primeira vez que tinha ouvido algo assim. Algo que nem mesmo o Lagmorato poderia afetar, além dele. Se isso fosse possível…
— Como eles foram parar lá?
— O Bastardo pode ter colocado uma informação falsa para atrasar Bulianto, mas o que ele não contou é que ele também possuí esferas diferentes das que tem nesse navio. — Sinora fez uma pausa, respirando fundo. — Foi o que ele usou para destruir meu navio e também o que deu mais força para o dele. Ele diz que diferente da Pedra Lunar, o que ele tem são Pedras Solares.
— Uma… Pedra Solar? — Nekop ficou de boca aberta. — Então, o poder dela deve ser…?
— Sim, maior do que temos no Nokia. Por isso quando acordei fiquei feliz em ouvir que viramos fantasmas, capitão. — Sinora apertou sua mão ao redor da dele, um sorriso dolorido. — Você não buscou vingança e não morreu por isso.
Dante ficou um pouco atordoado com a informação. Veronica nunca tinha falado sobre nada Pedras Solares. O Rastro era formado por Pedras Lunares, era o que tinha contado, mas… uma Pedra Solar, o que ela seria capaz de fazer?
— Por isso o Bastardo está louco atrás de você — firmou Flicks da ponta. — Ele precisa da Pedra Lunar desse navio. Já ouvi algumas informações, mas nunca levei a sério. Claro, histórias são forjadas em todos os cantos, mas sempre soube que Bulianto tinha essas pedras aqui, mas dizem que uma Pedra Lunar não é mais fraca do que uma Solar.
— Por que falam isso?
O Carpinteiro deu de ombros.
— Não faço ideia. Foi só o que eu ouvi.
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