Capítulo 70: Primeira Experiência (2/3)
Haramark era uma cidade localizada ao sul do território humano.
Havia dois motivos pelos quais Seol Jihu escolheu essa cidade como seu destino.
Primeiro, era a única cidade onde o alcance da Farmacêutica Sinyoung não se estendia; e segundo, os Terrestres tinham liberdade total nesse lugar, o que era bem diferente de outras regiões.
Claro, se havia pontos positivos, também havia negativos.
Um deles era a segurança, que era tão ruim que Haramark havia ganhado o apelido de Cidade do Crime.
Também existia uma família real nessa cidade, e eles ao menos tentavam impor algum tipo de ordem, mas a verdade era que já haviam deixado de interferir nos assuntos dos Terrestres há muito tempo. Não havia o que fazer, já que todas as organizações que participaram da rebelião haviam sido forçadas a transferir suas sedes para essa cidade.
Outro ponto negativo era o fato de que a cidade ficava muito próxima da linha de frente. Certo, guerra e Terrestres andavam lado a lado, mas Seol Jihu ainda era apenas Nível 1.
O motivo pelo qual ainda estava indo para lá, no entanto… Bem, tecnicamente falando, o Castelo de Haramark não ficava exatamente nas regiões de fronteira.
Quanto à segurança, todo lugar era praticamente igual, com exceção de Scheherazade. E, por conta da guerra em curso entre os humanos e a aliança de seres extraterrestres e outras espécies, ele achava que os humanos mais poderosos não teriam tempo para se preocupar com o que acontecia por ali.
Kim Hannah pensou por um tempo sobre o assunto, antes de concordar em deixar Seol ir para Haramark sob a condição de que ele não viajaria mais para o Sul.
E assim, ele confiou seu bem-estar ao carroção de madeira bamba, com o coração cheio de expectativas e esperança, mas após cerca de duas horas, sua bunda começou a doer.
Ele já estava de saco cheio de ver a paisagem passando. Bem, não havia nada para ver de qualquer forma, já que era tudo o mesmo deserto desolado onde quer que olhasse.
“Que tédio…”
Se conhecesse alguém nessa viagem, talvez puxasse papo pelo menos; acabou pensando diversas vezes nos amigos e nos irmãos Yi enquanto a carroça seguia seu rumo.
Seol Jihu observava a paisagem marrom passar enquanto apoiava o queixo nas mãos, antes de desviar o olhar para os outros passageiros.
Havia mais três pessoas na carroça, além dele e do cocheiro, Maktan. Eram viajantes como ele, e, a julgar pelas roupas, também pareciam Terrestres.
O careca africano ao seu lado, que não parava de bocejar, tinha um físico enorme e usava uma armadura de aparência resistente. Além disso, seu imenso machado de batalha e suas lâminas afiadas chamaram a atenção.
Por algum motivo, esse sujeito observava com os olhos semicerrados o passageiro do lado oposto.
Seol Jihu acompanhou o olhar do homem e viu primeiro um rapaz jovem com rosto gentil e cabelos loiros bem penteados sentado do outro lado. Parecia ser um Sacerdote, a julgar pela túnica branca e a capa desbotada nas costas.
E ao lado dele havia uma mulher atraente, com um cabelo ruivo selvagem e um arco longo nas costas. Estava com os braços cruzados e as pernas também, a cabeça balançando levemente em um cochilo ritmado.
Justo quando Seol Jihu notou algumas sardas no nariz dela, uma voz rouca do homem africano soou ao seu lado. O guerreiro do machado estudava a mulher com o corpo levemente inclinado.
O sono dela não devia estar tão profundo, pois ela ergueu a cabeça lentamente e lançou um olhar irritado.
— O quê, eu?
O tom de voz descontente deixava claro o quanto ela estava irritada por ter sido acordada justo quando estava prestes a cair no sono.
— Isso mesmo. Você. Seu arco é bom, né?
A mulher manteve a expressão fria, mas o canto dos olhos se curvou levemente.
— Bem, eu estava em Scheherazade por causa desse cara, afinal de contas.
— Por causa de um arco?
— Tinha umas coisas pra resolver também.
— Dá pra ver que é um arco longo feito pra guerra… Você, por acaso, é Nível 4?
A mulher balançou a cabeça.
— Não. Nível 3. Sou uma Rastreadora.
— Ohh, uma rastreadora, é? Bem diferente da aparência.
Ela estreitou os olhos, desconfiada, ao ouvir a exclamação surpresa do homem negro.
— Me acordou só pra perguntar isso?
— Tava curioso, só isso.
— Não me faz rir. Se terminou com as perguntas, quero voltar pro meu sono da beleza.
Diante da resposta ríspida, o homem negro sorriu de canto.
— Por que tá reagindo assim se já sabe como funciona? Quanto?
“O que ele tá falando agora?”, Como já estava entediado mesmo, Seol Jihu prestava atenção na conversa, mas acabou inclinando levemente a cabeça.
— …Ehew.
A mulher soltou um longo suspiro, como se já esperasse por isso. Respirou fundo por um momento antes de apontar para a boca.
— Cinco moedas. Níqueis.
— Hein, confiante você, hein. Que tal ir até o final?
Ela lançou um olhar de cima a baixo no guerreiro do machado antes de bufar.
— É difícil encontrar um brutamontes com substância de verdade.
— Só dá pra saber se tem o tamanho certo depois de conferir, não é?
O guerreiro bateu algumas vezes na própria coxa robusta, mas a mulher balançou a mão no ar.
— Tô fora. Não tenho o hábito de fazer isso em carroça em movimento.
— Eu acrescento mais uma moeda de níquel. Que tal?
— Ainda não quero. Se não gostou, paciência. Eu nem teria aceitado se não estivesse com o orçamento apertado depois de comprar esse arco.
O grande guerreiro lambeu os lábios e rapidamente puxou as moedas do bolso interno antes de jogá-las para ela. A mulher as pegou com facilidade e soltou um bocejo alto. Em seguida, levantou-se do lugar, coçou a nuca e sinalizou com o queixo para Seol Jihu.
— Com licença, vamos trocar.
Seol Jihu trocou de lugar com ela, ainda meio atônito. Então, ela se sentou encostando-se na coxa do grandalhão.
— Que tal tocar?
— Nada de ir lá embaixo. E, no momento em que botar a mão na minha cabeça, eu te mato.
— Heh, você é uma fera, hein?
O guerreiro soltou uma risada divertida antes de enfiar a mão enorme por baixo da blusa da mulher.
Aperta, aperta.
Seol Jihu assistia tudo meio abobalhado, até perceber que a mulher havia abaixado a cabeça no colo do guerreiro. Seol Jihu acabou soltando um soluço de puro choque. Desviou o olhar tardiamente.
“O q-que diabos eles tão fazendo?!”
Seu coração começou a disparar. Seria isso o tal choque cultural? Sua mente ficou completamente branca após ver algo que jamais imaginaria nem nos seus sonhos mais absurdos.
O Sacerdote assistia a tudo com uma expressão indiferente. Mas, ao ver o jovem ao seu lado corar intensamente e entrar em pânico visível, um leve sorriso substituiu seu semblante entediado.
— Primeira vez?
— ?
— Primeira vez vendo uma cena dessas?
— …Ah, sim. É.
O Sacerdote lançou um olhar surpreso para as duas lanças de Seol Jihu e falou num tom impressionado:
— Mas você parece ser pelo menos Nível 2… Ficou em Scheherazade o tempo todo?
Seol Jihu conseguiu recobrar o juízo o suficiente para balançar a cabeça afirmativamente.
— Hmm. Então é um cavalheiro, hein? Essa é sua primeira viagem para Haramark?
— Correto.
Será que era só impressão, ou a voz provocadora do Sacerdote soava um pouco como se estivesse tirando sarro?
— Se é sua primeira vez, deixa eles se divertirem. Diferente de Scheherazade, em Haramark a ideia de romance ainda arde forte, sabia?
Seol quase soltou um ‘Romance, é o cacete’, mas se segurou no último segundo.
— Você sabe como é. Nada de televisão, nada de computador, nada dessas coisas. Então, o que a gente faz aqui? Claro, tem as explorações e expedições, mas não dá pra sair em uma o tempo todo. No fim das contas, a gente come, bebe e trepa. Acabamos sendo mais fiéis aos nossos instintos básicos. No fim, são essas as únicas formas de passatempo que temos.
Seol Jihu não conseguia realmente se identificar com essa ideia, mas continuou assentindo. Bom, ele precisava se distrair de algum jeito, já que o barulho de sucção vindo do outro lado estava realmente lhe tirando a paciência naquele momento.
A verdade é que Seol Jihu achava infinitamente preferível focar na conversa com um Sacerdote amigável e sorridente do que encarar aquele par de malucos desinibidos se pegando em… espaço público.
O jovem Sacerdote continuou falando animadamente, até soltar um ‘Opa’, e estender a mão.
— Me chamo Alex. Sou um Sacerdote Investigativo Nível 3. Da Área 4. E você?
Seol Jihu hesitou um pouco antes de apertar a mão estendida.
— Eu sou… Seol. Guerreiro Nível 1 da Área 1.
— Hein? Nível 1?
O queixo de Alex despencou antes de cair na gargalhada. Ele levou a mão à testa.
— Ah, ah, agora entendi. Você não era um cavalheiro, era um novato!
Alex então cutucou levemente o jovem nas costelas com o cotovelo, exibindo um sorriso malicioso.
— Bem, quando chegar em Haramark, vai levar o choque da sua vida.
Seol Jihu só conseguiu sorrir sem graça ao ver os olhos risonhos de Alex.
A viagem se tornou muito menos entediante quando Seol começou a conversar com Alex. Já o Sacerdote, ficou empolgado demais com o fato de o jovem continuar ouvindo suas histórias, e acabou contando todo tipo de coisa para Seol.
Enquanto isso, a carroça deixou a área do deserto desolado e entrou numa nova região.
Chegaram a Zahrah após o pôr do sol, exatamente como Maktan havia dito.
Ao ouvir que se tratava de uma vila, Seol imaginou Zahrah como um conjunto de pequenas casas rurais com um número igualmente pequeno de habitantes, mas acabou se surpreendendo com o tamanho do lugar.
Alex explicou que ali viviam bem mais de mil pessoas, e que era possível encontrar repartições públicas, estalagens e mercados na vila. Também disse que se podia encontrar a maioria dos itens de necessidade diária nos mercados. Mas enfatizou que aquela vila recebia apoio de Scheherazade, e que as outras não eram nada parecidas com ela.
Sentindo-se exausto por passar o dia inteiro na carroça, Seol Jihu foi direto para o quarto alugado na estalagem depois do jantar.
Como seria sua primeira noite de verdade no Paraíso, a ocasião deveria ter um grande valor sentimental, mas acabou sendo um verdadeiro desastre.
A construção era bem frágil e, por conta disso, Seol ouviu o guerreiro do machado e a Rastreadora se pegando a noite toda. Tapar os ouvidos não adiantou nada: ele ainda conseguia ouvir os gemidos arfados do homem e os suspiros da mulher.
No fim, não conseguiu descansar direito, e, com uma expressão de puro cansaço, subiu na carroça ao raiar do dia seguinte, enquanto se preparava para partir.
Seol Jihu não pôde evitar de sentir certa raiva ao ver o homem e a mulher trocando risadinhas e conversando tranquilamente, mas assim que a viagem recomeçou e a carroça deixou Zahrah para trás, esses pensamentos aos poucos evaporaram de sua mente.
À medida que avançavam, a paisagem mudava cada vez mais. O solo avermelhado do deserto foi sendo coberto por grama e vegetação, e logo árvores começaram a surgir. Não demorou muito até que aparecessem árvores tão altas que chegavam a bloquear o céu.
A estrada também foi ficando mais acidentada. Mas ver a paisagem mudando enquanto respirava o cheiro da natureza tinha seu próprio charme. Depois de inspirar o ar fresco e limpo, o sono que não conseguira ter mais cedo começou a tomar conta de Seol.
Outra coisa que havia mudado era o comportamento do guerreiro do machado e da mulher Rastreadora, conforme se aproximavam de Haramark.
O guerreiro já não tentava puxar conversas obscenas, enquanto a Rastreadora sentava em silêncio, com o olhar mais afiado e atento.
— Dorme um pouco. Vai dar tudo certo. Devemos ficar bem pelas próximas seis horas.
Os olhos de Seol Jihu se fecharam suavemente após receber o “sinal verde”, de Alex. Ontem mesmo, ele achava impressionante ver a arqueira dormindo na carroça, mas agora, tinha certeza de que conseguiria fazer o mesmo.
“Tomara que a gente chegasse logo em Haramark…”
E então… quanto tempo havia se passado?
— …O que aconteceu?
— Falem baixo.
— Acorda ele…
— Espera, aquilo…
Seol ainda estava meio adormecido quando achou ter escutado algumas vozes. Em seguida, sentiu alguém sacudi-lo pelo ombro.
Ao despertar do cochilo, a primeira coisa que viu foi uma floresta escura. E, embora fosse apenas uma intuição, parecia que a carroça estava se movendo a uma velocidade bem maior do que antes.
— Acorda, Seol!
— Alex?
— Acordado? Uh?
— Onde…?
Antes que Seol pudesse terminar a pergunta, Alex levou o dedo aos lábios e sinalizou para que ele ficasse em silêncio. Seol Jihu fechou a boca e observou ao redor.
“Uma floresta?”
Mas aquilo não era a única coisa alarmante.
O grandalhão do machado mexia no cabo da arma, com uma expressão visivelmente inquieta no rosto.
Mais importante ainda: a arqueira estava com a orelha encostada firmemente no chão da carroça.
Ela estava extremamente concentrada. A ansiedade era fácil de notar em sua expressão.
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