Índice de Capítulo

    As tochas espalhadas pelas ruas de Beuha brilhavam com uma chama fantasmagórica em meio a névoa da noite. Alguns poucos transeuntes ainda vagavam pela cidade – comerciantes recolhendo suas barracas, e aventureiros voltando de um dia de caçada pelos arredores das ruínas exteriores, tal como Jonas e os outros faziam naquele momento. Ele carregava Eric, que não conseguia se manter em pé graças ao uso de seu poder. Jonas o vira usando uma vez. Viu como se lâminas invisíveis, lançadas de suas mãos, cortassem o ar e o que estivesse em seu caminho.

    Era algo útil em situações de perigo. No entanto, sempre que a usava, Eric não conseguia mais se mover, necessitando de ajuda para andar.

    Leandro os acompanhava, carregando em silêncio a duras penas os sacos com ratos mortos. Deixara de falar havia uma hora, muito provavelmente devido ao peso da carga.

    Eles sentiam o frio da noite, o que tornava a caminhada ainda mais longa e demorada. Ao passar por cada casa, Jonas sentia o aroma de uma comida diferente sendo preparada. Um cheiro que fazia seu estômago sentir-se mais vazio a cada passo. Após um dia comendo apenas pedaços de pão amanteigados após sair da estalagem da guilda, uma refeição decente era tudo o que desejava.

    Jonas viu as formas do prédio da guilda surgirem em meio às brumas rastejantes. O grande prédio robusto de pedra antiga erguia-se de forma amedrontadora em meio às casas menores e mais simples. Suas dezenas de luzes pareciam uma afronta à noite escura que se formava. E o som que reverberava por entre as pedras se espalhava como um deboche ao silêncio quase cerimonial do lado de fora.

    Jonas passou pelo arco de pedra que era a entrada. O som vindo da taberna ecoava por entre as paredes. As vozes, a música e o calor. O silêncio, o vazio e o frio. Ver aquele completo contraste era como ver um coração quente bombeando vida a um corpo frio. Ao menos era isso o que a guilda parecia ser para aquela cidade em ruínas.

    Jonas pediu para que Leandro levasse Eric escada acima, e, tomando os sacos cheios de ratos mortos, ele se dirigiu ao balcão de trocas. Uma mulher jovem, mas com olheiras e rugas de velhice em torno dos olhos, o atendeu com um sorriso cansado no rosto. Ela pegou a bolsa de ratos e começou a contá-los para realizar o câmbio da recompensa. Não demonstrou nojo ou desprazer na atividade, apenas uma tediosa monotonia típica de um funcionário experiente.

    Jonas olhou em volta enquanto a atendente contava os cobres. Após o prazo de um mês caçando e vendendo ratos, dormindo em um dos quartos em uma cama infestada de pulgas, se familiarizou a alguns rostos e nomes.

    Viu a “Corda Xadrez”, a banda que dava música ao ambiente já muito barulhento. Eram nômades que passavam uma temporada em cada cidade antes de viajar para a próxima. Tempo o suficiente para se tornarem conhecidos em cada lugar por que passassem. Viu os lenhadores de Borna, um grupo de grandes e musculosos homens sentados em volta de uma mesa, virando canecas ferventes em suas bocas. Eram conhecidos por fornecer grande parte da madeira usada nas construções da cidade, matando juntamente os monstros que viviam nas áreas desmatadas.

    Viu o conde rubro; um homem bêbado e bem vestido de meia idade que dizia ser da nobreza de algum país ao sul daquele continente. Adrien ou algo assim.Era conhecido por ser um vagabundo, embora sempre se mostrasse abastado. Ninguém acreditava verdadeiramente, mas concordavam com suas histórias quando a prata de sua bolsa reluziam nas bancadas.

    Um pequeno baque atingiu o balcão e Jonas olhou para baixo, vendo um saco de moedas lá posto pela atendente.

    — Agradecemos o seu esforço — disse ela, devolvendo também os sacos que continham os ratos mortos, já vazios.

    Jonas pegou os sacos e se despediu, tornando a andar pelo salão.

    Uma moeda de cobre por um rato. Recebera vinte duas ao todo. O suficiente para que os quatro membros de seu grupo passassem dois dias hospedados, e provassem de três refeições quentes.

    Era um preço razoável, segundo Eric, mas eles não poderiam viver disso se quisessem subir na hierarquia.

    As palavras dos centos lhe vieram à memória. A forma superior como lhe olharam, a indiferença com que lhe trataram, o desgosto em suas formas de agir e falar, a forma humilhante como toda a situação se deu. Jonas estava cansado de humilhações desse tipo, de ser tratado como um ser de uma raça inferior. Recebera a sua cota na vida anterior.

    Quando os clientes de sua mãe entravam pela porta, ele se obrigava a sair. Caminhava pelas ruas de seu bairro, suportando os olhares dos adultos. Pena, indiferença, nojo.

    “O filho daquela mulher…”, era o que ele achava que deviam pensar – e talvez dizer uma para os outros. Via os pais se afastarem com suas crianças ao o verem se aproximar. Jonas lembrava de sentir tristeza pela atitude das mulheres, e raiva pela dos homens. Principalmente quando percebia que alguns deles eram clientes de sua mãe. Talvez sentissem medo que ele contasse a suas queridas esposas o que faziam por detrás dos portões pretos, ou contaminasse seus filhos com histórias que apenas adultos deveriam saber.

    O pior, no entanto, era quando alguns garotos mais velhos que sabiam a ocupação de sua mãe o cercavam.

    Lembrava dos xingamentos, dos apelidos e das risadas. Brigara tantas vezes contra eles que virara costume voltar para casa com roupas rasgadas e marcas roxas espalhadas pelo corpo. Aprendera a apanhar antes de aprender a bater. E se tornaram bom em ambos.

    Ainda assim, isso era melhor do que ficar em casa encolhido no canto de algum cômodo escuro, escondido fora da vista dos clientes. Preferia ouvia as ofensas dos garotos a ouvir os sons lascivos nojentos que se propagavam pela casa. Preferia apanhar na rua do que apanhar de sua mãe em casa quando algum homem o via e saia antes de pagar. Preferia que o chamassem de “filho da puta”, do que ver tal coisa na prática.

    Preferia apenas o fim daqueles dias. E ele veio, assim como a vida junto a sua mãe – que após isso, nunca mais o olhou como um filho.

    Uma risada o trouxe de volta ao salão em que estava. Um som espalhafatoso de um homem espalhafatoso, com os braços envoltos em duas jovens e belas mulheres, que demonstravam expressões nojentas de prazer alcoólico.

    Jonas atravessou o salão passando por entre os aventureiros que iam e vinham. Ao passar pelo fluxo em movimento, aspirou o cheiro nauseante da mistura de uma dúzia de perfumes e grunhiu em desagrado. Sentiu que iria morrer sufocado se respirasse aquilo por mais tempo. O cheiro o deixou quando ele alcançou os degraus, subindo a escada.

    No segundo andar, sons de conversas e brigas podiam ser ouvidos através das portas dos quartos, junto de outros menos agradáveis de se ouvir. Ele chegou ao seu e abriu a porta, sentindo uma sensação de alívio ao entrar no cômodo.

    Graça estava sentada em uma das camas, com Leandro encostado ao seu lado contando-lhe em meio a sorrisos alguma coisa que lhes ocorrera no dia. Eric estava deitado de bruços na outra. Jazia como se tivesse sido jogado ali naquela posição.

    Jonas fechou a porta. Ao perceber entrando, o rosto da senhora pareceu mudar de alguma forma.

    — Jonas, meu querido, o que foi? — perguntou ela.

    Jonas fugiu de seu olhar piedoso e da pergunta. Atravessou o quarto e sentou-se na cama em que Eric jazia jogado. Ao perceber que o olhar da mulher ainda o acompanhava, suspirou e lhe deu alguma resposta.

    — Não nada demais, é só o cansaço do dia.

    A mulher não mudou suas feições ante a resposta, mas deixou-se ser distraída pela tagarelice de Leandro, que voltara a falar.

    Jonas, se afastando da conversa, aproximou-se da janela, com uma súbita vontade de abri-la para aspirar o ar puro da noite. Até lembrar que ela estava presa e não era possível tal coisa. Passou a espiar pelo vidro ao movimento na rua – ou a falta dele para ser preciso.

    As brumas noturnas tornavam a noite mais densa e sombria, impedindo de ver algo além do brilho fosco formado pelas tochas e lamparinas espalhadas pela cidade, causando a sensação de isolamento em Jonas dentro daquele prédio grande demais em meio a outros tão pequenos.

    As vezes ele via sombras e vultos, parecidos com os de fantasmas e demônios que via nos filmes de terror. Mas ele sabia que eram pessoas normais ocultas por aquele véu enigmático e assustador.

    De repente lhe veio a dúvida se ele também pareceria uma assombração quando lá fora, revestido por tal manto.

    “O que estou fazendo olhando vultos?”

    Soltou um longo suspiro, deixando sair todo o ar que parecia haver em seus pulmões. Torceu para que Graça não notasse.

    — É melhor a gente se apressar, Jonas. Vai ficar tarde — observou Eric.

    Jonas acenou afirmativamente com a cabeça e foi até o armário do quarto, pegando uma muda de roupas. Eric e Leandro já tinham uma cada um.

    — Voltamos logo — Leandro avisou a Graça, que assentiu com a cabeça e depois respondeu:

    — Depois que voltarem, há algo que preciso falar com vocês.

    Jonas e Leandro trocaram olhares curiosos e Eric ergueu uma sobrancelha.

    — E o que seria? — perguntou ele.

    — Vão tomar banho e jantar, depois eu digo — retorquiu ela em seu tom gentil.

    Os três se despediram e saíram do quarto com certa hesitação, caminhando pelos corredores que cheiravam a vinho e perfumes nauseantes.

    — O que acha que é? — Leandro perguntou abertamente.

    Eric deu de ombros em um movimento banal. Não parecia se importar tanto com a velha mulher.

    — Talvez algo sobre tomarmos cuidado nas ruínas ou coisas assim. Nos repreender por nos arriscarmos tanto. Coisa de gente mais velha — disse ele.

    “Coisa de mãe…”, Jonas pensou com o rosto de sua avó na mente. Não se recordava, porém, de sua própria mãe demonstrando tal coisa.

    Eles desceram as escadas e saíram do prédio da guilda em direção a casa de banhos mais próxima. Era dito ser comum que em cada cidade erguida por um assentamento da guilda haja mais casas de banho e ferreiros do que templos e padeiros.

    Jonas vira vários ferreiros na cidade, embora não fossem lá com muita frequência. As armas e armaduras de melhor qualidade estavam acima do preço que poderiam pagar. Havia também muitas lojas de poções e acessórios, porém nenhum dos vendedores era simpático a aventureiros claramente novatos e não os mostravam suas mercadorias. Coisa que atrapalhava o grupo de conseguir equipamentos melhores, ou qualquer conhecimento sobre eles. Os aventureiros experientes também eram reservados quanto a seus próprios truques, habilidades e acessórios, negando-lhes qualquer conselho mais específico além de “Não fique em nosso caminho”.

    As casas de banho, no entanto, eram outra questão: havia ao menos cinco em toda a cidade e todas podiam ser usadas por uma moeda de cobre. Eles foram a que estava a uma esquina da hospedagem – que assim como o prédio da guilda, era uma construção de pedra antiga, reformada quando o lugar foi reerguido para ser um assentamento.

    Eles pagaram a taxa pública a um velho sentado ao lado da porta em um pequeno banco de madeira e entraram.

    Jonas logo sentiu o ar quente marcar-lhe o rosto. Demorou alguns passos para se acostumar à súbita mudança entre o frio úmido da noite e o abafado interior do lugar. Caminharam pelo corredor que terminava em duas entradas separadas. Uma placa de madeira com símbolos diferentes escritos diziam o sexo que devia passar por cada uma. Nem Eric, Leandro ou Jonas não a entendiam, mas por uma experiência infortúnia sabiam que deviam seguir pela da direita, e assim fizeram.

    Após ela, havia antecâmara com cestas onde se devia por roupas e objetos que se estivesse carregando. Um homem segurando um porrete vigiava a todos por trás de uma mesa rústica.

    Os três tiraram as roupas e entraram na sala de banho. Era grande o bastante para comportar três piscinas retangulares com cerca de oito metros de comprimento. A água quente liberava vapores que enchiam o local. Não era natural, sendo aquecida por fornalhas e liberada por um chafariz na extremidade oposta à entrada.

    O lugar jazia quase vazio, à exceção de alguns homens banhando-se com sabão na beirada da água.

    Jonas e os outros demoraram alguns dias para se acostumar com a ideia de ficarem nus junto a outros homens, mas com o tempo deixaram essas inibições de lado. A sensação de estar limpo era bem melhor do que a sujeira envergonhada. Ainda assim, Jonas evitava olhar para os outros.

    Após alguns minutos naquela sauna quente e abafada, os três vestiram suas roupas limpas e saíram do lugar, voltando à sede da guilda.

    Foram até a taverna e pediram no balcão por comida e bebida para quatro pessoas. Jonas e Leandro conversavam sobre a música tocada enquanto esperavam, Eric parecia distraído olhando para todos os cantos que seu pescoço pudesse virar. Seu olhar se fixou em uma certa direção e ele sorriu. Jonas seguiu o olhar do amigo, mas não viu nada além do conde rubro caído desacordado sobre uma das mesas, com alguns homens próximos a fazer-lhe chacota.

    Jonas encarou novamente o amigo, que sorria de canto de lábios.

    — O que foi? — perguntou, inclinando-se sobre ele para ser ouvido.

    Eric o olhou de volta, porém ambos foram distraídos pelo atendente que trouxe duas bandejas com pratos e tigelas de comida. Carne de coelho, guisado de pato vermelho com vegetais cozidos, pães e sucos de frutas doces desconhecidas.

    — Por favor, devolvam-nas quando terminarem — pediu ele. Os três assentiram.

    Jonas então tornou a olhar para Eric, que pegando a bandeja disse:

    — Depois falo.

    Os três subiram novamente as escadas em direção ao quarto, encontrando Graça em frente a janela, observando o lado de fora. Ela se virou quando a porta abriu.

    — Ah, finalmente chegaram! — falou alegremente.

    Jonas teve uma boa visão do lugar em que deveria estar o braço da mulher e memórias sombrias sobre aquela noite lhe vieram à cabeça.

    — Melhor comermos logo ou vai esfriar — Ela disse, fazendo menção para que eles pusessem os pratos no chão.

    Não comiam na taverna pois Graça detestava a música e o cheiro de álcool do lugar. Por isso, decidiram comer na tranquilidade do quarto, onde teriam menos chance de um bêbado cair em cima de sua comida.

    Jonas não detestava a ideia, mas não sentia a mesma paz e calmaria que os outros deviam sentir. Ele continuava a ouvir a música abaixo e as vozes dos outros hóspedes nos quartos ao lado.

    Antes da refeição Graça fez uma prece, dando graças pela comida. Então eles avançaram, matando a fome do dia. O guisado, a carne, o pão e o suco. Não eram ruins, mas Jonas sentia falta da feijoada de sua avó, e dos pastéis da venda ao lado da escola. Sentia falta dos sabores de seu mundo. Sentia falta dos sabores que nunca provou. “Queria ter ido naquela pizzaria”, pensou. Mas não foi, porque ela recusou. Ela recusou muitas coisas.

    Em pouco tempo os pratos estavam vazios e os estômagos cheios. Leandro deitou-se de costas, com as mãos na barriga, que inflava e se encolhia lentamente. Eric permanecera sentado com as pernas esticadas com as mãos voltadas para trás, apoiando o corpo.

    Jonas pensou em se levantar e deitar em uma das camas para descansar, mas a voz de Graça atraiu sua atenção.

    — Meninos, acho que é melhor eu falar com vocês — Enquanto falava, ela recolhia os pratos e talheres da melhor forma que conseguia com o braço que ainda tinha.

    Ao verem isso, Jonas, Leandro e Eric se endireitaram e a ajudaram no serviço.

    — Ah, obrigada, meninos.

    — O que a senhora queria dizer? — Jonas perguntou.

    Graça limpou a garganta antes de voltar a falar. Todos voltaram a sua atenção nela.

    — Eu vou com vocês amanhã. Estou cansada de continuar aqui, sem fazer nada enquanto vocês se esforçam.

    Eric suspirou, baixando a cabeça.

    — É melhor não — Leandro se adiantou em responder —, lá fora é meio perigoso e a senhora está machucada.

    — Estou bem — afirmou teimosamente Graça. — Os remédios que vocês compraram fizeram eu me sentir melhor. E não posso continuar parada aqui enquanto vocês saem todos os dias.

    Jonas olhou para o olhar sério da mulher, lembrando-se de seus avós insistindo que podiam fazer uma tarefa árdua apesar da idade. 

    “Coisa de gente velha!”

    Coisa de mãe.

    — Mesmo assim, senhora, não acho que vá ser de muito ajuda, pelo menos por agora — disse Eric, sem se importar em ser gentil com as palavras.

    Graça tomou ar antes de falar:

    — Olhe, escute aqui, rapaz; só porque estou desse jeito, não significa que sou inválida ou que precisam me ver como um peso. Precisam de alguém pra cuidar de vocês também.

    Jonas se preparava para intervir e encerrar a aparente discussão que se iniciaria quando Eric tornou a falar.

    — Não vai ser necessário, pois não vamos caçar nos próximos dias.

    Todos lhe deram um olhar surpreso.

    — E vamos fazer o que? — Jonas perguntou.

    — Amanhã, vamos descer lá embaixo e beber um pouco com o conde rubro.

    A resposta trouxe curiosidade na face de Leandro, confusão em Graça e a incredulidade em Jonas, que se perguntava o que se passava na mente de Eric.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota