Capítulo 207 - Escadaria
— Ma-Madame…? — O nome saiu torto, tropeçado, como se estivesse tentando se lembrar se devia chamar de senhora, de chefe, ou de qualquer outra coisa. O espanto estava estampado no rosto de Rafael, e por um instante, ficou claro que ele teria preferido enfrentar um incêndio.
Então, como quem acorda de um sonho ruim, piscou e lembrou da pergunta.
— Ah! Não! É que… preciso manter a ordem com o pessoal novo, sabe como é, tá cheio de baderneiro aparecendo desde que os Grandes Cinco caíram…
— Sei…
— É sério, Madame! — insistiu ele, suando como se alguém tivesse acendido um forno atrás da nuca. Puxava a gola da camisa com nervosismo sincero, e ainda assim, não convencia ninguém. — Se tivesse avisado que vinha, podíamos ter preparado uma recepção melhor! Vamos, idiotas, soltem eles!
Os guardas trocaram olhares, mas logo começarem a destravar algemas — mais estéticas do que funcionais — com agilidade.
Madame riu — um som leve e, de alguma forma, sutilmente gentil — enquanto se aproximava com passos tranquilos
— Então os Grandes Cinco não estão mais no poder… — comentou, pensativa. — Mas e ela? Tá por aí?
— A chefe Catarina não pisa nos festivais, tá mais viva do que nunca. Até demais, se quer saber…
— Ótimo, jovem. Consegue avisar que trouxe alguns convidados?
— Não sou mais tão jovem, Madame… — Rafael riu, mas o som saiu mais como um pigarro nervoso do que como riso genuíno. — Mas claro, claro. Vou mandar alguém agora mesmo. Quer que eu te acompanhe na subida?
— Me acha tão velha assim?
— Não foi isso que eu quis dizer!
— Eu tô brincando. Não precisa, ainda lembro o caminho.
— Então beleza!
Suspirando, Rafael virou-se para Ana, ainda com o suor colando os cabelos ao rosto, e forçou um sorriso torto. Para seu alívio, ela respondeu com um aceno breve. Um claro gesto de quem aceitava uma desculpa silenciosa.
— Mas… — ele emendou, olhando ao redor como se esperasse que ninguém mais o ouvisse — vocês ainda vão ter que pagar, certo? A situação por aqui não tá fácil. Talvez nem mesmo nos encontre por esses mares nos próximos anos.
Alex suspirou. Havia ficado com a distinta honra de ser o cofre ambulante do grupo, encostou as costas na parede, apalpou as pequenas trouxas escondidas sob a armadura e sentiu o peso de cada uma. Com precisão treinada e zero entusiasmo, escolheu a que parecia mais apropriada, e a lançou na direção de Rafael.
— Deve ser o suficiente, certo?
— Hm… não é moeda do porto, então sei lá — respondeu o delegado, chacoalhando o conteúdo com o mesmo cuidado de alguém examinando pedras em um sapato. — Mas tá bom. Só controla a porra da pisada, tocha humana.
Alex apenas balançou a cabeça, resignado. A piada não era boa, mas se adequava bem. Quase sorriu.
Ao lado de Ana que ainda mantinha um sorriso quieto, ele saiu. E Mare Euphoria, como toda cidade suja que se preze, os engoliu de volta com o mesmo desinteresse com que recebe chuva.
— Dá um pouco pra eles também, não vamos poder levar tanta gente lá pra cima — disse a leitora taverneira, focando o discurso no restante da tripulação. — Vocês aí, senhores e senhoritas — continuou, girando vários punhados de moedas de ouro que Alex a entregou. — Gostando ou não, aproveitem Mare Euphoria. Não vamos ver uma cidade desse tipo tão cedo.
Os rostos ao redor reagiram devagar, como se o cérebro de cada um estivesse consultando o estoque emocional antes de decidir se sorria, chorava ou apenas dava de ombros. No fim, todos optaram pelo sorriso. Sorrisos discretos de quem aceita o presente porque sabe que não deve contar com o próximo.
Tinham acabado de sair de um reino ainda em carne viva. Muralhas rachadas, famílias partidas, corpos que nem tiveram tempo de esfriar antes da partida. Mare Euphoria, com seu cheiro de ferrugem velha, parecia um paraíso entorpecente bom o suficiente para acalmar a mente por um tempo.
Ninguém ali estava exatamente no clima de festividade, mas também não eram tolos. Recusar bebida de graça era visto como sinal de insanidade em muitas culturas, e na da antiga Insídia em particular, também poderia ser interpretado como ofensa.
Se despediram dos líderes com acenos lentos. Estavam cansados. Mas mais do que isso, estavam cansados de estar cansados.
— Talvez precisemos de algumas férias quando tudo isso passar — murmurou Ana, em estranha autoconsciência. Madame e Alex, ao seu lado, concordaram com um suspiro pesado.
O trio então seguiu caminho. Passos lentos, sem pressa, subindo pelas escadas estreitas e tortuosas que cortavam os andares da cidade. O ferro desgastado rangia sob as botas, e o som ecoava entre as paredes como se a própria estrutura reclamasse da movimentação.
Madame ia na frente, com a certeza de quem conhece cada dobradiça, cada solda mal feita daquele labirinto vertical. Os outros dois tentavam o memorizar, observando a cidade com olhos que não se deixavam enganar pela pintura mal feita.
Não era um cortejo, nem uma missão. Era só gente subindo escadas. Mas, de alguma forma, havia… algo naquele movimento. Talvez fosse o silêncio cúmplice entre os três, ou o modo como o ferro do corrimão esfriava a palma de suas mãos, lembrando que estavam vivos. Ou talvez fosse só a cidade inteira observando — não com olhos, mas com aquele faro coletivo que lugares assim desenvolvem com o tempo. O tipo de consciência que não aparece em mapa, mas sabe quando alguém estranho chega perto demais da parte que ainda dói.
Lá de cima, mesmo ao longe, já era possível ouvir o burburinho da taverna. Gritaria abafada, copos tilintando com menos alegria do que o esperado e aquele cheiro inconfundível de álcool fermentado em lugar úmido. Não demorariam a chegar quando Madame quebrou a quietude.
— Não estranhem se ela for grossa. É só o jeito dela. A Catarina sempre foi uma taverneira… intensa.
Ana arqueou levemente uma sobrancelha, e Alex apenas bufou, o que para ele já estava se tornando quase uma forma de linguagem completa.
— Intensa como? — perguntou Ana, curiosa.
— Intensa irritante. Intensa que pode quebrar algumas coisas pra provar algum ponto. Intensa que talvez nos ameace… mas que tem bom coração. Em algum lugar. Eu acho.
A capitã acenou devagar, absorvendo a informação, antes de seguir de forma casual.
— Esse negócio todo de taverneiros… como funciona exatamente?
— Que “negócio de taverneiros”?
— Vai se fazer de burra, Madame? — disse Ana, rindo de canto de boca. Puxou do bolso a pequena coroa dourada, gasta pelos anos e pelos bolsos. — Tô falando disso! Um grupo alcoólatra que controla o mundo é algo que não se vê todo dia.
— Não controlamos o mundo… — Madame deu de ombros. O tipo de gesto que precede histórias longas, ou muito tristes, ou vergonhosamente épicas. — Mas… já não te contei sobre isso?
— Umas cinco ou seis frases dispersas. Coisas sobre “viver bem”, “proteger o direito de escolher o próprio destino” e uma bobagem poética sobre equilíbrio. Tudo há tantos anos que já não significam porcaria nenhuma.
— Bom… é isso, não tenho o que falar sobre o assunto.
Ana e Alex trocaram olhares, aceitando que não parecia ser hoje que suas dúvidas morreriam. Mas a rainha mercenária não desistiu.
— Tá. Então vou mudar a pergunta. Como tudo isso começou?
Madame parou no meio do degrau. Não por surpresa, mas por gosto. Saboreou a pergunta como quem sente o cheiro de algo que não esperava — algo antigo, mas bom.
E sorriu.
Um sorriso real. Raro. Um daqueles que não passa pela boca, mas escapa direto do tempo, vindo de lembranças que continuam valendo a pena, mesmo quando doem.
— Ah… sobre isso, acho que posso contar uma ou duas coisas…
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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