Capítulo 11: A Semente da Ruína
A floresta jazia morta.
Nenhum som de insetos quebravam o silêncio, nenhuma brisa suave ousava mover as folhas que não existiam mais – apenas a quietude sufocante de algo que espreitava no escuro, uma presença que se alimentava do vazio. As árvores, espectros retorcidos e enegrecidos, erguiam-se como dedos carbonizados em meio à neblina baixa e fria que se agarrava ao solo, testemunhas silenciosas de incontáveis batalhas e da lenta agonia da terra. O cheiro acre de enxofre, um resquício talvez do fogo que consumira a criatura alada ou da própria natureza daquele lugar, misturava-se ao odor metálico e penetrante do sangue seco – o seu e o de outras presas desafortunadas – saturando o ar já denso e pesado. Cada passo de Jatyr sobre o leito de folhas podres e terra úmida era um esforço, o som esmagado ecoando a exaustão que lhe pesava os ombros; seu corpo cansado um reflexo sombrio da paisagem devastada que o cercava.
O jovem guerreiro apertou a faca de osso na mão direita, o cabo liso e frio agora escorregadio de suor e do sangue que ainda escorria de seus ferimentos. O braço esquerdo latejava com uma dor pulsante e profunda – a ferida aberta por uma das garras afiadas da Kûara’ika, no confronto anterior, ainda não havia coagulado por completo, a carne rasgada um aviso sombrio de sua vulnerabilidade. Cada movimento, cada respiração mais funda, era um lembrete cruel de que estava vivo, sim, mas apenas por um fio, suspenso sobre o abismo do esquecimento.
— “Einar certa vez disse que até a sombra mais densa teme o fogo…” — a lembrança da voz rouca de seu mentor ecoou em sua mente cansada, um contraste doloroso com a realidade que o cercava. Ele olhou para suas mãos vazias, para a escuridão que se adensava. — “…mas o fogo que resta aqui, Velho Sábio, é apenas a chama teimosa da minha vontade.” Sua lança fora perdida na batalha com a criatura alada, seu arco, esmagado pela fúria da Kûara’ika possuída. — Só me restam a faca e a esperteza que você me ensinou, — Jatyr apertou a mandíbula com força, sentindo o gosto metálico e amargo do sangue em sua boca. Ele não tinha o fogo purificador das lendas, mas tinha o conhecimento do terreno, por mais hostil que fosse. Tinha a faca, um prolongamento de seu próprio braço. E tinha a mente, afiada pela necessidade e pela dor.
Um movimento sutil na escuridão à sua frente fez seus músculos enrijecerem. O vulto se moveu. Não era um movimento natural, não o deslizamento grácil de um felino caçando em seu território, nem o farfalhar assustado de uma presa menor. Era um arrastar irregular, um passo incerto e pesado, seguido por um estalo seco, como o de um osso quebrando ou um galho podre cedendo sob um peso antinatural. E então veio o som, um som que fez o sangue de Jatyr gelar em suas veias: um rosnado baixo, gutural, carregado de uma agonia e uma malevolência que pareciam vibrar no próprio ar, como se saísse das entranhas escuras da terra amaldiçoada.
A onça estava lá, a poucos metros, um amontoado disforme de carne corrompida e pelo enegrecido que outrora fora a Kûara’ika, predadora soberana e espírito respeitado da mata. Seus olhos, agora inteiramente tomados por aquela escuridão pulsante, fixaram-se em Jatyr. O ar cortou como uma lâmina afiada quando a Kûara’ika possuída pulou, um borrão de sombras e fúria.
Jatyr jogou-se para o lado, o instinto gritando, mas seus movimentos, pesados pela exaustão e pela dor, não foram rápidos o bastante. As garras negras, longas e curvas como foices, cortaram o ar como adagas, e a ponta de uma delas passou arranhando suas costelas com uma força brutal. Quente – o sangue escorreu por seu flanco, manchando suas vestes rasgadas, antes mesmo que a dor excruciante do ferimento chegasse com força total, roubando-lhe o fôlego.
“Você está lento, criança da floresta.” A voz não vinha da onça, cujos rosnados eram apenas bestiais e cheios de agonia. Vinha de dentro da cabeça de Jatyr, um sussurro gelado e íntimo, como um verme rastejando em seu crânio, cada sílaba carregada de um desprezo ancestral.
— Fala muito para quem não consegue me matar, espectro covarde! — Jatyr cuspiu no chão uma mistura de saliva e sangue, os dedos feridos apertando com mais força o cabo escorregadio da faca de osso.
A fera, ou o que a controlava, riu – um som horrendo que começou como o rugido profundo e gutural de uma onça enfurecida e terminou como o choro agudo e desesperado de uma criança perdida, um eco da própria alma atormentada da Kûara’ika presa naquele invólucro de pesadelo.
“Você cansa, pequeno guerreiro,” a voz de Anhangá continuou seu tormento, agora parecendo escorrer das árvores retorcidas, da terra enegrecida, do próprio sangue que pulsava em seus ouvidos feridos. “Seus músculos tremem sob o peso de sua insignificância. Suas cicatrizes, antigas e novas, ardem como brasas. Eu ouço seu coração, um tambor fraco e assustado, prestes a silenciar para sempre sob minhas patas.”
Jatyr cuspiu novamente, o líquido agora tingido de um vermelho mais vivo. Seus olhos, porém, queimavam com uma fúria desafiadora. — Então venha calar ele, sombra!
A fera, impulsionada pela voz de Anhangá que ecoava em sua mente, mergulhou como uma flecha envenenada, as garras dianteiras estendidas, buscando rasgar a carne de Jatyr. O jovem desviou para trás de um tronco retorcido no último instante, o farfalhar das garras da Kûara’ika roçando a madeira podre a centímetros de seu rosto. Mas ele não viu a cauda negra e segmentada da criatura, que chicoteou o ar com a velocidade de uma serpente, envolvendo seu braço esquerdo com uma força esmagadora. O som foi o de um chicote estalando em carne viva, seguido por uma dor lancinante. A pele de seu antebraço rasgou-se em quatro linhas paralelas e profundas, e por um instante de puro horror, ele vislumbrou o branco fantasmagórico de seu próprio osso antes que o sangue jorrasse, quente e vivo, manchando a terra escura.
Uma onda de náusea e vertigem subiu por sua garganta, o gosto acre de bile e metal enchendo sua boca. Ele apertou os dentes com força para não gritar, para não dar a Anhangá a satisfação de ouvir sua dor. Mesmo com o braço esquerdo pendendo em choque, inútil ao seu lado, seu braço direito, guiado por puro instinto de sobrevivência, moveu-se com a rapidez de um raio. A faca de osso riscou o pescoço da fera, buscando a artéria jugular, o ponto vital que Einar lhe ensinara a encontrar em qualquer presa. Mas onde deveria haver carne e sangue pulsante, apenas uma treva espessa e oleosa vazou da ferida, como se a criatura fosse feita de sombras solidificadas.
Anhangá riu, a voz ecoando na mente de Jatyr, fria e desdenhosa. “Sangue por sangue, Jatyr. Um bom começo. Mas o seu vermelho algum dia será negro e eterno como o meu?”
A onça, ou o que restava dela, recuou dois passos cambaleantes, e Jatyr, mesmo com a visão turva pela dor, viu – ou talvez, em seu desespero, quis ver – um lampejo de fraqueza, uma hesitação nos movimentos da criatura. O corpo de Kûara’ika estava perto, mas era evidente que a possessão de Anhangá cobrava um preço terrível. O que restava da nobre fera era pouco mais que uma casca carcomida, animada por uma vontade profana. O pelo negro, outrora lustroso e espesso, agora se soltava em tufos a cada movimento brusco, revelando por baixo uma carne enegrecida, quase mumificada, e ossos brancos que pareciam prestes a romper a pele repuxada. Seu corpo estava, literalmente, se desfazendo sob o poder corrosivo de Anhangá.
A pele negra e doentia descamava como cinzas de uma fogueira esquecida, os músculos expostos tremiam com espasmos violentos e incontroláveis, e por um momento, Jatyr jurou que o movimento da fera estava mais lento, mais desajeitado do que no início do confronto. “Está enfraquecendo…” o pensamento surgiu em sua mente como uma brasa de esperança em meio à escuridão. “O espírito… a sombra de Anhangá… está consumindo o corpo da Kûara’ika de dentro para fora!”
Jatyr pressionou os dedos no cabo de sua faca, o único pedaço de osso e pedra entre ele e a aniquilação. O suor escorria por sua testa, misturando-se ao sangue seco que manchava sua pele. Seu braço esquerdo ardia com uma dor lancinante, pulsando como um aviso sombrio de que suas forças também estavam se esvaindo. Mesmo com tamanho sofrimento, Jatyr manteve o olhar firme, o olhar de quem conhecia a dança da morte como ninguém, de quem aprendera com Einar que a caçada não era apenas força ou habilidade – era paciência, era esperar o momento certo para o bote, para o golpe decisivo.
Ele apertou os olhos, a dor quase o cegando, e concentrou-se no terreno ao seu redor, buscando qualquer vantagem, por menor que fosse. Havia uma pedra afiada e escura meio enterrada no lodo pegajoso a alguns passos, e mais além, um emaranhado de galhos pontiagudos e secos espalhados pelos lados de uma árvore caída. Se usasse o ambiente, se conseguisse atrair a fera para uma armadilha, talvez conseguisse atrasar a criatura, ganhar tempo. Precisava de tempo. Precisava fazer Anhangá errar, forçá-lo a gastar mais da energia vital da Kûara’ika.
O vulto enegrecido emergiu novamente da penumbra, o rosnado agora um som borbulhante e úmido. A onça. Ou o que restava dela, a casca profanada que Anhangá usava como marionete. “Cada golpe que ela desvia a custo… cada espasmo nos músculos dela… talvez se eu forçar mais… ela não vai aguentar. O corpo não vai aguentar o espírito sombrio.”
Ele deu um passo para trás, inclinando-se levemente para a esquerda, a dor em seu braço quase o fazendo desabar, fazendo parecer que estava tentando fugir em desespero. Era um truque. Um risco terrível, mas talvez sua única chance. Ele precisava que Anhangá, em sua arrogância, acreditasse que estava vencendo, que o jovem guerreiro estava finalmente quebrando. “Se eu sobreviver mais um pouco,” pensou Jatyr, o coração uma mistura de terror e uma esperança frágil, “ele mesmo se destrói. O hospedeiro não vai resistir.”
A criatura se movia como um reflexo distorcido do que já fora, um fantoche macabro dançando ao som da música da destruição de Anhangá. O peso de suas patas deixava buracos profundos no solo lamacento, e cada vez que ela tentava um bote, seu corpo vacilava, quase como se estivesse prestes a desabar sob seu próprio peso profanado. Jatyr podia sentir, com uma clareza crescente, que sua estratégia desesperada estava funcionando. Anhangá, em sua fúria e desprezo, fingia dominar a luta, mas era o próprio hospedeiro, a nobre Kûara’ika, que se consumia a cada movimento, a cada rosnado.
A podridão avançava visivelmente pelo corpo da Kûara’ika, a escuridão de Anhangá consumindo-a como um fogo lento e interno. Mas a fera, animada por aquela vontade profana, ainda estava de pé, seus olhos negros como piche fixos em Jatyr, prometendo uma agonia sem fim.
Jatyr semicerrou os olhos, a dor em seu braço uma brasa constante, mas sua mente agora fria e calculista como a de um caçador experiente. Cada detalhe do ambiente contava. Cada passo, cada movimento, deveria ser precisamente calculado. Ele não podia mais se dar ao luxo de errar.
Movendo-se devagar, quase se arrastando para não alertar a fera de suas intenções, ele usou o ambiente traiçoeiro a seu favor. Tocou uma das raízes grossas e expostas de uma árvore caída com a ponta do pé, testando sua firmeza no solo lamacento. Se conseguisse atrair a besta para ali, para aquele emaranhado de madeira e lodo, poderia fazê-la tropeçar, ganhar uma fração de segundo preciosa. Mais alguns metros à sua direita, havia um galho grosso de uma árvore quebrada, sua ponta partida formando uma lasca afiada como uma estaca, fincada no chão no ângulo certo para perfurar algo que caísse sobre ela com força.
A onça possuída se moveu, seus músculos travados em espasmos visíveis, o corpo tremendo sob o esforço de conter a corrupção que o devorava. O peso da presença de Anhangá sobre aquela forma animal era evidente, tornando seus movimentos poderosos, mas também cada vez mais desajeitados.
Jatyr recuou um passo, depois outro, conduzindo a criatura com a isca de sua própria carne ferida para o terreno traiçoeiro que havia escolhido. Um passo errado da fera, um movimento descuidado, e as raízes escorregadias poderiam selar seu destino. Era um jogo perigoso, uma dança com a morte, mas a única que ele podia jogar com as poucas cartas que lhe restavam.
O momento veio como um sussurro traiçoeiro no barro. A Kûara’ika, em sua fúria cega para alcançar Jatyr, avançou com um rosnado gutural. Sua pata dianteira, pesada e descontrolada, afundou entre duas raízes úmidas e cobertas de limo, e Jatyr viu – com a precisão fria e distanciada de um caçador que observa sua armadilha funcionar – o desequilíbrio tomar o corpo maciço da fera. O peso corrompido, impulsionado pela energia sombria de Anhangá, cedeu sob si mesmo. Houve um estalo horrendo, seco e cruel, quando o joelho da pata dianteira da criatura falhou, quebrando-se com um som que ecoou pela floresta silenciosa.
Jatyr se lançou para o lado no mesmo instante, saindo do alcance das garras que ainda tentavam atingi-lo, e usou o pé bom para chutar com força uma das raízes que prendiam a pata da onça, empurrando-a ainda mais para cima, desestabilizando-a completamente. O galho afiado que ele havia notado antes, a lança improvisada que a própria floresta lhe oferecera, estava ali, exatamente onde ele previra. O corpo da onça, em seu desequilíbrio e dor, caiu pesadamente sobre ele com o baque surdo de uma árvore tombando, a madeira pontiaguda perfurando seu flanco.
Um urro gutural e profundo rasgou o ar. Mas não era um urro de dor física, não o lamento da Kûara’ika. Era diferente. Era um som de pura fúria, de um orgulho ancestral ferido.
A lâmina improvisada de madeira atravessou a carne já apodrecida, mas não atingiu nenhum ponto vital, não o suficiente para matar a criatura, ou o espírito que a animava. Kûara’ika ainda se debatia no chão, o corpo tremendo violentamente como um animal tomado por vermes, o galho perfurando seu flanco, mas era pouco para um corpo possuído por algo que existia além da vida e da morte.
“Você quer me vencer com truques de caça, mortal insignificante?” Anhangá rosnou, sua voz ecoando diretamente no interior do crânio de Jatyr, carregada de um desprezo gélido. “Eu já era caçador nestas matas antes que seus ancestrais sequer aprendessem a temer o escuro, antes que soubessem meu nome!”
Jatyr, ofegante, mas com um brilho de desafio nos olhos, conseguiu esboçar um sorriso cansado. — E ainda assim você caiu, o grandioso Anhangá, o Juiz das Sombras, sendo jogado em velhos truques de um simples caçador.
Lembranças das batalhas anteriores, dos ensinamentos de Einar sobre os pontos fracos de cada fera, e a teoria lida nas notas secretas sobre a natureza dos espíritos que possuem corpos, convergiram em sua mente cansada. — A cabeça. Sempre a cabeça, — concluiu Jatyr, a voz um fio de determinação em meio à exaustão. Era onde a vida residia, onde o espírito, bom ou mau, deveria ter seu assento.
Com a faca de osso em punho, a única arma que lhe restava, ele avançou, cada passo uma aposta contra a morte. Três passos. O cheiro de podridão e enxofre emanando da Kûara’ika era quase insuportável. A fera, ou o que Anhangá fizera dela, ergueu-se aos tropeços, o corpo um amálgama de sombras e carne em decomposição. Um dos olhos azuis da onça, agora quase completamente engolido pela escuridão, pendia em uma cavidade de carne derretida, um espetáculo grotesco de sua profanação. Dois passos. A cauda da criatura chicoteou o ar atrás de si, mas o movimento era lento, desprovido da força e precisão anteriores. O corpo da Kûara’ika ruía por dentro, consumido pela energia devoradora de Anhangá, como o muriqui que ele enfrentara no templo, como os ossos de um morto que ainda tenta caminhar, animado por uma vontade que não lhe pertence. Um passo.
Jatyr saltou, um grito gutural escapando de sua garganta, uma explosão de toda a fúria, medo e determinação que lhe restavam. Impulsionou-se para frente e para cima, e com toda a força de seu corpo jovem e desesperado, cravou a faca de osso direto na cabeça da onça, um pouco acima do olho esquerdo que ainda brilhava com a escuridão de Anhangá. A lâmina entrou com um som viscoso e repugnante, cortando pele, osso, cérebro e a sombra que ali residia.
A criatura estremeceu violentamente, um espasmo que percorreu todo o seu corpo profanado. Das profundezas da ferida na cabeça, trevas densas, como um óleo negro e vivo, começaram a escapar, não como sangue, mas como cobras líquidas de pura escuridão, que tentaram se enroscar no braço de Jatyr, subir por ele, envolvê-lo, arrastá-lo para o mesmo vazio que consumia a onça. Ele largou a faca instintivamente, o cabo escorregadio de sangue e daquela substância escura. Rapidamente, deu um salto para trás, tropeçando em suas próprias pernas cansadas, caindo de lado sobre o chão frio e úmido. A fumaça negra que escapava da cabeça da Kûara’ika ergueu-se como uma espora em brasa, contorcendo-se no ar, e por um instante, Jatyr achou que ela fosse se dissipar, que Anhangá tivesse sido expulso.
Mas não sumiu completamente. A maior parte da fumaça negra se desfez com um lamento frustrado que ecoou pela igreja, mas a onça, com a faca cravada em seu crânio, ainda estava em pé, o corpo tremendo, mas seus olhos… seus olhos não mais carregavam a mesma intensidade sombria.
— Você não aprendeu nada, mortal? — A voz de Anhangá, embora ainda presente, soou mais fraca, um sussurro com uma calma que ainda feria, mas que parecia perder sua força. — Nem tudo que mata o corpo mata o que habita dentro.
— “Já ouvi algo assim antes…,” Jatyr pensou, a mente trabalhando febrilmente, buscando nos ensinamentos de Einar, nas notas secretas. “Lembro de Einar ter lido que espíritos teimosos, se não tiverem para onde ir, perdem sua existência quando seu hospedeiro morre… talvez Anhangá esteja com medo disso, de ficar preso nesta casca que se desfaz… deve estar tentando me enganar… não vai funcionar.” Ele se agarrou a essa esperança, a essa teoria fragmentada.
A criatura avançou, mas seus movimentos eram agora mais lentos, decididamente mais fracos. Jatyr recuava, o sangue ainda escorrendo de seu braço e da perna, cada músculo de seu corpo gritando por descanso, mas uma nova percepção começava a tomar forma em sua mente. Ele se lembrava. Lembrava de como o muriqui morria de dentro para fora no templo. De como os olhos da criatura alada, embora ferozes, não queimavam com a mesma escuridão devoradora que esta onça exibia antes de seu golpe. Ela estava… cedendo.
O corpo da Kûara’ika vacilava a cada passo. A pele escura se soltava em pedaços, como casca de árvore queimada. O músculo exposto tremia, falhava em sustentar seu peso. — Está… está te matando, não está? — Jatyr arfou, a voz um misto de dor e uma súbita, cruel compreensão. — Esse corpo… o corpo da Kûara’ika… não aguenta você. Nenhum aguenta por muito tempo sua presença profana!
A onça parou. Só por um segundo, mas foi o suficiente. Jatyr riu. Um riso fraco, rouco, que mais pareceu um engasgo, mas havia um triunfo amargo nele. — Vai morrer sozinho aí dentro, espírito velho. Sua fome de corrupção é grande demais para qualquer mundo em que nasceu, para qualquer corpo que ousa habitar!
O rugido que veio em resposta não era animal. Era o som de rochas explodindo por dentro da terra, um som de pura frustração e fúria impotente. A besta avançou, mas era um movimento desesperado, descoordenado.
Jatyr, apesar da dor lancinante, correu. Não mais uma fuga cega, mas um movimento tático. Ele se movia em ziguezague, usando sua agilidade e o conhecimento do terreno, guiando a criatura enfraquecida por entre as armadilhas naturais daquela floresta morta – galhos afiados que se projetavam do solo, raízes expostas e escorregadias, trechos de lama traiçoeira. Cada curva, um teste à resistência do hospedeiro. Cada obstáculo, uma chance de acelerar sua ruína.
A criatura tropeçou, vacilou, mas com uma teimosia sobrenatural, não caiu. Jatyr respirava pesado, os ombros subindo e descendo num ritmo desequilibrado, o suor frio escorrendo por seu rosto. Mas havia algo novo em seus olhos agora: não apenas medo, mas cálculo, uma frieza de predador.
Ele observou o tremor nas patas traseiras da onça, o modo como a respiração da criatura vinha em arfadas curtas, desesperadas, quase como soluços. A pele pendia como pano molhado de seu esqueleto. O líquido escuro que escorria de suas feridas… não, não era sangue. Era o colapso da forma, a própria matéria se desfazendo. Ele estava ganhando. Por um instante, Jatyr viu de novo o que aprendera sozinho, na dura escola da sobrevivência: quando caçava uma anta doente, quando observava um macaco febril prestes a cair de uma árvore. O corpo diz a verdade antes que a mente a admita. A onça estava morrendo.
— Tá vendo isso, Anhangá? — disse ele, a voz ainda fraca, mas com uma ponta de escárnio, dando um passo para o lado, os olhos fixos na fera que cambaleava. — Ela vai morrer, espírito da sombra. E vai levar você junto com ela para o silêncio!
Silêncio. Apenas a respiração cavernosa da fera, como um fole velho e rasgado. — Toda vez que você se esconde dentro de alguma coisa viva… ela apodrece, — Jatyr continuou, a voz ganhando uma confiança amarga. — Lento. Fedendo. Exatamente como está acontecendo agora.
A criatura avançou meio passo hesitante, mas parou, o corpo tremendo violentamente. Jatyr abriu os braços, um gesto zombeteiro e perigoso. O sangue ainda escorria de seu flanco e de seu braço, mas sua voz tinha algo novo, algo que se assemelhava a um orgulho selvagem e desesperado. — Vai fazer o quê agora, Anhangá? Eu já te feri. Minha faca ainda está cravada na cabeça dela, mesmo que não tenha sido o golpe final. Vai arrancá-la e tentar de novo? Já era pra você neste corpo. Aceite.
Um som gorgolejou na garganta da onça. Meio rugido de fúria, meio suspiro de agonia. — E olha só, hein? Tô desarmado, — Jatyr disse, erguendo as mãos vazias, a faca perdida no crânio da fera. — E ainda assim você está aí, parado… todo poderoso, o grande Anhangá, mas sem coragem de encostar em mim diretamente. O que foi? Medo de morrer junto com esta casca podre?
A voz veio baixa, quase um sussurro que o vento pareceu carregar. Uma nota grave, sem pressa, mas carregada de uma promessa sombria: — Insolente.
— Não. Esperto, — Jatyr sorriu, um sorriso torto, manchado de sangue e cansaço, mas um sorriso genuíno. — Eu entendi seu jogo, espírito. Não sou como os outros que você atormentou. Eu não corro feito um tolo para suas armadilhas óbvias. Eu espero. Eu analiso. Eu caço.
A onça deu dois passos lentos para o lado, como se tateasse o terreno com suas patas que se desfaziam. Jatyr acompanhou o movimento, espelhando-o, o predador e a presa em sua dança final. — Você devia ter ficado na escuridão de suas lendas, Anhangá, como o espírito covarde que realmente é.
Um tremor violento percorreu a coluna da fera. Um estalo seco e agudo veio do seu maxilar, e um dos olhos negros e líquidos começou a escorrer como cera derretida, revelando a órbita vazia por baixo. Anhangá, por um instante, pareceu ficar em silêncio, talvez processando a audácia, a resistência daquele jovem mortal.
Jatyr, ofegante, mas sentindo uma estranha onda de força, deu um passo adiante, a voz agora firme e clara. — Você errou, espírito velho. Acha que só porque tem mil nomes, mil vozes, mil sombras que dançam ao seu redor, vai me vencer? Eu tenho só um nome. Jatyr. — Ele fez uma pausa, o olhar fixo no único olho restante da Kûara’ika, que agora começava a perder seu brilho sombrio. — E ainda assim… acho que estou ganhando.
A onça baixou a cabeça lentamente, como se um peso invisível a esmagasse. Cambaleou, as patas traseiras cedendo. Por um momento, pareceu que ia finalmente afundar sobre os próprios joelhos, entregar-se à morte que a consumia. Jatyr avançou um passo, depois outro, o sorriso crescendo em seu rosto sujo de batalha. Estava perto. Muito perto. “É agora,” pensou, o coração trovejando em seu peito. “O fim da sombra.”
Ele já conseguia ver o fim. Imaginava o corpo da Kûara’ika caindo em um último espasmo. O cheiro nauseante da podridão se dissipando no ar. Imaginava – pela primeira vez desde que o fogo levara Mãe Yaci – uma vitória. Uma pequena, mas significativa, vitória contra a escuridão.
Jatyr encarava a fera moribunda. Cada fibra do seu corpo, cada instinto de caçador, cada lição de Einar, dizia: isso está acabando. As patas traseiras da onça tremiam como as de um animal envenenado, incapazes de sustentar seu peso. O único olho que lhe restava, antes um abismo de trevas e maldade, piscou uma vez… e então, para o assombro de Jatyr, brilhou.
Azul.
O mesmo tom profundo e ancestral de antes, quando Kûara’ika ainda era a fera livre, a sentinela silenciosa da noite. O corpo da criatura cambaleou mais uma vez, depois parou, a tensão abandonando seus músculos. Um suspiro longo, quase um sopro de alívio, escapou de suas narinas. E, como se um milagre acontecesse naquela terra profanada, as manchas azuis que haviam sido engolidas pela escuridão voltaram a emergir do pelo sujo e chamuscado, como estrelas desabrochando sob a carne morta. A corrupção escura que manchava o chão ao redor da onça começou a recuar, a se retrair. Devagar. Como a maré voltando ao mar, deixando para trás apenas a areia limpa.
A criatura tombou de lado. Quietamente. Sem espasmos, sem agonia. Apenas um ceder suave à terra. Então veio o som. Não um rugido de triunfo de Jatyr, nem o silêncio da morte da Kûara’ika. Não um som da floresta. Era um gemido seco, profundo, quase… humano em sua essência. E carregado de uma frustração que parecia ter a idade do mundo.
— NÃÃÃOOOO…!
A voz de Anhangá, não mais emanando da onça, mas do próprio ar ao redor, reverberou como um trovão contido, um grito carregado de um ódio impotente, de uma derrota amarga e, talvez, pela primeira vez, de um medo palpável. Então, tão subitamente quanto surgiu, cessou.
Jatyr abaixou o olhar para a cabeça da onça. A faca de osso, presente de Einar, ainda estava cravada entre os ossos do crânio, um símbolo de sua aparente e árdua vitória. Não podia deixá-la ali, seria um desperdício, um desrespeito. Aproximou-se do corpo que jazia sereno, a corrupção parecendo ter recuado. Estendeu a mão, os dedos trêmulos pela exaustão e pela adrenalina que ainda corria em suas veias.
Quando seus dedos tocaram o cabo da faca, frio e um pouco escorregadio, as sombras ao redor da onça morta se moveram.
Primeiro, um tremor sutil sob a pele da Kûara’ika, como se um último espasmo de vida a percorresse. Depois, uma fissura escura, como um rasgo no tecido da realidade, abriu-se ao redor da lâmina da faca, no osso do crânio da fera. Delas, como se nascessem da própria morte, surgiram linhas negras, finas como fios de cabelo, mas com uma solidez aterradora. Longas como cobras, elas se enroscaram ao redor do braço de Jatyr com a velocidade de um chicote, prendendo-o, frias como gelo velho, sugando o calor de sua pele. — O quê…?! — ele arfou, o pânico tomando o lugar do alívio.
Ele tentou puxar o braço, mas era tarde. As gavinhas de sombra o seguravam com uma força implacável. A faca deslizou do crânio da onça com um som seco e oco – e foi como se ele tivesse puxado um gatilho invisível, como se tivesse despertado algo que deveria ter permanecido adormecido.
A criatura, a Kûara’ika, ergueu-se. Morta. E ainda assim, horrivelmente, terrivelmente de pé. A pele estalava, os músculos rangiam como cordas velhas prestes a arrebentar. As manchas azuis, que haviam retornado brevemente como um sopro de esperança, sumiram de novo, afogadas por trevas ferventes que borbulhavam sob a pele morta. E então, com as sombras ainda segurando firme seu braço, a Kûara’ika, ou o que quer que a animasse agora, pulou sobre ele.
O bote final. Jatyr tentou girar o corpo, usar a surpresa a seu favor, mas era tarde demais. A pata da onça zumbi o atingiu no peito com força suficiente para fazer seus ossos rangerem, um impacto brutal que o fez voar como um galho seco, caindo com um baque surdo e pesado no chão da floresta. O ar foi arrancado de seus pulmões como se um anzol invisível o puxasse de dentro para fora. Sua cabeça girava, a visão escurecendo.
E então… o peso. Kûara’ika cravou as garras em seu peito, não fundo o suficiente para matar de imediato, mas o bastante para prendê-lo ao chão, imobilizá-lo. O fôlego que restava virou um gemido sufocado, um som patético de dor e derrota. A névoa escura e fria parecia apertar ao seu redor, roubando-lhe os sentidos.
E foi ali, no silêncio mortal, sob o bafo quente e fétido da onça reanimada, que ele se materializou. Do lado esquerdo de Jatyr, surgindo como uma sombra escorrida da própria fera, uma forma semi-humana, semi-algo tomou contornos na penumbra. Anhangá. Os joelhos dobrados em uma postura relaxada, um braço com dedos longos e ossudos descansando no próprio joelho, o outro pairando sobre a cabeça da Kûara’ika, como se acariciasse seu brinquedo quebrado, sua marionete fiel. Ele parecia confortável. Um espectro em repouso, contemplando sua obra. O rosto era um borrão de fumaça escura e ossos expostos, as feições flutuando entre uma beleza ancestral e uma repulsa visceral. O olhar – se é que aqueles buracos que sugavam a luz e as memórias podiam ser chamados de olhos – fixou-se em Jatyr.
— Olhe só pra você, — disse a voz de Anhangá, baixa, arrastada, com um tom quase gentil que era mais aterrorizante do que qualquer grito. — Tão pequeno… tão persistente. Tão… interessante. Rezar durante a batalha, Jatyr? Sua crença imunda nos espíritos da natureza, na ordem das coisas, é tão comovente quanto a fé que Ele tinha nos humanos… repugnante em sua ingenuidade, mas algo que, devo reconhecer, tem sua força.
Jatyr tentou se mover, mas as garras da Kûara’ika pressionaram com mais força, arrancando-lhe um gemido de dor. — Você não venceu, criança. Não importa o quanto finja que sim, — a mão de Anhangá, feita de sombra e ossos, apertou levemente o crânio da onça. — Você sobreviveu, por ora… e isso nem sempre é a mesma coisa que vencer. Acha mesmo que chegaria onde chegou, que teria me desafiado, se eu não tivesse permitido? Desde o começo eu estava lá, Jatyr. Observando suas pequenas lutas, manipulando as sombras ao seu redor, guiando seus passos incertos… nada nestas terras sombrias existe ou acontece sem minha permissão… e você deve se perguntar, em seus últimos momentos de clareza, o porquê de eu ter deixado você vir até aqui, até mim.
O silêncio que se seguiu pareceu durar séculos, preenchido apenas pela respiração difícil de Jatyr e pelo pulsar quase imperceptível da escuridão que era Anhangá. — Suas palavras, sua teimosia em crer, esse seu sangue fedorento de esperança, — continuou ele, e Jatyr pôde ouvir um som oco, como o de uma língua estalando em uma boca seca, um som de apreciação macabra. — Há algo nelas. Um eco. Uma ressonância. No começo eu pensei: “Não… não é possível… seria ele?” — A sombra que era Anhangá inclinou a cabeça, ou o que quer que servisse como tal, encarando Jatyr como um estudioso encara um fóssil raro e perturbador. — Agora vejo… algo Dele vive em você. Não a carne, certamente. Nem o nome, embora o seu seja… sugestivo. Mas algo mais antigo. Queimado. Amaldiçoado. Talvez… renascido. Hahaha… isso é… fascinante.
Jatyr abriu a boca, tentando falar, mas só conseguiu expelir uma golfada de sangue que lhe escorreu pelo canto dos lábios. “Ele quem?… Do que ele está falando?” Os pensamentos desesperados de Jatyr se cruzavam com uma curiosidade agoniante, mesmo à beira da morte.
Anhangá sorriu, ou fez algo que se assemelhava a um sorriso em seu rosto de fumaça e ossos, uma curvatura cruel na escuridão. — Tantas vezes tentaram me apagar. Com fogo consumidor. Com orações fervorosas. Com aço sagrado, até mesmo aqueles que se autodenominavam Deuses ou Reis entre os homens, ungidos por uma fé que julgavam invencível. — Seus dedos de sombra pairaram acima da testa de Jatyr, frios e ameaçadores, mas não o tocaram. — Você, pequeno mortal, é o primeiro a rir comigo, mesmo que de desespero. O primeiro a me olhar nos olhos sem se quebrar por completo. — Sabe uma coisa bem engraçada, Jatyr? — Anhangá prosseguiu, a voz agora com um tom de deboche cruel. — Fiquei vendo em sua mente patética, você se agarrando aos ensinamentos desse tal de Einar, o velho Ro’ysanga. Logo ele, que sempre fugiu de mim, que passou sua vida encolhido pelo medo, escondido em seu pequeno santuário. Um covarde que recuou mesmo quando seus semelhantes precisavam de um guia, que os deixou partir sozinhos para a perdição por pura fraqueza e egoísmo. Diferente desse velho tolo, você, criança, enfrentou tudo o que se colocou à sua frente, mesmo que aos tropeços. Você tem seus méritos, e isso, devo admitir, eu respeito.
Ele se aproximou, a forma sombria pairando sobre Jatyr. Tão perto que o cheiro invadiu os ossos do jovem – um fedor de terra molhada e profanada, de sangue seco de eras, de relâmpagos que nunca caíram, mas que carregavam a promessa da destruição. — Então… como recompensa por seu entretenimento, vou te dar algo em troca. Algo para lembrar de mim.
A floresta pareceu segurar o ar, um silêncio mortal caindo sobre tudo. A criatura sobre Jatyr, a Kûara’ika, não se mexia mais. Era como um altar de carne morta e profanada. Anhangá começou a recitar, sua voz agora um cântico gutural e ressonante. A língua era tão antiga que o som dela feria os ouvidos de Jatyr mais do que qualquer significado que pudesse ter. Era como se cada sílaba escavasse algo no mundo, na própria realidade. Cada palavra cavava fundo dentro de Jatyr, em sua carne, em sua alma.
Ele tentou gritar, mas o som não saiu, preso em sua garganta pela agonia e pelo poder esmagador da entidade. Seus músculos enrijeceram, contraindo-se em espasmos violentos. Seus olhos giraram nas órbitas. A dor veio sem aviso – pura, afiada, total e absoluta. Seu pulso direito, onde as gavinhas de sombra ainda o prendiam, incendiou-se como se estivesse sendo marcado por um ferro em brasa. Ele sentiu a pele abrir, rasgar. Sentiu o cheiro de sua própria carne queimando. O sangue brotar, escuro e espesso sob a influência da sombra.
Uma forma estava sendo esculpida ali. Não por lâmina, nem por fogo natural. Mas por palavra. Pelo poder ancestral de Anhangá. Uma cabeça de cervo, com seus galhos retorcidos e majestosos, feita de pura dor, tomou forma em sua pele, os detalhes em um branco fantasmagórico que ardia como sal em ferida aberta. No centro da marca, uma linha vermelha e vibrante começou a pulsar, como se o próprio sangue de Anhangá agora corresse em sincronia com o coração desesperado de Jatyr.
Anhangá observava em silêncio agora, a cabeça da Kûara’ika inclinada, como um artista que aprecia sua obra-prima macabra. Quando o ritual profano terminou, ele não sumiu de imediato. Ergueu-se, sua forma de sombra e ossos ganhando uma elegância estranha e aterradora. A sombra dele se estendia por cima de Jatyr como um eclipse, roubando a pouca luz e a esperança que ainda restavam. — Lembre-se disto, Jatyr, Filho do Fogo e da Sombra, — disse Anhangá, a voz baixa, quase um segredo partilhado entre algoz e vítima. — Não fui eu quem começou isso. Foi o mundo. Foram os seus. E foi Ele. Ele tocou levemente o centro da testa de Jatyr com um dedo feito de fumaça fria. Um toque leve. Quase um gesto de adeus.
Mas, no instante em que o toque gélido de Anhangá se desfez de sua testa, Jatyr convulsionou como se tivesse sido atingido por um relâmpago invisível, seu corpo arqueando-se na terra fria, um grito silencioso e excruciante preso em sua garganta.
Então, a sombra que era Anhangá se desfez, não com a violência de uma explosão, mas com a sutileza aterradora de uma névoa que se dissipa ao primeiro toque do sol, evaporando no ar pesado como se nunca tivesse estado ali, como se fosse apenas um pesadelo febril. A Kûara’ika, a casca vazia que ele usara, colapsou sobre si mesma, seus restos mortais desabando ao lado de Jatyr com um baque surdo e final, a escuridão que a animava finalmente se extinguindo.
Jatyr ficou ali, caído, o corpo não obedecendo a seus comandos. Seu braço direito, onde a marca fora esculpida, tremia sem ritmo, espasmos de dor subindo até seu ombro. O pulso ardia como se ainda estivesse sendo marcado por ferro em brasa, uma agonia que parecia queimar sua própria essência. Seus olhos piscavam fora de tempo, a visão turva e fragmentada, a realidade se desfazendo em borrões de luz e sombra.
E então, com um esforço que parecia vir de além de suas forças, ele rastejou. Não sabia para onde, nem por quê. Apenas um instinto primordial de se afastar daquele local de profanação, daquela dor que o consumia. Chorava. Lágrimas quentes e amargas escorriam por seu rosto sujo de terra e sangue. Não era a dor física que o fazia chorar, embora ela fosse intensa. Era algo além, algo mais profundo. Como se parte de sua alma tivesse sido arrancada, profanada, e ele ainda não tivesse entendido qual parte, nem como viver sem ela.
Quando, finalmente, conseguiu se erguer sobre as pernas trêmulas, correu. Cegamente. Aos tropeços. Sem direção. A floresta ao seu redor era um borrão vivo e hostil, os galhos retorcidos das árvores mortas se transformavam em mãos esqueléticas que tentavam agarrá-lo, as sombras que dançavam entre os troncos pareciam rir de seu desespero, zombando de sua fuga. Nada tinha direção. Nada fazia sentido. Só a fuga. A necessidade de escapar daquela dor, daquela marca, daquela violação.
A marca em seu pulso queimava. E não era só a carne que ardia. Era sua alma. A Semente da Ruína, plantada pela vontade sombria de Anhangá, havia brotado em solo fértil de dor e perda. E ele… ele era o solo.
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