Índice de Capítulo

    O frio na barriga não passava, precisava achar Selene o mais rápido possível.

    — Rose… — falei baixo, tentando disfarçar enquanto olhava de novo para o grupo reunido sob a árvore, mais à frente.

    — Eu vi — ela respondeu, sem que eu precisasse dizer mais nada. O tom dela era sóbrio, atento. — São eles?

    Assenti, apertando os dedos contra a barra do vestido. Os rostos estavam encobertos, mas havia algo naquela postura, naquela organização silenciosa… algo que me fazia lembrar, com detalhes vívidos demais, da véspera do caos em Rivendrias.

    — Precisamos achar a Selene. Agora.

     Nos afastamos do banco com passos rápidos, costurando pelo meio das pessoas sem tirar os olhos dos encapuzados. Eles não se moviam muito, apenas pareciam conversar entre si, mas com gestos e olhares calculados. Rose andava ligeira ao meu lado, as mãos já começando a brilhar com um leve tom roxo nas pontas dos dedos.

    Então, sem aviso, uma voz soou bem atrás de nós:

    — O que vocês duas estão fazendo aí?

    Quase tropecei. Me virei com o coração na garganta. Selene estava ali, de braços cruzados, como se tivesse brotado da sombra de um prédio.

    — Selene! — soltei. — Aqueles… Aqueles ali! Eu vi pessoas assim em Rivendrias, justo antes do ataque! Mesmas roupas, mesma presença estranha. Eu devia ter feito alguma coisa naquele dia. E agora, se acontecer de novo…!

    Ela me interrompeu com um olhar calmo, mas firme.

    — Mesmo que estejam ligados ao que aconteceu, você não vai precisar se preocupar muito aqui.

    — Mas por que não?! — questionei, confusa, olhando de volta para o grupo encapuzado que, agora, começava a se movimentar.

    Selene inclinou a cabeça, como se já soubesse o que viria a seguir.

    — Se algo estiver prestes a acontecer… você vai entender o porquê.

     As palavras dela ecoaram em minha mente com uma inquietação estranha, mas antes que eu pudesse pressioná-la com mais perguntas, um dos encapuzados subiu em uma plataforma de pedra, posicionada entre uma fonte menor e um canteiro elevado. Os demais se distribuíram ao redor, com posturas teatrais.

    — Queremos um mundo sem cores! — bradou ele. Sua voz era áspera, mas clara, e logo chamava atenção de parte da praça. — Chega de privilégios baseados na cor que corre por nossos corpos! Chega de opressão disfarçada de meritocracia mágica!

    — Ótimo — resmungou Selene. — Esses caras de novo.

    As pessoas ao redor não pareciam levar o grupo muito a sério. Alguns riam, outros apenas ignoravam. Um ou outro franzia o cenho, incomodado mais pela algazarra do que pelas palavras.

    — Eles querem pregar igualdade? — murmurei. — Mas por que… isso me está parece tão errado?

    — Porque a voz deles é mansa, mas os atos não são — respondeu Selene, ainda sem mover um músculo. — É porque gritar contra o sistema é fácil… quando o que se quer mesmo é tomá-lo para si.

    Continuei observando, o desconforto crescendo no peito. Havia algo fora de lugar, mesmo com toda aquela calmaria superficial. Era como se o ar vibrasse diferente.

    E então, o som: Um assobio cortante, seguido por jatos d’água explodindo no céu.

     Levantei a cabeça a tempo de ver vultos saltando entre os telhados, vestes azul-escuras com bordas brancas e douradas refletindo a luz do sol. Se moviam com precisão militar, quase como se voassem com asas d’água feitas com jatos controlados. Um segundo depois, estavam descendo… cinco, talvez seis… como flechas em direção ao solo.

    O grupo encapuzado tentou dispersar, mas era tarde demais.

    Correntes líquidas emergiram do chão como serpentes, agarrando tornozelos e pulsos com brutal eficácia. A praça, antes desatenta, agora assistia em silêncio.

    — O que é isso? Quem são esses…? — murmurei, quase sem voz.

    — Os guardas de Nautiloria — respondeu Selene. — Esta cidade não é só a maior do Reino da Água. É uma das mais seguras. Eles não toleram discursos inflamados que possam acender faíscas perigosas em sua sociedade.

     Fiquei ali, olhando a prisão dos encapuzados, boquiaberta. A diferença entre a fragilidade de Rivendrias e a eficiência fria de Nautiloria era gritante. Aquilo não era só um contraste de forças. Era um lembrete de que eu ainda entendia muito pouco sobre o verdadeiro poder… e o que o mundo tinha a revelar.

    E, no fundo, aquele sentimento incômodo dentro de mim não desaparecia. Porque talvez, só talvez… se essas pessoas estivessem certas?

    — Selene — comecei, me virando para ela, ainda com o som das correntes aquáticas ecoando na memória —você… já encontrou a pessoa que veio ver aqui em Nautiloria?

    Ela pareceu sair de um devaneio e balançou a cabeça, os olhos agora fixos em mim.

    — Ainda não. Ela não deixou o sinal de que está na cidade. Vamos esperar alguns dias por aqui.

    — E o que faremos enquanto isso?

    — Primeiro, nos livrar do peso da viagem. Vamos encontrar uma estalagem decente. Você precisa de um banho, Ashley.

    Rose riu baixinho ao meu lado e, apesar da tensão anterior, até eu sorri.

     A estalagem tinha o nome de Mar Serena, e ficava a alguns quarteirões do centro movimentado de Nautiloria, em uma rua de paralelepípedos coberta por arcos floridos. A fachada era feita de madeira pintada de azul claro, com janelas arredondadas envoltas por cortinas brancas. Havia peixes coloridos desenhados nas placas penduradas e um aroma suave de lavanda no ar.

     Por dentro, tudo parecia acolhedor. O piso era de madeira envernizada, rangendo levemente sob os pés. Poltronas com almofadas bordadas estavam dispostas ao redor de uma lareira apagada, provavelmente usada apenas nos meses mais frios. Nas paredes, quadros retratando o mar e criaturas aquáticas enchiam os olhos de cor. A dona da estalagem, uma senhora gentil com cabelos cinzentos presos em coque, nos recebeu com um sorriso paciente e nos ofereceu um quarto com três camas, vista para o litoral.

    Depois de nos acomodarmos e trocarmos de roupa, Selene falou, com o tom casual de quem ia anunciar alguma tarefa.

    — Já que não temos compromissos agora… vamos retomar o treinamento.

    — Sério? Aqui e agora? — perguntei, me jogando na cama ainda com os cabelos molhados do banho recém-tomado.

    — Sim. E prepare-se, porque o treinamento padrão já está fácil demais. Hora de elevar a dificuldade.

    Rose se espreguiçou preguiçosamente e comentou:

    — Há uma praia nos arredores de Nautiloria. Pode ser uma boa opção para esse tipo de coisa. Posso guiar vocês até lá.

     Chegamos à praia quando o sol ainda pairava alto no céu. A extensão de areia era ampla e dourada, cercada por paredões rochosos que suavemente desciam até o mar. O som das ondas quebrando era constante, e a brisa salgada dançava entre os nossos cabelos.

    Eu me aquecia para dar inicio ao treino quando Rose se aproximou e começou a imitar meus movimentos.

    — Acho que me vou me juntar a você dessa vez…

    Aquilo foi uma surpresa para mim, Rose até então não parecia ter interesse algum nos meus treinos matinais, mas tudo bem, será bom ter companhia.

    — Vamos fazer o seguinte — começou Selene, agora mais séria. — Vocês duas vão correr descalças, da ponta daquela pedra até aquela curva onde a areia começa a se estreitar. A missão é ir e voltar antes que a próxima onda alcance seus calcanhares.

    Olhei para o mar. As ondas não pareciam tão rápidas.

    — Isso parece… fácil?

    — É — respondeu Selene, sorrindo com a típica confiança maliciosa —. Até você tentar correr na areia.

     Tirei as botas, senti a areia quente sob os pés e me preparei. No primeiro passo, senti a diferença. A superfície fofa engolia meus pés a cada movimento, e a força que eu fazia para me impulsionar era maior do que eu previa. O vento, antes refrescante, agora parecia me empurrar para trás.

     Rose correu ao meu lado com leveza, mas nem ela conseguia manter o ritmo ideal. As ondas vinham, traiçoeiras, sempre um segundo antes do que eu esperava. A cada retorno, eu arfava mais forte, os músculos da perna queimando como se estivessem em brasas.

    O tempo passou, e o sol começou a se inclinar em direção ao horizonte.

    Até que, de repente, o chão sob meus pés pareceu tremer.

    — Você sentiu isso…? — perguntei, parando.

     O mar se agitou. As ondas ficaram mais altas, batendo contra as pedras com uma fúria inesperada. O cheiro de sal ficou mais intenso. Um pequeno barco de pesca tentava atracar no píer mais à frente, e um senhor idoso lutava com as velas e as cordas.

    Então, com um forte estalo, ele caiu na água.

    — Ei! — gritou Rose.

    — Algo aconteceu… ele não consegue nadar! — completei, vendo-o se debater preso a algo.

    Antes que qualquer uma das duas pudesse agir, corri.

    Sem pensar, sem hesitar.

    Segurei a adaga com os dentes e mergulhei na água. O mundo à minha volta virou silêncio líquido. As bolhas subiam em espiral e a corrente me puxava com força.

    Vi o velho preso a uma rede emaranhada. Nadei até ele, sentindo o ar escapar dos meus pulmões a cada segundo, e cortei as cordas com movimentos rápidos. Quando ele enfim se soltou, sinalizei para que subisse. Ele começou a nadar de volta, e eu me preparei para segui-lo…

    Mas algo me tocou.

    Não fisicamente, mas… algo passou por mim. Uma energia sutil e densa. Olhei para baixo, para as profundezas turvas.

    E lá estava.

     Uma silhueta escura no fundo do mar. Como a boca de uma caverna esquecida pelo tempo, emanando um brilho azulado pulsante. O mesmo tipo de energia que fazia as ondas tremerem, que havia mudado o comportamento do mar.

    Fiquei ali, imóvel por um instante, sentindo o coração martelar dentro do peito. Uma pergunta silenciosa vibrava em minha mente: O que… é aquilo?

    Me forcei a nadar de volta, mas, mesmo quando quebrei a superfície e respirei ofegante o ar salgado, meus olhos continuavam voltando para o fundo. Aquele brilho… não era natural. Não era normal. Algo naquele lugar chamava por mim. Como se, no silêncio das profundezas, um segredo antigo estivesse prestes a despertar… e, de alguma forma, eu sabia aquilo não era um acaso. Era o começo de algo maior.

    Fim do Capítulo 22: Ecos Submersos.

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