Capítulo 20 —início da força
A sensação de queda veio de novo — mas, dessa vez, não trouxe apenas medo. Havia uma paz estranha ali, quase como se o próprio céu estivesse me acolhendo. Eu já tinha sentido isso antes, naquela outra vez com Galvata. Sabia que não doía. Sabia que era só uma transição. Por isso, fechei os olhos e me deixei levar.
Era uma sensação boa… leve. Como se o peso do mundo tivesse desaparecido por um instante. O vento não me cortava, apenas me embalava. Parecia que o tempo tinha parado. Uma paz silenciosa me envolvia por completo.
Mas, de repente, essa tranquilidade foi rasgada por um som distante.
Uma voz.
Um grito.
— LUCAAAAS!
Era Aiza.
A paz se quebrou. Senti um puxão violento. Meu corpo foi arrastado de volta à realidade — e, num segundo, tudo voltou. A dor. O peso. O frio. O medo.
Acordei com um sobressalto, como se tivesse sido puxado de um pesadelo.
— AIZA! — gritei, arfando, com o coração martelando no peito.
Meus olhos se abriram de uma vez. O mundo ao meu redor girava. Meus músculos estavam pesados, e meu peito arfava em busca de ar. Girei a cabeça rapidamente, tentando entender onde estava, sentindo a adrenalina correr solta nas veias.
Meus olhos varreram o ambiente até que, à esquerda, vi Aiza. Ela estava de pé, com os olhos arregalados de susto, me observando como se tivesse acabado de ver um fantasma. Ao lado dela, a garota ruiva tremia, encolhida… e chorando.
Mas, no momento em que ela me viu acordado, seus olhos se iluminaram.
Sem dizer nada, ela correu até mim.
Seus passos eram apressados, desajeitados, mas cheios de emoção. E então, sem hesitar, ela me abraçou.
— Obrigada… obrigada de verdade… — disse ela, e sua voz quebrou em um soluço. — Você me salvou. Eu achei que ia morrer, mas você… você me protegeu. Eu nunca vou esquecer o que você fez por mim!
Ela chorava no meu ombro, e seus braços apertavam com força, como se quisesse ter certeza de que eu era real. Por um momento, fiquei imóvel, sem saber o que fazer. Depois, respirei fundo e retribuí o abraço, ainda atordoado com tudo.
O calor daquele gesto… a gratidão sincera dela… me atingiram de um jeito inesperado.
Talvez, pela primeira vez, eu tivesse feito algo realmente certo.
De repente, sinto minhas bochechas queimarem. Uma onda quente de vergonha me atinge do nada, sem motivo aparente. Solto a menina ruiva num reflexo e levo a mão à cabeça, tentando entender o que está acontecendo. Ela, por sua vez, começa a limpar as lágrimas que escorrem silenciosamente pelo rosto
Olho ao redor com mais atenção, e então percebo… estou de volta ao acampamento, exatamente no ponto onde havíamos deixado Aiza e a garota ruiva antes de entrar na floresta para o treinamento. Reconheço tudo — a carroça parada sob as árvores, as marcas das rodas no chão seco. É como se nada tivesse mudado aqui, como se o tempo tivesse ficado preso nesse lugar enquanto eu era arrastado para o caos na floresta.
A última coisa de que lembro era estar lá dentro, lutando com Kael. Ou melhor, sendo espancado por ele. Lembro da dor, da raiva e da exaustão tomando conta de mim. E agora… estou aqui. Deitado perto da carroça. Vivo. Mas Kael… sumiu.
Me viro, e ali atrás da ruiva está Aiza, sentada sobre um tronco, me observando com uma expressão calma, mas vigilante.
— Aiza… onde está o Kael? — pergunto, minha voz ainda carregada de confusão.
Ela demora um segundo para responder, como se organizasse os pensamentos.
— Kael saiu já faz um tempo. Disse que ia voltar logo. Pediu pra gente ficar te observando enquanto você dormia — disse ela, com naturalidade.
— Aiza… quando vocês duas acordaram? — pergunto, ainda tentando entender como tudo isso se encaixa.
— Faz algumas horas — ela começa, a voz mais baixa agora. — Talvez três horas antes de você. Eu fui a primeira a acordar, sozinha, aqui mesmo. A clareira estava silenciosa, mas Laila ainda dormia profundamente ao meu lado. Quando ela acordou, foi um choque. Ela gritou, chorou, parecia estar fugindo de algo terrível. Um pesadelo, talvez… ou alguma lembrança.
Ela faz uma pausa, lembrando com nitidez do momento.
— Foi aí que o Kael apareceu. Surgiu do meio da floresta, carregando você nos ombros como se fosse um saco de batatas. Nem disse nada. Te colocou ali na carroça e sumiu de novo, como se tivesse mais coisas urgentes pra resolver.
Fico em silêncio por alguns segundos, absorvendo cada detalhe. Olho de relance para a ruiva — quer dizer, Laila. Agora eu sei o nome dela.
Sinceramente, eu não fazia ideia antes… e também não planejava perguntar. Principalmente depois daquele abraço que ela me deu, cheio de emoção, de lágrimas… e de uma intensidade que eu não estava nem um pouco preparado pra lidar. Kkk.
Mas deixando esses pensamentos de lado… Kael deve estar fazendo algo importante. Ele sempre está. Não adianta eu ficar tentando entender tudo agora — minha cabeça ainda está confusa e cheia de lacunas. Melhor não me perder em suposições.
O que realmente importa agora… é o que Galvata disse.
As palavras dela ainda ecoam na minha mente como um aviso sombrio: “Não é sua culpa…” e logo depois, aquela profecia estranha. “Daqui a sete anos…” Algo terrível vai acontecer. E de algum modo… eu estou no meio disso. Eu sou parte disso.
Ela disse que eu precisava me tornar forte. Que eu precisava estar preparado.
Então é isso. Chega de enrolar.
Vou começar a treinar agora mesmo.
Mesmo sem Kael aqui. Mesmo sem instruções. Mesmo se meu corpo ainda estiver dolorido da última surra. Eu preciso aprender a controlar minha magia. Não adianta nada conseguir lançar um feitiço por puro instinto se, logo depois, eu desmaio como se meu corpo não aguentasse o próprio poder. Não posso depender da mana da Galvata o tempo todo. Preciso gerar minha própria força. A minha própria mana.
Força. Isso é tudo o que me falta.
A partir de agora, vou treinar todos os dias. Sem parar. Até meus ossos ameaçarem se partir. O treinamento com Kael vai parecer brincadeira comparado ao que eu mesmo vou me impor. Não importa o quanto doa. Não importa se estou sozinho. Eu vou ficar mais forte. Por mim… e por todos que não puderam se proteger.
Foi então que, como se o universo tivesse ouvido meus pensamentos… Kael simplesmente aparece.
Do nada.
Surge da trilha da floresta com um porco gigante pendurado sobre os ombros como se fosse um saco de pano leve. O bicho está morto, claro — sangrando um pouco, enorme, pesado — e Kael nem parece ofegante. Ele anda em minha direção com a mesma expressão de sempre: séria, firme, impenetrável… mas com um leve brilho nos olhos, como se ver que eu estava de pé fosse alguma vitória.
— Então já acordou. Que coisa boa — diz ele, como se não tivesse tentado me matar alguns dias atrás. Como se tudo estivesse perfeitamente normal.
Fico olhando, meio em choque, sem saber se respondo ou se finjo que ele não falou nada.
Antes que eu diga qualquer coisa, Kael fala de novo, virando-se para Aiza com naturalidade:
— Aiza, acenda uma fogueira com sua magia. Vamos começar a assar esse porco.
Simples assim. Como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse quase morrido. Como se ele não tivesse me arremessado no chão, me esmurrado até meu corpo parar de reagir. Como se ele não tivesse me encarado com aquela expressão vazia, como se… como se ele realmente quisesse me matar.
Porque ele queria.
Kael queria me matar.
E agora ele tá ali, de boa, trazendo carne pra assar, como se fôssemos uma grande e feliz família.
Esse cara é completamente imprevisível.
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