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    “Quanto custa o preço da paz? Quanto é o preço da ação?”

    Izandi, a Oniromante


    Os grilos estavam trinando alto, barulhos de fim de verão, e uma andorinha piou alto. O cheiro do orvalho nascido nas folhas verdejantes estava forte como um perfume. A grama sobre suas costas estava macia; e o solo, úmido, mas não o suficiente para sujar as suas roupas. Ao contrário. Sentia-se limpo. Sentia-se confortável, como se estivesse em uma cama. Ezekel abriu os olhos assim que um raio fraco de luz lânguida bateu no seu rosto, acompanhado de uma brisa fraca, que carregava a doçura da Mata para seu nariz.

    Olmos, abetos e faias o rodeavam, com seus galhos formando um círculo quase perfeito ao redor do Sol; grande ao leste. Dezenas de nuvens cobriam o azul do verão, e uma delas rebatia a luz do Astro de Soilium de um jeito estranho: como uma inclinação subindo à direita, quatro doze sóis menores brilhavam por toda extensão da nuvem…

    “Ofina me falou disso”, pensou, com até a voz da sua mente parecendo seca. “Acontecia nas Ilhas amiúde no anoitar, disse-me…”

    — Ei, ei, acorda — disse uma voz feminina, suave e infantil; aveludada de uma forma que Ezekel nunca esqueceria, nem que quisesse tentar. Sesje Godwill, sua tia. — Dorminhoco! Como consegue dormir em chão assim?

    Sentiu o coração agraciado e ficar cheio de felicidade… Felicidade que não sentia desde que… Onde? “Eu fui a algum lugar?”

    Sua “tia” estava de cócoras, com uma mão mexendo circularmente em uma mecha solta do cabelo impecável e sedoso, coberto por um longo chapéu de aba mais longa que seus ombros; a outra, Ezekel sentia futucar sua bochecha. Mesmo que dois anos mais velha, Ezekel sempre a achou muito mais criança — e linda — do que ele. Mas ele era somente um menino.

    Na manhã anterior, sentiu-se cheio de virilidade ao achar o primeiro pelo, crescido no umbigo; Sesje aproveitou enquanto tomava descansava no banho, invadiu sua banheira com um salto e cortou o pelo fora com uma tesoura. A virilidade parecia ter sumido por completo, e sua vingança nada pôde ser além jogar água da banheira nela.

    O jantar tinha sido guisado com cenouras, cabra assada e pato acebolado.

    — Não vai se levantar daí? — Tocou sua outra bochecha. — Estou vendo seus olhos abertos… — fez um muxoxo. — Levanta, Ezel, vai!

    — Tá, Ses! — bravejou em voz baixa, então cobriu a boca com a mão.

    Sua voz parecia mais… parecia mais… Mas ela já fora diferente? Ciciou alguma coisa e palrou algo tolo, então tirou a mão da boca. “Sempre fora assim”, concluiu. O Sol estava quente, esquentando.

    Entregou a mão a “prima”, que esboçou um sorriso de orelha a orelha e o puxou. Ezel não vacilou. Assim que ela pôs força, se levantou de uma vez e a derrubou na terra com o peso do seu corpo, sujando a camisa sobre o vestido branco com quatro anáguas. Ses começou a rir, como se não se importasse com Ezel em cima dela. Na verdade, gostava. Estava vermelha e feliz; rindo, mas não desviando os olhos púrpuros.

    Ezel sentiu as bochechas queimando.

    — De que quer brincar, Ses?

    — Na verdade! — Ela ergueu a cabeça de chofre, quase batendo-a em Ezel. O rapaz saltou para trás; e sentiu dor nos braços. “O treino…”

    Ses ficou de cócoras de novo e passou suas mãos nas costas. A traseira do vestido estava imunda, mas não parecia se importar com isso. Ela se abaixou mais e começou a riscar o chão com o dedo. Ezel observou.

    — Estava perseguindo um rouxinol mais cedo.

    — Brincar de correr atrás de pássaro?

    — Não, bobão! — Tirou um punhado de terra e ameaçou jogar no sobrinho. — Sua tia Sesje manda que você não me interrompa mais! — Ezel balançou a cabeça e fez um rosto furioso. — Pois bem, boboca, eu persegui um rouxinol mais cedo! A Velha Ama me ignorou, porque só gosta de você e não de mim, aí saí sem desjejuar, mas então vi aquele pássaro tão bonito na janela do meu quarto que não consegui ficar parada. Peguei meu chapéu e saí correndo!

    Ela se levantou e levantou a mão.

    — Vem, vem!

    Ezel pegou sua mão. Ses era só dois anos mais velha, mas tinha quase um palmo a mais de altura, e guiava o passo pelo bosque. Os pássaros piavam e voavam: viram um casal de pássaros vermelhos, andorinhas ruivas, rodando em círculos em direção do outro, cantando uma melodia bela. Os olmos logo deram lugar a azevinhos escuros e pinheiros.

    Ses segurou sua mão com uma força leve e segurou seu chapéu quando um vento de verão atingiu os dois. Ela deu uma rizada alegre, com a boca bem aberta; Ezel percebeu que ela tinha perdido um dente e começou a rir também. Logo sua barriga grunhiu, mas fitou sua “tia”. “Ela não desjejuou.”

    Por sorte, vira uma pereira pouco a direita: seu tronco era gordo e era baixa, mas havia uma pera pendendo num fio verde, baixa o suficiente. Soltou a mão e correu até a fruta. Parecia suculenta, e ainda que fora de época, estava bonita e cheirosa. Ses o viu voltando e deu um sorriso ainda maior. Estava feliz; Ezel sentia-se feliz.

    “A Mata dos Grilos é linda.”

    Ezel deu passos vagarosos e entregou a fruta, que foi mordida pela banguela sem pensar duas vezes.

    — Doce! — mexeu os ombros. — Docílima! Toma!

    “Não quero”, pensou em dizer, mas ela praticamente enfiou a fruta na sua boca. Ezel tirou um pedaço na mordida invés da faca, como um plebeu sem educação faria. Sentiu-se péssimo: era um príncipe. Se a ama de leite descobrisse isso, ficaria furiosa. “Mas duvido que pensasse o mesmo para Sesje.” O suco escorreu pela sua boca enquanto Ses apertou sua mão mais uma vez. E deixou-o andar à frente… E encostou o ombro no seu. Sentiram ambos as bochechas queimarem…

    Ezel sorriu. Logo a trilha ficou mais apertada — não que algum dos dois estivesse se importando —, porém as várias árvores diferentes e pássaros cantando deram lugar ao trinar de muitos grilos e as sombras de pinheiros altos e velhos. Ezel se assustou e contemplou feliz um besouro vermelho do tamanho de sua mão. Ses gritou e cobriu o rosto, mas o inseto ergueu as asas e voou para longe dos dois.

    — Prima Ses — olhou-a nos olhos —, espero que não esteja levando a gente pra um lugar ruim… O irmão Natharel não está aqui.

    Ela saltitou para frente, então pulou sobre um arbusto ralo.

    — Se eu te contar — cobriu a boca com o indicador —, a surpresa acaba. É muito bonita, confia em mim.

    “Como não faria isso?” Ezel suspirou. Ses deu um sorriso longo com os dentes faltando. Mais uma vez o vento quase jogou longe seu chapéu. Riram juntos; mas sabiam que não podiam deixar o chapéu voar e se perder, senão Ses voltaria para o paço com a pele queimada e cansada, ficando todo o resto da semana caída à cama, comendo mal. Não podia deixar isso; faltava menos de uma semana para saírem da Mata dos Grilos ao Quimtel da Bahia Cinzenta. Sua tia — sua prima — receberia finalmente seu Segundo Batismo.

    Seriam só ele, ela, a ama de leite, o Versicolista e talvez Natharel. Sesje era sua tia, mas só dois anos mais velha e era órfã… “E meus outros irmãos estão ocupados.”

    Ezel suspirou e desafivelou seu cinto. Ses fez um barulho feio e cobriu o rosto —  mas só um dos olhos — com as mãos. Seu sobrinho — primo —, porém, não teve as calças caindo. Ses ainda fez um barulho tímido e estranho e gemeu de susto quando ele se aproximou e tocou suas bochechas. Fechara os olhos timidamente, mas Ezel só amarrou o cinto no chapéu e no seu pescoço.

    — Assim não vai embora, Ses.

    — Ah…

     “Talvez já esteja donzela”, pensou Ezel, vendo o rosto branco dela ficar vermelho como um tomate. “Estaria usando as duas tranças na cabeça em Aarvier. Tenho que pensar melhor nos meus atos. A velha ama ficaria com raiva. Não foi nada principesco.”

    A menina balançou a cabeça e deu a Ezel um semblante de decepção, então virou as costas como se estivesse borbulhando de raiva.

    — Vem logo! — deixou a mão atrás das costas e foi.

    Ezel não a perdeu de vista. A seguiu entre os pinheiros e pegou sua mão. Eram velhas árvores, altivas e de tronco negro, e tão altas que a luz do Sol pouco passava por elas. O chão ficara negro, escuro, e entre seus passos ouviam o estalar de folhas e galhos caídos e o voar de insetos. Grilos trinavam alto em uma melodia incômoda; e Ses a detestou. Respirou fundo, então deixou sua voz macia fluir:

    Voz bela da floresta, voa

    Não conheces quem te canta

    Esquilo guarda nós à toa

    Mas o tordo voa na banda

    Feliz ouvido da planta

    A barulheira dos grilos pareceu se calar.

    — É muito ruim, né?! — disse ela, virando o rosto ainda vermelho. — Acabei de criar!

    Ezel tentou responder, mas Ses soltou sua mão e correu à sua direita de uma vez só. Seu coração acelerou e a menina se tornou um vulto branco em direção de um azevinho no meio dos pinheiros. Seu tronco estava escondido atrás de seus galhos, que eram tantos e tão grandes que as folhas ocultaram toda a sua forma. Ao seu redor havia pinheiros altos, cobertos por trepadeiras em seus galhos, intercalados e tortuosos, que caíam como vinhas pesadas com flores grandes e da cor dos olhos de Sesje.

    A menina pareceu ignorar as flores, mas Ezel não. Ao se aproximar, puxou uma das rosas, cheirosas como Of…

    Piscou e girou os calcanhares. Pareceu que algo tinha furado seus olhos e chegado fundo no cérebro. Suas pernas fraquejaram e sua respiração se descontrolou. Seu coração apertou e pareceu querer sair, como se estivesse cheio de dor e amargor. “O que é isso?” Apertou o peito; mas então passou. Percebeu estar deitado no chão, vendo o parélio céu acima, com o chão quente, mas então não estava mais.

    Ses estava ao seu lado, de pé, apontando para um galho do azevinho: havia um ninho de rouxinol, feito de musgo e folhas secas.

    — Vê! Tem um ovo nele, Ezel, tem um ovo! Quero pegar!

    — Não é boa ideia! É alto demais…

    “Estava deitado?”, pensou. Sua voz parecia mais firme na sua mente… “Estou me esquecendo de algo…”

    De chofre Ses saltitou e tocou em um dos galhos. Apertou dois e tentou separá-los, como se tentasse abrir caminho para subir, como se para transformá-los em alguma espécie de escadaria. Sutilmente, conseguiu abrir espaço entre um e outro, e via Ezel que estava suando pelas costas e que sua pele estava bronzeada nos braços. Foi para trás da menina, porém olhou para cima e palrou de susto.

    Os galhos tremeram e o ninho vacilou; Ses parou, mas não adiantou. O ninho despencou do galho. A menina ainda tentou agarrá-lo, todavia ele sumiu na escuridão dentro do azevinho.

    — Não… — Virou o rosto, que conseguiu ficar ainda mais sem cor do que já era. Ela fungou e seus olhos ficaram vermelhos… O lábio de Ezekel caiu e um gosto ruim ficou na sua boca. Seu coração doeu, como uma pontada.

    — Sai, deixa que eu pego, Ses.

    A menina cobriu o rosto com as mãos, como se para aparar as lágrimas. Ela o deu espaço e foi para trás dele. “A terra é fofa, duvido que o ovo quebraria”, pensou. Assim que pôs as mãos nos galhos, reparou joaninhas e pequenas lagartas amontoadas, e quando separou os galhos… viu que a luz parecia não descer lá dentro. Estava escuro. Uma mão gelada apertou seu coração.

    Não conseguia ver o chão; parecia uma queda, uma gruta, uma ravina escura e suja. Era verão, mas o ar que atingiu seu rosto estava enregelante, frio que batia no seu rosto e o fazia arder. Então seu corpo parou; parecia congelado. Tentou mover seus braços, mas foram como uma pedra, uma pilastra presa ao chão.

    Seus olhos viram o vermelho; não pareciam frutos… E viu prata, a cor do ferro; rapidamente algo azul e roxo rasgou a escuridão.

    Sentiu cheiro de sangue.

    — Não vai, Ezel! Não vai!

    Então sentiu uma doce sensação nos lábios e um calor encostado a testa.

    Abriu os olhos de susto. Seu coração pulsava rapidamente, quase que ardendo, mas uma sensação de alívio o atingiu. O calor nos lábios, o aroma de flor-de-virgem e a do toque de uma mão mais do que macia no ombro. A lágrima que pendia no seu olho direito não desceu. Deixou a guarda cair; não queria se desvencilhar daquele beijo, nunca.

    Assim que terminou o beijo, Ofina fez um sorrisinho entrecortado, ansioso e com os olhos aliviados de prazer.

    — Como consegues dormir sobre um monte de papéis e uma mesa dura, meu menino-moça?

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