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    “Recordo-me de quando sonhei com isto pela primeira vez: havia arranjado meu primeiro namorado, debaixo de uma escada da escola. Voltei para casa com o coração efervescido, e assim que dormi, pressenti algo terrível. 

    Não me recordei quando acordei, e algo dentro de mim dizia que não queria voltar a dormir e descobrir o que vi — o que vinha depois.”

    Izandi, a Oniromante


    A sensação de abrir os olhos fora-lhe indescritivelmente ruim. Cílios feito bolotas de areia, invadindo a carne que a permitia enxergar, era o que sentia, e ainda mal conseguia enxergar direito. Conseguia ver uma tênue luz avermelhada descer pelo céu. Percebia estar deitada em uma cama. Mais confortável do que a da ala do medista, menos que a do seu quarto. Um meio-termo que, se conseguisse concluir um pensamento, a deixaria assustada.

    Não conseguia.

    Estava acordada há dias, e por todo aquele tempo, foi coberta em um cobertor gentil sobre a pele, mas com uma sensação viscosa entre ele e sua tez. Recordava-se de movimento. Um súbito, outro gentil. Pouco depois, conseguiu reconhecer passos ritmados, sons de cascos e uma voz… que não conseguia distinguir.

    “Ond…”, tentou pensar. “Ten…”, tentou. “Dói”, conseguira e se arrependeu. Chamas acenderam detrás dos seus olhos. O vento que fugia pelas narinas tornou-se doloroso, e quando percebeu que conseguiria respirar com a boca, apenas mover o lábio doeu como se houvesse espinhos de flor de espinheiro na sua carne.

    A dor de cabeça foi ainda pior. Vinha com a manhã, ou à tarde. Se havia luz atingindo os olhos fechados, uma febre surgia dentro da sua cabeça, e só lá. Era como se uma árvore inteira surgisse, e com espinhos cruéis, decidisse lacerá-la. “Dói…”, gritou-se. “Dói!” Uma dor no peito surgia junto, sempre, mesmo menor.

    Partia da cabeça, queimava nos olhos, ardia peito e se alastrava como espasmos até a ponta dos dedos dos pés e das mãos. E então sentia o gosto fortemente amargo do cânho-salgueiro. E melhorava. A dor passava, mas a consciência ia embora… O gosto verde da infusão lhe tranquilizava.

    “Verde”, pensou. “Há algo… Pense. Se acalme.” Sentiu-se estremecer.

    — Mhã… — tentou falar, mas a voz lhe ficara presa aos lábios secos e amargos. “Pense. Mamãe te ensinou a pensar.” Tentou soar a voz outra vez, porém prendeu-se na garganta. Ouviu algo desuniforme. Caiu no sono.

    A luz avermelhada descia suavemente por algo — “Tecido”, pensou. Era fraca, e em partes não conseguia chegar. Reparou hastes marrons de pé. Reparou um dossel aos seus pés, ou o que deveria ser eles. Estavam embranquecidos, pálidos e havia neles algo viscoso acima da pele.

    “Não estou em casa”, concluiu, e uma lágrima escorreu do olho direito, mas foi absorvida antes que caísse no sono outra vez.

    — Senhorita — ouviu o sussurro da voz feminina menos feminina que já ouviu. Sentiu um dedo calejado tocar-lhe à bochecha e um par de dedos flácidos encostando no seu pulso esquerdo. “Estou fora de casa”, pensou, abrindo os olhos. — Senhorita!

    — Abaixe a voz, cavaleiro — ordenou um de voz rouca. — Não vê que ela está aturdida?! — comentou, e parecia ter mais raiva do que alvitre na voz. — Pode machucá-la com esses toques!

    Mest… Jen… — ciciou, e o dedo fugiu da bochecha no instante. “É a voz da mestra. Por que não conheço a do outro? Por que ela, e não minha mãe? Onde… Onde está meu pai?” O homem velho falou mais algo, então sentiu o gosto de um remédio diferente. Doce, açucarada. Tinha mel, melado e talvez caramelo, e antes que deglutisse, foi abatida com uma energia que não conseguiria usar.

    — Ficará bem — disse o da voz rouca, rodeado de luzinhas brancas. “Foque”, ordenou-se. “Pense.” Por que repetia isso para si? “Pense.” — Agora este velho precisa comer. Não a dê nada que precise mastigar, como sempre. — E saiu.

    Ouviu Jen estralar os dedos. Os da mão direita tinham um som diferente dos da mão esquerda, percebeu. Foram poucas horas em poucas semanas, pequenos momentos. Nunca dera atenção devida à mestra de armas, pensara, antes desses dias. Percebeu neles que um espadim de madeira poderia pesar muito, e que calos deveriam pertencer somente as mãos de homens.

    Mas era bom… “Foi bom…” De alguma forma, tinha feito uma amiga mais velha e muito mais legal. Não imaginava que brandir poderia ser quase tão divertido quanto bordar. E nem que uma pessoa com a boca tão suja poderia ser amigável, ou que havia alguém com a boca mais suja que a do irmão.

    — Consegue me ouvir, Senhorita? — questionou, com a voz baixinha e alegre, mas, de alguma forma, melancólica. Não conseguia entender. “Perdi algo?”

    Hyd fez um esforço.

    — Shi…

    — Que maravilha! — urrou, e Hyd ouviu joelhos batendo no chão. — Que maravilha. — Fungou. — Que bom… Senhorita? Senhorita? Que bom… Ainda consegue sorrir.

    — Ond… estou?

    Jen levantou-se de supetão. Estava como uma mancha marrom vestida em azul, e seus cabelos castanhos crestados estavam amarrados sobre os ombros finos; ainda assim, Hyd conseguia perceber pequenas luzinhas, vaga-lumes leitosos e azuis passeando ao seu redor. “Estão mais visíveis”, pensou.

    — Não está muito longe — respondeu em uma fungada. — Saímos do castelo há pouco tempo, uns dias, Senhorita Hydele. Sua barriga… Ah! Sim, o almoço! Espere um instante, Senhorita!

    Jen saiu quase a saltos. Hyd aproveitou e prestou atenção aos seus arredores. Aquela mistura de adocicada estava a fazendo muito bem, imaginou. A luz vermelha havia ficado mais forte, e as sombras projetadas pelas folhas de árvores altas e outras tortuosas mudaram de posição. Aos poucos, as silhuetas foram tomando forma e posição, contorno.

    Havia um baú longo, deixado ao lado do seu pé, mas ao seu lado, um balde encardido com faixas sujas e vômito. Passou a respirar com a boca, baixinho e devagar, porém acelerou ao notar que também havia faixas sobre seus pés. Estavam enfaixados, e olhando para o seu busto, percebeu as clavículas enfaixadas. Tentou mover o pescoço, e seus ombros também estavam.

    Estava inteiramente coberta por faixas amareladas, e todo seu corpo estava esquentado por faixas amareladas e algo viscoso. Seus cabelos estavam desgrenhados, sujos, e até seu rosto… “Algo aconteceu comigo”, pensou. “Estou doente, ou alguém fez algo comigo e adoeci…’

    ‘Mas por que alguém faria algo comigo?”

    Antes que detalhasse seu raciocínio, Jen voltou. Trazia consigo uma malga e uma colher, e o cheiro de avelã, aveia e leite perfumou a tenda de teto vermelho como um canto de andorinha quando chegava a primavera. Sua barriga contraiu. “Jen sabe?”, pensou. “Ela sab…” Fungou. Sentiu cheiro de… groselha…

    — Desculpe pelo esforço, mas poderia abrir a boca, Senhorita? — Foi o que conseguiu dizer antes de ver o rosto paralisado de sua pupila. O amarelo-âmbar queria fugir das órbitas, inchadas, feito pedras pontiagudas, montanhas apontadas para o céu. Jenna tentou falar algo, porém fora interrompida por uma fungada, então por ver manchas surgindo ao redor das faixas no rosto de Hyd. — Senhorita…

    Hydele fungou. Engoliu um ar seco, catarro e deglutiu um ar podre, e seu corpo se aturdiu com tanta força quanto uma corda aguda se rompendo na harpa. Fungara de novo. “Eu a toquei. Consegui tocar… e aí…” Cinza. O ar verde era ruim de respirar. Péssimo, parecia-lhe pedras invadindo a garganta, preenchendo o pulmão… E tudo ficara cinza. E preenchido.

    Tudo fazia tanto sentido…

    — Senhorita…

    Hydele fungou.

    — Me conte… — Fungou. “O que eu fiz?” — Jen… Me conte…

    — A Senhorita… Bem.

    Jenna soergueu-se. Deixou o cheiroso mingau ao lado da arca e abriu-a, e de lá tirou uma carta. Hyd percebeu a cera tricolor. “O Pavão Coroado.” Hyd engoliu em seco. “À Maribeyte Bloen”, estava escrito em tinta rubra; e assim que quebrou a cera e leu a primeira palavra, se lembrara de sentir os pés e peito queimando como se formigas lhe mordessem, e de cair no chão, imóvel, ouvindo sua mãe gritar mais uma vez.

    “Eu não posso ter feito essas coisas”, concluiu. “Talvez não seja isso. Talvez… eu tenha ficado embriagada com vinho condimentado, tenha dormido e hoje estejamos comemorando o título de nobreza com uma caçada de inverno em solo aquecido.’

    ‘Mas, se fosse mentira, eu não teria uma carta de Sua Majestade…”

    — Jen — chamou.

    — Sim, Senhorita? Estou aqui para o que quiser.

    — Quero sair… — disse. “Maribeyte Bloen”, falou-se. “Meu novo nome. Nome de antigo. Nome falso para mago. Sua Majestade é brincalhona com nomes”, riu. — Estou com fome, também…

    — Fico feliz que esteja — disse a mestra, e Hyd finalmente conseguiu ver os olhos dela. Brilhavam, tão alegremente que a cicatriz horrenda parecia não existir. Ela fungou, passou a manga no nariz e balançou a cabeça, os cabelos tacanhos juntos. — Lá fora o clima esta agradável, Senhorita. Vai se sentir muito bem. E eu trouxe muito papel. Vou ficar muito feliz se continuar me ensinando a ler. — Sorriu, de um jeito tão feminino que a fez parecer uma donzela. — Mas, primeiro, comer. Depois, um banho. A Senhorita está fedendo.

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