Índice de Capítulo

    “Recordo-me de quando sonhei com isto pela primeira vez: havia arranjado meu primeiro namorado, debaixo de uma escada da escola. Voltei para casa com o coração enfervecido, e assim que dormi, pressenti algo terrível. 

    Não me recordei quando acordei, e algo dentro de mim dizia que não queria voltar a dormir e descobrir o que vi — o que vinha depois.”

    Izandi, a Oniromante

    Hyd acenou com os olhos.

    — Maribeyte — disse. — Ou só Mari, agora. — E Jen negou com os olhos, prestes a alimentá-la.

    De um jeito que, pensou Hyd, deixaria o cile irritado, Jen puxou uma das faixas sujas e cortou-a com uma tesoura. Percebeu que seus cabelos não eram a única coisa bagunçada, e que não eram a única coisa a ter crescido. “Estou mais alta”, percebera, junto de uma pequena curva. Os olhos de Jen saltaram quando retirou a última faixa do rosto de Hyd.

    — O que foi? Cicatriz?

    Havia uma pequena banheira na tenda. A água não era tão limpa quanto a do castro, que vinha direto do Olho que Chora, todavia havia perfumes no baú de Hyd. E roupas limpas. Hyd foi banhada, quase como se estivesse paralisada. Chorou ao ver a cicatriz na pelve: uma queimadura afiada como uma faca, mas logo fora seca e coberta.

    Jen enfeitou-a com um vestido esbranquiçado e longo, de lã bem costurada. Quer outro?, dissera, e Hyd afirmou que estava contente. Ia dos calcanhares às clavículas, com um rico bordado nas mangas longas. Sua mestra ainda quis cobri-la com um colete enleado de fios de prata em forma de orquídeas, mas rejeitou. Quero aproveitar o frio. Não pôs botas.

    Percebeu que sua bengala a esperava ao lado da cama, para ser zurzida contra o chão. Mas não tinha forças para andar sozinha, ainda. Por isso, sua mestra a pegou abaixo do pescoço e dos joelhos e levantou-a, deixando a mão direita para levantar um pouco sua cabeça. Hyd visivelmente não parecia ter forças para isso. Ela não negava.

    — Dói, de qualquer tico que seja?

    — Não — riu. — Estou bem, Mestra Jen.

    — Uma barriga cheia faz bem — melodiou. — Se melhorar, vamos comer peixe no jantar! Minha velha vó dizia que comer peixe bem cozido faz o peito crescer e a cabeça ficar boa. Vai ficar grande como sua mãe.

    Hyd corou, mas logo viu uma luz que não era vermelha. O sol estava fraco, coberto por algumas nuvens leves, quase sem neve, mas que escureciam um pouco o acampamento. Altos fogareiros estavam acesos entre algumas tendas. Eram seis na sua vista; baixas mas largas. Cavalos pastavam feno aos lados das tendas, amarrados às carruagens. Havia uma casa rolante ao lado da sua tenda, percebeu Hyd. “O castro só tinha duas… e me deram uma, mesmo assim?”

    Panelas chiavam com o borbulhar de água e carne. Sentiu cheiro de cabrito cozido, de cenouras e cebolas silvestres, de ervas doces, tão aprazíveis que a fome abria-se um pouco. Herbários caminhavam entre as árvores e arbustos que cercavam o acampamento, mas ao longe, um par de cavaleiros conhecidos, derrubando um tronco morto a machadadas.

    Viu Cei Witernier sentado em um tronco, próximo de fogueira pequena, segurando um colar de quinálfero-rubro, rezando. “Ele ficou ainda mais bonito”, pensara, com os olhos fixados nas pálpebras fechadas do cavaleiro de cabelo puramente negro, como se a noite fosse tecida em fios lisos, balançantes com o vento e estalidos da fogueira.

    — Cei! — dissera Jenna, quase como gritando. O cavaleiro virou o rosto, abrindo os olhos de ametista brilhantes, que se fixaram em Hyd com um sorriso. Ficara corada como uma maçã madura.

    — Pelas graças de Cuírai e Aiutai… — Levantou-se, educadamente e sem tirar os olhos de Hyd. — Meu coração deleita-se em vê-la acordada, Senhorita! — afirmou, com o sorriso mais bonito que ela já vira.

    Cei Witernier estava vestido com uma camisa preta com botões dourados, e sobre ela uma capa de linho enleada com fios dourados e listras lilases. Um cachecol felpudo de arminho protegia sua garganta do frio enfraquecido que deixava Hyd confortável. Ele amarrara o cabelo detrás do pescoço, mas sua espada estava em um impecável boldrié na cintura.

    Ele se moveria até elas, mas Jen foi primeiro. Hyd sentiu o peito acelerar, e se tivesse alguma força nos braços, teria dado algum soco na costela da mestra. Invés disso, sua atenção e batimentos estavam focados no rapaz de queixo pontudo, que prestou uma longa e educada vênia assim que estavam próximas o suficiente.

    — É verdadeiramente uma graça vê-las tão bem, senhoritas — afirmou ele. — Como se sentes, Senhorita… Bloen?

    — …Eu… — sussurrou Hyd. “Há pouco minha voz estava boa…” — Estou… bem.

    — Ela está com sede, Cei — disse Jen, com os olhos semicerrados em um tom de desdém.

    — Ah! Neste caso, tenho comigo algo que pode agradá-la. — Apontou o rosto para um bule. — Estou preparando, ainda. Chá de morangos silvestres. Minha mãe sempre fazia para mim, quando podia vê-la. — Sorriu, movendo os lábios vermelhos como o nariz.

    Hyd abriu um sorrisinho.

    — Gosto de chás.

    Cei Witernier fez um sorriso no canto do lábio, e Hyd o viu como se a resposta fosse a coisa que mais queria ouvir no mundo. O bule chiou, cuspindo luzinhas azuis velozes e claras.

    — Ah, ficou pronto.

    Com a mão enluvada, apontou para os troncos. Por um instante, fez uma expressão de surpresa que deixou Hyd desconfortável e de olhos trêmulos, mas voltou ao sorriso. “Um assunto!”, pensou ela. Queria conversar com ele. Queria conversar com ele por horas, seu coração lhe dizia.

    — Ah! — palrou, com o rosto desfazendo-se em um semblante cômico. — Só tenho um copo… Irei pegar outros.

    — Deixe que eu pego outro — falou Jen, e Hyd engoliu em seco.

    — Está… — tentou falar.

    — Não me parece boa ideia, senhorita Jenna! — Bateu no peito. — Uma senhorita tão delicada e meiga quanto a Senhorita Bloen não merece deitar-se em um tronco áspero, como estes. Irei em busca de mais copos.

    — Tudo bem — falara Hyd. — Posso me sentar… no chão…

    — Prefiro morrer do que deixar que um fio de cabelo seu seja manchado pelo chão — respondeu-a, com olhos impassíveis no rosto jovem.

    Hyd sorriu, um gigantesco sorriso. No entanto, Jen aproximou-se da fogueira do mesmo jeito, e o Cei percebeu que não conseguiria vencer. Rapidamente, ele retirou seu manto, o dobrou e pôs no chão. A ruiva engoliu em seco, sentindo o rosto ferver. Sua mestra a deixou sobre o manto, deu uma piscadela e saiu.

    “Não me deixe aqui sozinha!”, quis gritar. O Cei foi até o bule, retirou-o da fogueira e o repousou sobre um pouco de neve, que ferveu, e vaga-lumes leitosos, azulados e vermelhos claros correram pelo ar.

    — Senhorita — chamou o Cei. Ela virou os olhos. — Peço perdão por sua condição. Isso é tudo culpa minha. Se tivesse agido com mais compreensão e menos impulsividade…

    — Não é culpa sua — ela respondeu. Sabia mais do que ninguém que não era dele. “É minha. Se tivesse falado para Bert, ele me levaria a sério e teria feito algo. Revirado o castelo, junto do papai.” Reconheceria aquele tenor mesmo que não tivesse orelhas. — Você é um bom cavaleiro, Cei Witernier.

    Os olhos ametista dele pareceram perder toda cor, escurecidos como uma veleteto desligada. Balançou a cabeça.

    — Neste caso, minha Senhorita — falou, e o “minha” fez o coraçãozinho de Hyd saltar do peito —, permita que eu seja seu cavaleiro.

    O Cei retirou a espada de sua bainha. Era fina e longa, pontuda como um ferrão, e seu metal era tão polido que parecia um espelho. Brilhou vermelha à luz da fogueira, e quando se ajoelhou, Hyd teve o coração disparando e a mente assustada ao ver seu rosto na espada. Havia um símbolo familiar desenhado na sua testa, mas o ignorou completamente.

    — Quero prestar minhas juras a vós, Senhorita — falou. — Por qualquer nome que uses…

    Seu rosto avermelhou-se ainda mais. “Não tenho forças para tomar a espada”, pensou, e ignorou. Estava feliz.

     — Juras… proteger a minha honra, lutar por mim e viver por mim?

    — Juro pela Espada, por meus ancestrais e por todos os Quinze. Juro deter-me dos prazeres por vós, em nome de Fuinvol e de todos os Quinze. Eu, Cei Justin Witernier, declaro minha eterna servidão a vós, Senhorita. — Traçou-se lentamente o Sinal de Fuinvol na boca calada e na própria testa. — Nesta vida e para sempre.

    — Flores… — sussurrou ela. — Gosto de flores…

    Quando Jen voltou com os copos para o chá, Hyd estava dormindo com um sorriso puro e enorme na face. Sonhara com flores, belas flores desabrochando em um prado.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota