Capítulo 25: O Chamado ao Abismo.
Todo o som da guilda havia desaparecido…
Não como se tudo tivesse ficado quieto, mas como se o mundo, por um instante, tivesse esquecido como se faz barulho. Ninguém se moveu. Ninguém respirou. Era como se aquela única frase “Perdemos a comunicação” ainda estivesse se desenrolando, lenta e cortante, na mente de todos ali.
Eu me peguei apertando os dedos contra a lateral da coxa, tentando entender o que aquilo realmente significava. Runas de comunicação não falhavam assim. Não de repente. Não todas de uma vez.
— Eles… podem estar vivos, certo? — ouvi alguém murmurar ao fundo.
Mas ninguém respondeu. Nem mesmo Aqua, que descia os degraus como se cada um custasse um pedaço da própria convicção.
Selene olhou para mim com seriedade. Seus olhos pareciam pesar em algo.
A torre havia engolido o primeiro grupo.
E agora… era como se ela estivesse esperando mais.
O silêncio denso ainda pairava no ar quando Aqua, mais firme desta vez, deu outro passo à frente e ergueu a voz para todos no salão.
— A expedição à torre está oficialmente proibida até segunda ordem.
Alguns membros da guilda protestaram com olhares frustrados, mas apenas um deles teve coragem de se levantar.
— Mas não vamos mandar um grupo de resgate? — perguntou, os olhos tensos e a voz tomada pela inquietação.
Aqua balançou a cabeça devagar.
— Os aventureiros que foram enviados não eram fracos. Eram experientes, preparados. Para que a conexão com todos eles se perdesse de forma quase simultânea… algo fora dos nossos planos aconteceu. Correr para a torre sem entender o que houve só aumentaria o número de vítimas.
Selene cruzou os braços, o olhar afiado como uma lâmina.
— Uma torre recém-nascida não deveria ser tão perigosa assim.
Aqua virou o rosto para ela, com um suspiro contido.
— Eu vou traçar um plano mais cuidadoso. E provavelmente… vou precisar da ajuda da princesa da guerra para isso.
Selene arqueou uma sobrancelha, com um leve sorriso carregado de sarcasmo.
— Ah, se houver uma promessa de recompensa, talvez eu considere.
Aqua revirou os olhos com um meio sorriso cansado. Nesse momento, a atendente se aproximou de mim.
— Ashley, o seu teste prático será adiado… pelas circunstâncias. Espero que entenda.
Assenti, ainda absorvendo tudo. Logo em seguida, a porta lateral se abriu e Rose saiu da sala onde fazia a prova escrita. Ela parou ao ver o ambiente tenso e correu até mim.
— O que aconteceu aqui?
— Perdemos contato com o grupo que foi explorar a torre — respondi… foi tudo o que consegui dizer.
Rose ficou em silêncio, mas seus olhos… havia algo neles. Um vazio estranho, como se uma lembrança estivesse presa em algum lugar entre o agora e o antes.
Selene notou, mas não disse nada. Apenas olhou para mim e para Rose, então se virou para Aqua.
— Vamos conversar melhor sobre isso. Garotas podem me esperar?
Aqua e eu assentimos, ela subiu as escadas sem dizer uma palavra. Selene seguiu atrás.
***
A sala de reuniões da guilda era ampla e silenciosa, iluminada por uma única pedra de luz suspensa no teto. Aqua aguardava de pé, os braços cruzados e o olhar fixo em um mapa rústico da região.
— Isso não faz sentido — falei enquanto fechava a porta atrás de mim. — Uma Torre do Abismo recém-manifestada não deveria estar nesse nível de perigo. Elas demoram para se preencher com criaturas.
Aqua concordou com um movimento leve da cabeça, mas seu semblante não suavizou.
— É o que eu também achei…, mas e os tremores? Você sentiu algo quando estava na praia?
— Sim… estávamos treinando quando um súbito tremor causou alterações nas ondas.
Aqua se virou.
— Esses tremores começaram há cerca de um mês. Só que ninguém conseguia identificar de onde vinham. A entrada da torre surgiu agora…, mas talvez ela já estivesse se formando bem antes do que imaginávamos.
Franzi o cenho. Isso mudava tudo. Uma torre que estava se formando abaixo do mar por tanto tempo, podia já estar cheia de criaturas, armadilhas, talvez até donas de andar desde sua origem.
— Não deveria ter me apressado — disse Aqua, com um pesar sincero na voz. — Eu não levei em consideração que essa torre poderia já estar… viva.
Encarei o mapa, as linhas do litoral e a marca vermelha onde a torre havia aparecido. O instinto me dizia que havia mais ali. Algo que nem mesmo Aqua, com toda sua experiência, conseguia prever.
— Então você vai precisar de mim mesmo, não é?
Aqua sorriu de lado.
— Preciso. E ficaria muito grata se aceitasse. Com… uma recompensa a parte, claro.
Deixei escapar um leve suspiro, afastando uma mecha do cabelo.
— Dessa vez, acho que tenho tempo.
— Ótimo. Assim que eu tiver tudo planejado… vamos até aquela torre, vou contatar algumas pessoas. Dessa vez, não seremos engolidas pela escuridão.
***
Sentei-me com Rose em uma das mesas mais afastadas do salão da guilda. O lugar estava mais silencioso agora, apesar do burburinho contido que pairava no ar como uma tempestade prestes a desabar. Rose parecia distante, os olhos fixos em algum ponto invisível. Eu não quis forçar uma conversa. Acho que eu também precisava de silêncio.
Antes que qualquer uma de nós pudesse dizer algo, três figuras se aproximaram da mesa. Reconheci o grupo que estava na sala de espera mais cedo: os mesmos que chamaram atenção no dia anterior. O garoto de cabelos verdes e um olhar intenso foi o primeiro a falar.
— Podemos sentar? — perguntou. Apenas assenti com a cabeça, e eles puxaram cadeiras.
— Sou Hernán Ironwood — disse ele, colocando uma das mãos sobre a mesa com firmeza. — E esses são meus parceiros.
A arqueira de cabelos amarelos, com olhos dourados atentos, se inclinou levemente.
— Sophia Shineriver. Prazer.
O último, um rapaz forte de expressão calma e postura imponente, com cabelos vermelhos espetados, acenou com um meio sorriso.
— Cratos Firecrest.
— Ashley Silvermoon— respondi. — E essa é a Rose.
Rose acenou brevemente, ainda com aquele olhar um tanto perdido, mas prestando atenção.
Hernán se inclinou, apoiando os cotovelos na mesa.
— Um dos aventureiros que estava naquela expedição… era nosso mentor. Ele nos treinou, acreditou na gente. E agora… — ele passou a mão pelos cabelos, frustrado. — Cada minuto aqui parado parece tirar uma chance de encontrá-los vivos… se eu pudesse, entraria lá agora. Nem que fosse sozinho.
— Isso seria uma idiotice — rebateu Sophia, firme. — Nem você, nem eu, nem o Cratos estamos prontos pra isso. Se até um dos melhores grupos da guilda desapareceu… o que três novatos fariam lá dentro?
Cratos não disse nada, mas seu olhar sério parecia concordar com ela. Eu observei Rose, que continuava em silêncio, atenta a cada palavra como se absorvesse cada emoção sem conseguir expressar a própria.
— Vocês são corajosos — falei. — Mas coragem demais também pode cegar. Às vezes é preciso esperar… mesmo que a espera doa.
Sophia me lançou um olhar surpreso, talvez por não esperar que alguém como eu dissesse algo assim.
Foi então que vi Selene saindo da sala de reuniões. Ela me olhou com aquele ar de quem já tomou uma decisão.
— Estou com fome — disse, com simplicidade. — Vamos sair daqui por hoje.
Despedi-me do grupo com um aceno e segui com ela para fora da guilda. A noite tinha caído de vez, o ar ainda carregado com a tensão deixada pelos acontecimentos da torre. Andamos em silêncio por algumas ruas até parar perto da estalagem.
Enquanto subíamos as escadas para o quarto, pensei sobre tudo que tinha acontecido. As expressões dos aventureiros. A angústia nos olhos de Rose. A determinação de Selene em ajudar. E aquela torre… algo naquela torre não parecia certo. Era como se o próprio ar ao redor dela estivesse amaldiçoado por algo que não deveria existir.
O cansaço daquele dia começou a atingir minha mente, minha visão começou a ficar escura e cai no sono a medida que a noite avançava…
Fui despertada por um som agudo, estridente, cortando o ar como uma lâmina: uma sirene. Logo em seguida, uma voz profunda ecoou por toda a cidade, amplificada por algum tipo de dispositivo mágico.
— Todos os cidadãos devem se dirigir imediatamente à praça em frente ao palácio real. Um comunicado será feito em dez minutos.
Levantei num pulo e saí do quarto ainda meio zonza. Encontrei Selene já no corredor, ajeitando as mangas da roupa.
— O que tá acontecendo? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— Não sei. Mas podemos ir ver do que se trata esse comunicado.
Caminhei até a porta do quarto de Rose e bati algumas vezes…, no entanto não obtive nenhuma resposta.
— Ela deve estar dormindo. Ontem foi um dia puxado. — Disse Selene enquanto se preparava para sair.
Descemos rapidamente as escadas da estalagem e nos misturamos à multidão que se dirigia ao centro da cidade. A praça em frente ao palácio já estava lotada quando chegamos. Pessoas de todas as idades, mercadores, crianças, membros da guilda… todos de olhos voltados para o grande palco recém-preparado.
Um grupo de guardas surgiu carregando um palanquim ornamentado com veludo azul e dourado. Quando ele se abriu, um homem desceu… sua postura remetia a de quem comanda exércitos e carrega o peso de um reino sob os ombros.
Ele era imponente, com cabelos Azul Royal, vestes finas adornadas em ouro e uma coroa brilhante que ostentava um detalhe que chamou minha atenção: uma estrela de dez pontas formada por duas estrelas sobrepostas, entrelaçada por correntes. O brasão da Casa Marines.
— Para os que ainda não me conhecem, me chamo Enrico Marines — sua voz ecoou clara e firme. — Sou o governante dessas terras.
Nunca imaginei ver um rei de tão perto. Muito menos ouvir sua voz. Em Rivendrias, o máximo que víamos eram retratos ou menções formais em cerimônias distantes. Mas ali… ele estava a apenas alguns metros de mim.
— Chegou a mim a informação de que uma Torre do Abismo foi aberta nas proximidades da minha cidade. Como todos sabem, uma Torre do Abismo deve ser selada o quanto antes para evitar que criaturas escapem de seus andares.
— Isso me cheira a problema… — murmurou Selene ao meu lado. — Tenho um péssimo pressentimento.
— Tendo em vista o risco que isso oferece para o povo — continuou o rei — temo que essa torre deve ser selada imediatamente. Para incentivar isso, oferecerei uma recompensa de dez mil moedas de ouro ao grupo que conseguir selá-la.
Um breve silêncio se instaurou à medida que o Rei se retirava e se dirigia de volta ao palácio. Como se aquelas pessoas ainda estivessem processando o que acabou de ser dito, quando finalmente tiveram noção do peso daquelas palavras… a multidão explodiu num rugido caótico. Gritos, correria, empurra-empurra. Pessoas comuns, aventureiros, forasteiros… todos dominados pela ambição. Selene estreitou os olhos, e eu recuei um passo ao ver o brilho nos olhos da multidão. A atmosfera mudou num piscar de olhos. Agora… aquilo era uma corrida.
Antes que eu pudesse notar foi dado o início a uma corrida… rumo ao abismo…
Fim do Capítulo 25: O Chamado ao Abismo.
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