Era uma manhã comum no continente de Yundao, o céu parecia abraçar a terra, e os rios cristalinos fluíam.

    No Vale das Flores, a vida fluía como um rio calmo, lento e constante, um ciclo simples que os moradores da vila aceitavam como seu destino.

    O Vale era uma vila de mortais, um punhado de casas de madeira espalhadas, os telhados de bambu cobertos por musgo que brilhavam ao amanhecer. Era uma vila de homens e mulheres que viviam da terra, colhendo ervas nas encostas e plantando arroz nos campos alagados. 

    O dia começava com o som suave de passos na terra e o murmúrio de vozes carregadas pelo vento leve que descia das montanhas.

    Lin Tianyu estava sentado nos degraus da casa de sua família, uma construção simples com paredes de barro seco e um telhado baixo que rangia nas noites de chuva. 

    Aos dezesseis anos, ele era magro, com mãos calejadas de ajudar nos campos e cabelos negros que caíam sobre a testa em mechas desalinhadas, suas roupas simples contrastavam com um colar de jade verde que repousava contra seu peito. Seus olhos eram brancos e opacos, como duas pedras polidas pela correnteza, cegos desde o dia em que nasceu. 

    Tendo vivido na escuridão desde o nascimento, ele havia crescido aceitando o mundo através de outros sentidos, o som do vento nas folhas, o cheiro da terra úmida, o calor do sol em sua pele indicando a direção. Para Tianyu, isso era o suficiente.

    — Tianyu, venha cá! — A voz de sua mãe, Lin Mei, ecoou do interior da casa, suave mas com um toque de impaciência que ele conhecia bem. 

    Ela era uma mulher de meia-idade, com rugas finas ao redor dos olhos castanhos e mãos ásperas de tanto colher ervas. Lin Mei saiu pela porta, segurando uma cesta cheia de folhas verdes recém-colhidas, o aroma fresco misturando-se ao ar da manhã.

    Tianyu virou a cabeça na direção do som, um leve sorriso curvando seus lábios. 

    — Já vou, mãe. Só estava sentindo o vento.

    Ele se levantou, os pés descalços tocando a madeira áspera dos degraus, e caminhou até ela com passos firmes, guiado pelo som de sua respiração e pelo farfalhar da cesta.

    Lin Mei colocou a cesta no chão, limpando as mãos no avental surrado. 

    — Sentindo o vento… Sempre perdido em pensamentos. Se não fosse por Xue, você ficaria aí o dia todo, como uma tartaruga preguiçosa.

    Havia um tom de brincadeira em suas palavras, mas seus olhos brilhavam com um carinho que ela expressava com seus gestos. Tianyu era seu filho mais novo, e ela confiava na maneira como ele navegava no mundo, mesmo sem enxergar.

    Do outro lado da vila, uma risada aguda rompeu o ar, seguida por um grito animado. 

    — Tianyu! Se você não vier agora, vou te arrastar pelos cabelos!

    Era Lin Xue, sua irmã mais velha, de dezoito anos, com uma energia que parecia desafiar a calma do vale. 

    Ela surgiu correndo entre as casas, os cabelos longos esvoaçando como uma cortina negra, segurando um balde de madeira vazio que balançava em suas mãos. 

    Xue era alta e forte, com olhos castanhos cheios de vida, o oposto do irmão mais novo. Enquanto Tianyu ouvia o mundo, ela o enfrentava com mãos firmes e passos decididos, sempre pronta para puxá-lo para suas travessuras.

    Tianyu inclinou a cabeça, captando o som de seus passos rápidos, e ergueu as mãos em rendição. 

    — Está bem, Xue! Não precisa gritar — ele riu, e deixou que ela o agarrasse pelo braço, arrastando-o em direção aos campos com um entusiasmo que ele não conseguia resistir.

    Lin Mei os observou por um momento, o sorriso ainda nos lábios, antes de voltar para o interior da casa. 

    Lá dentro, Yu heng, o pai de Tianyu, estava sentado em uma cadeira de madeira gasta, consertando uma enxada com movimentos lentos e precisos. Era um homem robusto, com barba curta e mãos marcadas por anos de trabalho na terra, os olhos castanhos carregando uma calma que raramente se abalava.

    Ele ergueu o olhar quando Lin Mei entrou, sorrindo e acenando com a cabeça em um cumprimento silencioso. Ela sorriu de volta e passou por ele, colocando a cesta sobre a mesa rústica, e começou a separar as ervas em pequenas pilhas, o som das folhas roçando umas nas outras preenchendo o espaço entre eles.

    Fora da casa, a vila despertava aos poucos. As crianças corriam entre as árvores, suas risadas tilintando como sinos, enquanto os mais velhos se espalhavam pelos campos, curvados sob o sol com cestas nas costas. 

    Tianyu e Xue chegaram à encosta onde as ervas medicinais cresciam, um lugar onde o solo era rico e o ar parecia mais leve, quase vibrante. Tianyu se ajoelhou ao lado da irmã, suas mãos tateando as folhas com uma precisão que sempre deixava Xue admirada.

    — Sério, como você faz isso? — ela perguntou, arrancando uma erva com um puxão rápido e jogando-a na cesta entre eles. — Eu levo meia manhã pra achar as melhores, e você pega elas como se soubesse onde estão.

    Tianyu sorriu, sentindo a textura áspera das folhas entre os dedos. 

    — Eu ouço. As boas têm um som diferente quando o vento passa por elas. 

    Era uma explicação simples, mas verdadeira. Por nascer cego, seus outros sentidos sempre foram melhores que os dos outros, isso sempre fez parte dele, como o bater de seu próprio coração.

    Xue riu, balançando a cabeça.

    — Você é estranho, Tianyu. Mas um estranho útil, então vou te manter por perto — ela disse, rindo.

    Xue deu um tapinha leve em seu ombro, e os dois continuaram o trabalho, o sol subindo lentamente no céu enquanto o som de suas vozes se misturava ao canto dos pássaros.

    Mais abaixo no vale, o velho Zhang, ferreiro da vila, martelava um pedaço de ferro em sua oficina aberta, o som ritmado ecoando entre as casas.

    Era um homem encurvado, com cabelos grisalhos ralos e uma voz rouca que contava histórias de tempos antigos para quem quisesse ouvir. 

    Perto dele, a jovem Li Hua, uma menina de doze anos com tranças longas, corria atrás de uma galinha fugitiva, gritando ordens que o animal ignorava completamente. O som de sua perseguição arrancou risadas de Tianyu, que virou a cabeça na direção dela mesmo estando tão longe.

    — Li Hua nunca vai pegar essa galinha, já faz dias que ela tenta — disse Xue, rindo também. — Ela é mais teimosa que o bicho.

    Tianyu assentiu, ainda sorrindo. 

    — Talvez ela devesse pedir ajuda ao velho Zhang. Ele poderia forjar uma gaiola pra ela.

    Os dois irmãos continuaram o trabalho, o dia passando em uma sequência tranquila de tarefas e conversas leves. Quando o sol alcançou o meio do céu, Lin Mei chamou-os de volta para casa, onde uma panela de arroz cozido e uma sopa de ervas os esperava.

    Yu heng já estava lá, limpando as mãos em um pano velho, o rosto suado do trabalho nos campos. A família se sentou ao redor de uma mesa baixa, o som de colheres de madeira contra tigelas de cerâmica preenchendo o ar.

    — Como estava o campo hoje? —  perguntou Yu heng, sua voz grave, porém calma, enquanto pegava um punhado de arroz.

    — Cheio de ervas boas — respondeu Xue, soprando a sopa quente. — Tianyu achou mais que eu, como sempre.

    Lin Mei lançou um olhar orgulhoso para o filho, embora ele não pudesse vê-lo. 

    — Ele tem um dom pra isso. Sempre teve.

    Tianyu abaixou a cabeça, sentindo o calor das palavras da mãe, mas sem saber como responder. Ele apenas comeu em silêncio, o colar de jade repousando contra seu peito, frio e pesado como sempre. Era uma peça simples, um círculo de jade verde-escuro com entalhes desgastados que ele às vezes traçava com os dedos, imaginando o que significavam. Sua mãe dizia pertencer ao avô dela, Lin Zhan, que foi um cultivador que havia viajado pelo mundo antes de se estabelecer na vila e desaparecer anos depois. Era tudo o que ela sabia, e Tianyu nunca perguntava mais.

    Após a refeição, Xue arrastou Tianyu para ajudar a carregar água do riacho próximo, os dois trocando provocações enquanto o balde balançava entre eles. Lin Mei voltou às ervas, separando as folhas em pequenas pilhas para secar ao sol, enquanto Yu heng consertava uma cerca quebrada na borda da vila. 

    Os moradores continuavam suas rotinas. O velho Zhang martelava, Li Hua havia desistido da galinha, e as crianças corriam entre as casas, suas vozes subindo como fumaça.

    Tianyu sentou-se novamente nos degraus da casa quando o sol começou a se inclinar para o oeste, o calor do dia cedendo a uma brisa mais fresca. Ele inclinou a cabeça, ouvindo o som distante do riacho e o farfalhar das flores nos campos. O vale estava vivo ao seu redor, um coro de sons que ele conhecia como as linhas de suas próprias mãos. 

    Xue passou por ele, carregando o balde agora cheio, e deu um leve empurrão em seu ombro.

    — Vamos, preguiçoso. Ainda tem água pra buscar antes de escurecer.

    Tianyu riu, levantando-se para segui-la. O dia seguia seu curso, simples e tranquilo, como o vale que os abrigava.


    Enquanto a vida seguia seu rumo sem novidades no Vale das Flores, um cenário muito diferente se desenrolava a milhares de quilômetros dali, contrastando com a paz do vale.

    Esse lugar era o Monte do Dragão Escarlate, onde o Pavilhão da Seita do Dragão Carmesim erguia-se parecendo um monstro de pedra negra. Torres de obsidiana perfuravam o céu, envolta de rios de lava que cortavam a montanha. Aqui o ar cheirava a enxofre e brasas e o calor havia criado rachaduras no chão como teias se espalhando.

    Dentro de um pavilhão no Monte em uma câmara selada por runas, Yue Wuxin, o oráculo da Seita do Dragão Carmesim, estava de joelhos. Era uma mulher de cabelos brancos que caiam para frente sobre o rosto, escondendo seus olhos. Suas mãos tremiam segurando uma esfera de cristal vermelho, com o Qi ao redor dela pulsando quente e descontrolado.

    De repente a esfera brilhou e Yue Wuxin arquejou. Imagens cruzaram sua mente, um fogo sem fim queimando montanhas, um par de olhos dourados brilhando na escuridão, uma força que desafiava os céus. Ela viu a Seita do Dragão Carmesim em cinzas, suas torres desabando, seus Elders mortos. A visão veio com uma certeza fria, uma calamidade viria de uma região montanhosa coberta de flores. Onde exatamente ela não sabia, mas a ameaça era real.

    — Os olhos dourados retornam — sussurrou com os lábios secos. — O sangue dos Lin vive.

    De repente as runas da câmara acenderam e a porta de pedra rangeu. Huo Yanlong, o mestre da seita, entrou com seu manto vermelho bordado com dragões dourados. Alto, com cabelos negros e olhos vermelhos que pareciam brasas, ele emanava poder. Sua presença fez o ar pesar, e Yue Wuxin levantou a cabeça e endireitou o corpo.

    — Fale, oráculo — disse Huo Yanlong com a voz firme. — O que os céus mostram dessa vez?

    Yue Wuxin apertou a esfera com mais força. Suas palavras saíram lentas, carregadas de peso.

    — Uma calamidade vem, Patriarca. O sangue do Clã Lin dos Olhos Celestiais não morreu. Uma calamidade com olhos dourados nascerá em uma terra de mortais nas montanhas. Ele queimará esta seita até as cinzas se não for detido.

    Huo Yanlong franziu a testa, com o rosto endurecendo. O Clã Lin foi exterminado há mais de vinte anos. Ele mesmo liderou a caçada que matou Lin Zhan, o último descendente do Clã, no Desfiladeiro das Lágrimas Negras. Os Olhos Celestiais, olhos que viam o Qi do mundo e dobravam o destino, foram apagados. Ou assim ele acreditava.

    — Impossível — disse com a voz fria. — Lin Zhan era o último, sei disso como um fato. Não havia outros.

    Yue Wuxin balançou a cabeça.

    — Os céus não mentem, Yanlong. O sangue dos Lin vive, e a calamidade está próxima. Encontre a fonte, ou nossa seita cairá.

    Huo Yanlong cerrou os punhos, o Qi começando a faiscar ao seu redor. A Seita do Dragão Carmesim era a guardiã da ordem celestial, uma força que reinava nos Nove Reinos. A ideia de que o Clã Lin ainda existia era uma afronta. Ele não falou mais nada, apenas virou-se e saiu com o manto esvoaçante. O conselho precisava ser convocado.

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