A brisa da noite carregava o cheiro de terra úmida e o aroma das flores que se fechavam para dormir. Dentro da casa da família Lin, o calor de uma pequena fogueira crepitava no canto, o som das chamas dançando contra a madeira misturando-se ao som das tigelas de cerâmica sendo postas sobre a mesa baixa.

    Era a hora do jantar, um ritual simples que reunia os quatro, Lin Mei, Yu Heng, Lin Xue e Lin Tianyu em um círculo de vozes e silêncios que Tianyu conhecia como as batidas de seu coração.

    Tianyu estava sentado em sua cadeira, os dedos roçando a borda da tigela quente que sua mãe havia colocado diante dele. O cheiro de arroz cozido e sopa de ervas subia, misturado ao leve sabor salgado de peixe seco que seu pai trouxe do riacho mais cedo. 

    Ele ouviu o som de Xue se acomodando ao seu lado, o farfalhar da sua roupa enquanto ela se inclinava para pegar uma colher de madeira, e o suspiro cansado de seu pai enquanto ele se sentava após um dia cansativo nos campos.

    — O velho Zhang tava contando histórias hoje de novo — disse Xue, quebrando o silêncio com sua voz animada enquanto soprava a sopa quente. 

    — Ele falou de um imortal que viu na Vila do Rio Torto, anos atrás. Disse que o homem parou um rio inteiro com a mão e pegou uma nuvem do céu nas mãos.

    Lin Mei riu baixo, o som suave ecoando enquanto servia mais sopa na tigela do marido. 

    — Zhang sempre teve jeito pra contar histórias. Metade é verdade, e a outra metade ele inventa pra entreter as crianças.

    — Será que essa era verdade? — Perguntou Xue, o tom carregado de curiosidade. — Ele disse que o cultivador tinha um manto verde que flutuava sozinho, e que a água tinha medo dele. Pareceu incrível!

    Seu pai riu, pegando um pedaço de peixe com as mãos.

    — Incrível ou não, essas coisas não são pra gente como nós. Cultivadores e imortais vivem nas montanhas altas, longe de vales como este. Melhor assim, deixem eles com seus rios parados e nuvens, e nós com nosso arroz e peixe.

    Tianyu ouviu em silêncio, a colher parada em sua mão enquanto tentava imaginar, mas era impossível. Tudo que ele conhecia era escuridão.

    Ele sentia o calor da sopa contra os dedos, o som da família ao seu redor, mas sua atenção estava em outro lugar. O colar de jade repousava contra seu peito, frio e pesado como sempre, e as histórias de cultivadores, mesmo as exageradas do velho Zhang, faziam algo dentro dele se mexer.

    — Mãe… — Ele chamou, a voz baixa cortando a conversa que já havia trocado de rumo.

    — Você disse que meu bisavô era um cultivador. Que o nome dele era Lin Zhan. Ele era como esse homem que o tio Zhang viu?

    O silêncio caiu sobre a mesa por um instante, quebrado apenas pelo crepitar da fogueira. Tianyu pode ouvir que sua mãe parou de mexer na panela, e o som sutil da respiração dela mudou, como se ela hesitasse.

    — Eu não sei muito sobre ele, Tianyu — respondeu ela finalmente, a voz mais suave que o normal.

    — Ele não falava da vida dele antes de vir pra cá. Eu era pequena quando ele sumiu. Tinha uns cinco ou seis anos. Minha mãe, sua avó, disse que ele morreu, mas nunca soube como ou onde.

    — Ele deixou esse colar que você usa comigo antes de sumir, disse para minha mãe que era pra passar o colar caso um menino nascesse na família. Por isso te dei ele assim que você veio ao mundo — contou ela.

    Tianyu inclinou a cabeça, os dedos subindo instintivamente até o colar. Ele traçou os entalhes desgastados do jade, sentindo as linhas que não podia ver, e tentou imaginar o homem que o usou uma vez.

    — Ele nunca disse nada? Nada sobre ser um cultivador?

    Lin Mei suspirou, o som carregado de uma nostalgia que Tianyu raramente ouvia.

    — Quase nada. Uma vez, quando eu era bem pequena, ele me pegou no colo em uma noite chuvosa, e disse que se eu quisesse, ele poderia expulsar a chuva para mim. 

    — Mas eu era muito pequena para entender, disse que gostava da chuva e ele apenas riu. Me pergunto o que ele teria feito se eu tivesse respondido diferente — ela relembrou, dando um suspiro.

    — Mas fora isso, ele não falava muito. Trabalhava na vila, consertava coisas, ajudava nos campos. E fazia tudo isso como um mortal. Depois sumiu, e o colar foi tudo que ficou.

    Yu heng olhou os olhos da esposa, e achou melhor mudar o assunto, não queria trazer lembranças dolorosas a tona para ela. 

    — Seja como for, isso foi há muito tempo. E se ele escolheu viver aqui, não nas montanhas com os outros cultivadores, isso diz o suficiente não acham?

    Xue bufou, claramente não satisfeita. 

    — Será que ele era forte? Tipo, parar rios e pegar nuvens forte?

    — Eu não sei minha filha, para mim, ele era apenas um homem velho que não falava muito — disse Lin Mei, com uma risada leve.

    — Agora comam, ou essa sopa vai esfriar. 

    Tianyu sentiu o som dela se levantar para pegar mais arroz.

    O jantar continuou, as vozes da família voltando a um ritmo leve, com Xue fazendo piadas sobre como Tianyu comia devagar e Yu Heng resmungando sobre a cerca que ainda precisava de ajustes. 

    Tianyu ouviu tudo, mas uma parte dele estava distante, perdida nas palavras da mãe. 

    Lin Zhan, um cultivador, um homem que talvez poderia expulsar a chuva que caía lá fora. 

    Ele tentou imaginar isso, a chuva, as montanhas altas, um mundo além do vale, mas as imagens não vinham. Ele nunca viu a chuva, nunca viu as montanhas. Tudo o que tinha eram sons e toques, e isso parecia pequeno demais para um sonho tão grande.

    Quando a refeição terminou, Tianyu ajudou a levar as tigelas para o canto da casa, tateando a mesa e seguindo o som da voz de Xue enquanto ela as empilhava. 

    — Você tá quieto demais — disse ela, dando um leve empurrão em seu ombro. — Tá pensando no bisavô, né?

    — Um pouco — admitiu Tianyu, a voz baixa. — Só tentando entender como deve ser.

    Xue riu, o som leve enchendo o ar.

    — Se ele era um cultivador, espero que tenha sido dos bons. Quem sabe, talvez você tenha herdado algo dele além desse colar feio.

    Tianyu sorriu, mas não respondeu.

    Ele se despediu da família com um aceno, sentindo o caminho até seu quarto no canto da casa. O som dos passos de sua mãe apagando a fogueira e o murmúrio de seu pai falando algo para Xue foram os últimos que ouviu antes de se deitar, a palha áspera sob seu corpo dando um conforto familiar.

    Deitado, ele segurou o colar entre os dedos, traçando os entalhes enquanto o silêncio da noite chegava. 

    Tentou imaginar como seria ser um cultivador, parar rios com um gesto, pegar nuvens do céu, controlar a chuva como Lin Zhan disse que podia. Ele fechou os olhos e deixou a mente vagar, mesmo sabendo que não fazia diferença, pois seu mundo era sempre a mesma escuridão. 

    Ele tentou imaginar, mas as imagens não vinham. Ele não sabia como era um rio além do som da água correndo, não sabia como era uma nuvem. O mundo dos cultivadores era vasto, cheio de coisas que ele nunca tocou, nunca sentiu, e isso o fez sentir-se pequeno, preso em uma escuridão que não podia escapar.

    Uma pressão cresceu em seu peito, um nó que ele não esperava. Ele queria ver, não apenas imaginar sensações, mas ver. Ver o vale, as flores, o rosto de Xue quando ela ria, os olhos de sua mãe quando ela o olhava. Queria ver o céu que seu pai dizia ser azul, as montanhas que o velho Zhang descrevia como gigantes adormecidos.

    Mas ele nunca viu nada, nem mesmo a luz do sol que aquecia sua pele todos os dias. E isso doía, de um jeito que ele não sabia explicar.

    Uma lágrima escorreu por seu rosto, quente contra a pele fria da noite, e ele a deixou cair, silenciosa. Outra veio, e depois outra, até que ele virou o rosto para o lado, escondendo o som de sua respiração trêmula.

    Ele não chorava por pena de si mesmo, era algo mais profundo, uma saudade de algo que nunca teve, de um mundo que existia além de seus dedos e ouvidos, mas que ele nunca alcançaria.

    O colar pesava contra seu peito, e Tianyu segurou-o com mais força, como se pudesse encontrar conforto ali, nas linhas gastas do jade.

    — Você viu tudo isso, não viu?  — Sussurrou ele, a voz tão baixa que mal se ouvia. — Eu queria ver também.

    A noite avançou, o som do vento lá fora misturando-se ao silêncio da casa, e Tianyu ficou ali, perdido em pensamentos que não podia pintar, até que o sono finalmente o levou.

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