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    [Duzentos anos depois de Tiamat, destruir o país dos Elfos negros].

    Na penumbra da noite, Milveg estava sentado na beirada de um prédio antigo, cujas pedras frias mal tocavam a silhueta de sua forma esguia.

    Seus olhos, dois poços carmesim de mistério, refletiam o brilho prateado da lua que, como uma mãe gentil, estendia seus raios sobre o vilarejo ainda em construção dos Elfos Negros.

    O vento da noite brincava com seus longos cabelos prateados, que dançavam ao seu redor como fitas de luz.

    De repente, o silêncio da contemplação foi quebrado por passos cautelosos. Uma serva, com a reverência de quem caminha sobre folhas secas, aproximou-se dele.

    Nas mãos trêmulas, ela segurava um pergaminho, que entregou a Milveg com um gesto de deferência. Ele, com um desinteresse quase teatral, desenrolou o papel e deixou escapar um suspiro que parecia carregar o peso de reinos inteiros.

    Sem demora, Milveg dirigiu-se ao salão principal, onde o som de vozes em alvoroço cortava o ar como lâminas afiadas. Ali, um círculo de Elfos, com olhares tão duros quanto as pedras sob seus pés, assistiam a um espetáculo de crueldade.

    No centro, um Elfo da Floresta, despojado de sua dignidade e vestes, enfrentava a ira do rei. A cada golpe do chicote, a injustiça marcava sua pele, mas Milveg, com a impassibilidade de uma estátua, apenas observava, seus olhos não revelando nenhum traço de compaixão ou revolta.

    O açoitador parou, encarando o rei na cadeira.

    — Irmão! — exclamou, encarando Milveg. — Capturamos esse idiota perambulando por aí. Ele não quer dizer onde estão os Elfos do ninho dele. Poderia fazer as honras?

    Milveg estreitou a vista encarando os olhos escarlates do irmão, dando as costas.

    — É! Foi o que imaginei, você continua um covarde!

    Milveg virou-se, deixando para trás o eco dos lamentos e o calor das tochas que iluminavam a sala do rei. Ele subiu as escadas.

    A escuridão o envolvia, mas ele não hesitava; conhecia aquele caminho como se fosse parte de si.

    Ao chegar ao topo, ele se deparou com uma porta de madeira antiga, entalhada com símbolos arcanos que pulsavam com uma luz fraca. Empurrando-a, Milveg entrou em uma sala que era um santuário de segredos.

    Paredes estavam cobertas com runas e círculos mágicos, desenhados com um vermelho tão profundo que só poderia ser sangue.

    No centro, um mago encapuzado estava absorto em seu trabalho, manuseando um frasco com um líquido que brilhava com uma luz interna.

    — E então, o que conseguiu? — Milveg perguntou, sua voz tão fria quanto a pedra sob seus pés.

    O mago, sem levantar os olhos, bebeu do frasco e começou a folhear o livro com uma urgência febril. As páginas viravam em um borrão até que, finalmente, ele parou.

    Seus dedos, manchados com a tinta do tempo, apontaram para uma árvore genealógica que se estendia por milênios. Nomes foram rasurados, linhagens interrompidas, mas havia um que se destacava, imaculado.

    — Cikshusalal da família Ungut! — O mago anunciou. — Os ancestrais dela são os únicos, dentre todas as raças de Elfos Negros, que mantiveram o sangue completamente puro. Se é pureza que você busca, está com ela.

    Milveg inclinou a cabeça, considerando as implicações dessa revelação.

    — Meu irmão continua invadindo vilas e deixando uma linhagem de impuros por onde passa. Farei um convite a essa mulher para se tornar a minha esposa.

    — E quanto ao seu irmão? Ele continua sendo o rei, mas as atitudes dele não agradam aos outros duques e generais.

    — Meu pai se tornou um inválido, e meu irmão acabará nos matando.

    O mago fechou o livro.

    — Os vampiros, o grandioso reino dos Elfos da floresta e o domínio humano, tudo isso chegou ao fim há dois séculos. Seu irmão tem a chance de reinar sobre todo o continente, por que não o apoia?

    Em silêncio por alguns segundos, Milveg abriu um sorriso de canto.

    — Meu irmão foi abençoado com muitos filhos, e os Elfos fingem que o respeitam, apenas esperando o momento certo para apunhalá-lo pelas costas.

    — … Você planeja…

    — Não, meu irmão cairá sozinho, e quando isso acontecer, eu serei o rei. Sou paciente, e quando a coroa for minha, levarei os Elfos Negros a outro patamar, por isso preciso da Cikshusalal Ungut. — Ele caminhou até a saída. — Continue seus estudos.

    — O rei já está começando a desconfiar, senhor.

    — Meu irmão é idiota demais para perceber qualquer coisa, acredite em mim, eu sei disso.


    À medida que a aurora tingia o céu de tons suaves, Milveg caminhou pelas ruas ainda adormecidas da parte nobre da cidade. Seus passos eram silenciosos, mas sua presença parecia acordar a própria manhã. Diante dele, erguia-se um casarão imponente, com torres pontiagudas como lanças e uma arquitetura gótica que contava histórias de tempos áureos.

    Com um gesto firme, Milveg bateu na porta maciça.

    O som ressoou pelo silêncio da alvorada, e não demorou para o mordomo aparecer. A expressão surpresa foi rapidamente substituída por uma reverência.

    — Sou Milveg Ostreth, e desejo falar com senhorita Cikshusalal — anunciou ele, sua voz tão clara quanto o amanhecer.

    O mordomo, reconhecendo a importância do visitante, abriu a porta completamente. Ao fundo, o senhor Ungut, pai de Cikshusalal, emergiu das sombras, a dignidade de sua postura, refletindo o prestígio de sua linhagem.

    — Príncipe Milveg — disse ele, com um aceno de cabeça. — É uma honra recebê-lo. Por favor, entre.


    Milveg adentrou o casarão, seguindo o senhor Ungut até uma sala de chá, onde o aroma das ervas frescas se misturava ao cheiro de madeira antiga. Sentaram-se frente a frente, a luz da manhã filtrando pelas janelas altas.

    — E então, príncipe, a que devo a honra de sua visita?

    — Serei direto, tenho um interesse particular em sua filha — começou Milveg, sem rodeios.

    — Por quê? — perguntou Ungut, a curiosidade marcando suas feições.

    — Os Ostreth e os Ungut são famílias de grande antiguidade e prestígio. Uma união entre nós seria, acima de tudo, um movimento político — explicou Milveg, sua voz mantendo um tom neutro.

    — Como isso exatamente beneficiaria a nossa casa? — indagou Ungut, inclinando-se ligeiramente para frente.

    — Meu irmão tem muitos inimigos, e isso não é segredo para ninguém. A guerra no Oeste drena nossos recursos e o descontentamento cresce. Uma aliança com os Ostreth seria uma oportunidade valiosa para os Ungut serem finalmente respeitados como merecem. Se meu irmão cair, eu serei o próximo rei — disse Milveg, seus olhos fixos nos de Ungut.

    O senhor Ungut assentiu lentamente, ponderando as palavras de Milveg. — Minha filha é uma mulher de vontade forte e difícil de persuadir. Mas vou chamá-la — ele disse, levantando-se com a graça de quem conhece o peso de decisões que moldam destinos.


    A porta se abriu com um rangido suave, revelando uma figura que parecia ter sido esculpida nas sombras. Cikshusalal, a bela Elfa Negra, de olhar afiado, adentrou a sala com a graça de uma pantera. Seus cabelos negros como a noite caíam em cascata sobre os ombros, e seus olhos eram duas fendas de rubi.

    O senhor Ungut se retirou, deixando Milveg e Cikshusalal sozinhos. O ar na sala pareceu ficar mais denso, carregado com a tensão que pairava entre os dois.

    Milveg tentou se apresentar, mas antes que pudesse dizer uma palavra, ela o interrompeu.

    — Sei quem você é, Príncipe Milveg — disse Cikshusalal, sua voz cortante como um fio de aço. — Ouvi tudo.

    Relaxando na cadeira, ela cruzou as pernas com uma elegância ímpar. Milveg ergueu uma sobrancelha, intrigado.

    — Então, quais são os seus termos? — perguntou Milveg, decidindo jogar o jogo dela.

    Cikshusalal inclinou a cabeça, estudando-o com um olhar que parecia penetrar até os recantos mais sombrios de sua alma. — Quero o que você esconde no castelo — disse ela, sem rodeios.

    Milveg ficou momentaneamente surpreso. Como ela poderia saber disso? As pessoas comentavam sobre seus experimentos com o mago louco, mas ele não esperava que alguém fosse tão direto.

    — Não é nada de mais — Milveg respondeu, sorrindo. — Apenas desejo que os Elfos Negros se elevem acima de tudo. O rei atual dificilmente fará isso por nós.

    Cikshusalal assentiu, seu olhar julgador não diminuiu. — Aceito — disse ela. — Mas espero que o rei não permaneça muito tempo no poder. Meu pai e outros nobres perderam muito dinheiro financiando suas invasões. Os Elfos Negros podem entrar em crise, sujeitos a qualquer outro grande reino que nascer no leste, se as coisas continuarem assim.


    O casamento entre Milveg e Cikshusalal aconteceu de maneira discreta, como as sombras que se entrelaçavam na noite.

    Semanas se passaram, e Milveg continuou suas visitas ao mago, cujos planos agora se aceleravam. A notícia da gravidez de Cikshusalal ecoou pelos corredores do castelo, e o mago viu nisso uma oportunidade.

    Na penumbra de uma sala escura, onde o ar parecia mais espesso e o tempo se arrastava, o último oráculo vivo estava deitado. 

    Um humano idoso, seu semblante enrugado e corpo esquelético, jazia acorrentado. O mago, com mãos trêmulas, preparava-se para o ritual que mudaria o curso da história dos Elfos Negros.

    Milveg estava sentado em um canto, observando o velho com olhos inquisitivos. — Foi difícil encontrá-lo — disse ele, sua voz baixa. — Mas consegui. Agora, diga-me, por que precisamos dele?

    O mago velho ergueu os olhos, revelando um brilho quase insano.

    — Oráculos — começou ele — desenvolvem uma conexão especial com seres sobrenaturais. Aprendem a convidá-los para entrar em seus corpos, ganhando poder e sabedoria. Esses seres podem ser deuses menores que chamamos de entidades. Podem ser também espíritos, almas de mortos ou algo mais. Independente da origem, cada possessão desgasta a mente, corroendo a sanidade e as defesas mentais do oráculo com o tempo.

    Enquanto falava, o mago começou a limpar o corpo do oráculo, removendo as impurezas que se acumularam ao longo dos anos.

    O velho estava amordaçado, mas seus olhos expressavam o mais absoluto medo.

    — Quando estão possuídos — continuou o mago — os oráculos manifestam sinais físicos dos seres que habitam seus corpos. A forma desses sinais varia. Possessões podem fazer escritas sagradas aparecerem na pele ou uma língua de fogo queimar sobre a cabeça do oráculo. Seres mais sinistros podem fazer as sombras dançarem, chifres crescerem ou um fedor tomar o ar. Não importa a forma, esses sinais indicam que algo antigo e poderoso reside no corpo do hospedeiro momentaneamente, enquanto o corpo é preparado.

    O velho oráculo estremeceu, e Milveg percebeu estar prestes a testemunhar algo além da compreensão. O mago, com mãos trêmulas, começou a entoar palavras ancestrais, e o ar ao redor deles pareceu vibrar com energia proibida.

    Veias pulsavam do corpo do velho, e parecia que a qualquer momento ele explodiria, até que o corpo daquele senhor ficou inerte.

    — Vamos descobrir o que se esconde em você, velho!

    Sombras emergiram do corpo do moribundo, dezenas delas se misturando e se atracando, até serem sugadas por um orbe escuro.

    O silêncio os atingindo como um soco no peito.

    Segurando a orbe, o mago a encarou, admirado.

    — Senhor Milveg! — Seus olhos revelavam sua insanidade. — Vi entidades superiores… entidades que até mesmo os antigos Elfos cultuavam… vi magos poderosos e guerreiros mestres em uma miríade de artes marciais espalhadas pelo cosmos… vi tantas coisas que minha cabeça está borbulhando!

    Milveg se levantou, caminhando até o orbe, vendo dezenas de sombras em diferentes formas se entrelaçando.

    — Essas entidades… habitarão meus filhos? — Sim! Não é incrível? A primeira parte está pronta, traga sua esposa até mim, príncipe Milveg.

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