Capítulo 344: O Caminho do Sangue (I)
Tantos mundos…Tantas mentes carregadas para um sono profundo, arrastadas como restos de maré depois da tormenta.
Homens e mulheres, cada um com suas dores, suas memórias, seus desejos partidos — todos empilhados ali, presos naquele espaço invisível que o Mundo Espelhado oferecia. Independente de quem fossem em vida, todos eles haviam chegado ali com um único propósito: vencer. Mas vencer o quê? A si mesmos? O tempo? A dor?
Nada naquele lugar tinha gosto de glória. Nada ali era redenção.
Era um descaso — um cemitério de vontades, um espelho rachado refletindo derrotas.
Como vencer algo que, desde o início, nunca teve forma? Que sempre escapava pelas frestas da consciência?
Esses mesmos homens… por quanto tempo estariam presos? Quantas eras haviam passado, quantas ilusões haviam vivido dentro de versões fragmentadas de si mesmos, incapazes até mesmo de distinguir o que era real?
Dante não tinha como saber. Mas ele sentia. Sentia cada um deles.
O braço de luz atravessado em seu peito parecia pulsar com as lembranças de todos. Mostrava-lhe o que os olhos jamais veriam por conta própria: os nomes esquecidos, os medos não ditos, os sonhos interrompidos.
Vidas inteiras, desperdiçadas em busca de algo que sequer lembravam mais o nome.
De onde vieram?
O que buscavam?
Para onde queriam ir?
E então, a pergunta mais silenciosa de todas: isso era justo?
A resposta veio sem atraso, como se a própria escuridão estivesse à espreita de seus pensamentos:
— Justiça não tem nada a ver com isso — disse a voz, mais próxima agora, mais íntima. — O que importa é o que sua mente deseja. E por isso… farei com que todas essas mentes se tornem uma só.
Houve uma pausa. O som parecia sorrir.
— O Desejo, Dante, não é mais do que um amontoado de sonhos… unidos por um único propósito: a própria vida.
Dante ergueu o rosto, a respiração pesada.
— Você… quer viver?
A criatura riu. Uma risada baixa, lenta, cheia de sabor. Como alguém que finalmente provara de um prato pelo qual esperou séculos.
— Mais do que tudo nesse mundo.
A voz cresceu, sem precisar gritar. Cresceu por dentro dele, como uma raiz que encontra solo fértil.
— Porque só vivendo poderei tornar o mundo real. A verdade dos Lagmorato, a origem da Energia Cósmica, o Rastro que forçou minha identidade a se fragmentar… tudo isso poderá ser refeito. O mundo poderá ser reerguido. Em paz. Para sempre.
A promessa pairou no ar como um perfume antigo. Quase sedutora.
Dante baixou os olhos.
E sussurrou:
— Viver… dói.
A criatura não respondeu de imediato. Como se aquela afirmação fosse um golpe.
E então, com um tom mais contido, quase gentil:
— Sim. Dói.
Dante fechou a mão, respirando fundo.
— Então, você vai aprender sobre ela agora.
Antes que pudesse se afastar, a Energia Cósmica de Dante vibrou dentro dele como um raio comprimido, convergindo com violência para o cotovelo. Num movimento instintivo, ele girou o corpo e lançou o braço para trás, acertando com precisão a lateral da criatura — onde imaginava estar a costela.
O impacto foi brutal.
O ar se distorceu ao redor deles como um tecido rasgado. A explosão resultante os lançou em direções opostas, como folhas arrastadas por uma rajada invisível.
Dante caiu de joelhos. Suas mãos se apoiaram em algo frio. Um espelho.
Mas do outro lado… não havia reflexo. Era uma mulher — cabelos negros, pele pálida, andando calmamente sobre uma viga de madeira suspensa no vazio. Seus pés não produziam som. Ela não olhava para ele. Parecia parte de outro tempo.
Então, a silhueta da criatura surgiu atrás de Dante. No espelho. Seu reflexo projetava uma mão aberta, e fios de energia serpentearam no ar, prontos para perfurá-lo.
Dante se atirou para o lado num rolamento rápido. No mesmo movimento, girou o tronco e apontou dois dedos para o espelho.
— Receba o peteleco.
O ar explodiu como se tivesse sido comprimido por um trovão. O golpe atingiu a criatura em cheio no peito, lançando-a como um projétil para o alto.
Dante piscou, surpreso, observando a própria mão. Não havia usado muito da Energia Cósmica… apenas o suficiente para empurrá-la. Ainda assim, o poder fora imenso.
“Energia Cósmica em estado puro corroendo pele, veias e órgãos. Contaminação em escala máxima. Recomendo aprimorar golpes para que a energia seja expelida do interior sem danificar partes vitais.”
A voz de Vick ecoou em sua mente, cortante como sempre.
— Vick? Eu achei que você estivesse…
“Desligada? Não. Minha bateria foi reconfigurada. Estou utilizando uma fonte externa para manter os sistemas ativos sem comprometer a central de dados e reconhecimento.”
A criatura pousou do outro lado, lentamente. Nada em seu corpo indicava que havia sido atingida. Sem ferimentos. Sem dor. Sem rachaduras.
Como se nada tivesse acontecido.
— O que ela é, afinal?
“O comentário dela foi relevante. É possível que represente uma manifestação consciente do próprio Rastro — uma centelha que tomou forma, utilizando figuras vivas para moldar uma identidade. Akishat, que você enfrentou, apresentava um padrão semelhante: acesso a memórias e pensamentos por simbiose mental.”
Dante cerrou os punhos. Não gostou do que ouviu. Não mesmo.
— Então… vamos ter que bater nela igual fizemos com a Akishat.
“Análise em andamento. Necessito de mais amostras da Energia Cósmica liberada para uma leitura completa.”
— Quanto já temos?
“Análise parcial: 12%.”
Dante soltou um suspiro, baixando os ombros por um instante. O suficiente para parecer cansado. Mas não o bastante para desistir.
— Eu demorei mais de cem anos para conseguir chegar até esse momento, Dante. — A mulher esticou o braço e os fragmentos de espelho no ar se envolveram ao redor, formando uma arma fina e afiada. — E por tanto tempo, eu esperava encontrar alguém que pudesse entender meus conceitos. A vida inteira, sem nada além de sonhos que podemos concluir. O objetivo que temos com a gente, você não acha que isso é importante? Não acha que se todos tivermos uma vida tranquila, sem dor, seríamos melhores.
— Por que acha que as pessoas não querem sentir dor? Por que acha que queremos viver uma vida sem nada a enfrentar? Qual a graça teria?
— Isso… eu não… entendo. — Sua face mudava para confusão e depois raiva, as sobrancelhas se elevando e abaixando. — Por que você… não aceita a paz?
— Porque nunca tive isso pra começo de conversa. — Dante ergueu os dois braços devagar, os punhos perto do rosto. — E sendo bem sincero, nunca imaginei tendo nada parecido mesmo voltando pra casa. Não fui feito pra isso.
— Sim… — ela sussurrou. — Você não foi feito pra paz. Você foi feito… pra morrer.
Dante soltou uma risada.
— Começou as ideias malucas. Por que todo mundo que pensa diferente de mim parece que quer me matar, Vick?
“Analisando sequência de informações. Resultado: todos eles enxergam você como um desafio acima do que eles poderiam imaginar. Por isso, a linha de raciocínio remete que ‘ao tirar um inimigo formidável de seu caminho’, eles terão mais chance de concretizar seu plano. Parabéns, eles te veem como um inimigo bem formidável, Dante”.
— Acho que vou ficar emocionado por isso. — Mesmo rindo, a expressão da criatura a sua frente não era de brincadeira. — E ai, vai querer mesmo vir pra cima ou vai ficar só me encarando? Eu sou feito de carne e osso, mas posso te dar a absoluta certeza de que sei bater tão forte quanto qualquer monstro desse ai fora.
— O fundo do oceano é todo meu. — A espada brilhante se ergueu. — Foram os primeiros a se curvar para mim.
— Nem sabia que peixes tinham joelho. — Dante escondeu uma parte do rosto atrás dos dois punhos. — Pode vir, coisa feia.
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