Índice de Capítulo

    A criatura desceu do céu como um cometa feito de pura luz. Seus cabelos ondulavam sem vento, os olhos brilhavam com a intensidade de um campo solar e seu corpo parecia se desfazer e se reconstruir a cada instante, como se recusasse qualquer forma fixa. Quando tocou o chão, o impacto gerou uma onda que quebrou os espelhos flutuantes ao redor, rachando o chão sob os pés de Dante.

    Sem aviso, ela avançou.

    Dante tentou se preparar, mas ela desapareceu. O primeiro golpe veio como um raio cruzando o horizonte — um soco direto no queixo que o fez cambalear. O segundo veio pelo abdômen, um gancho curvo, preciso, que tirou o ar de seus pulmões. Antes que pudesse reagir, foi lançado para o alto com um chute que o fez girar no ar.

    Caiu no chão de costas, derrapando entre fragmentos de espelhos que cortaram suas roupas e pele. Tossiu sangue, sentindo os pulmões protestarem.

    A criatura flutuava acima, impassível.

    — Você resiste bem — disse ela, seus pés sequer tocando o solo. — Mas está preso às leis do seu corpo. À dor. Ao limite.

    Ela desceu de novo. Em menos de um segundo, estava à sua frente. Dante tentou bloquear o soco, mas o braço dela atravessou sua defesa, como se fosse feita de energia líquida. O impacto veio direto no ombro, deslocando-o.

    Ele rolou para o lado, rangendo os dentes, tentando forçar o braço de volta no lugar. O som seco da articulação voltando fez sua vista escurecer por um momento. Mas ele não parou.

    Ela veio outra vez.

    Dessa vez, ele não tentou interceptar. Em vez disso, deu um passo sutil para o lado — um desvio mínimo, apenas o suficiente. O punho da criatura passou rente à sua bochecha. Ele sentiu o calor do impacto cruzando o ar. Sua respiração afundou no ritmo que conhecia bem, o mesmo que treinava nos dias mais difíceis com Vick narrando dados em seu ouvido.

    Ela atacou de novo. Rápida, fluida, impossível.

    Mas Dante não olhava para os punhos. Não olhava para o brilho, nem para o rosto angelical que escondia a violência. Ele olhava para os ombros. Para a base dos pés. Para o quadril antes do giro. Cada ataque vinha de uma intenção. E agora, ele via isso.

    Desviou do terceiro soco com um passo curto para trás, o pé deslizando sobre o solo espelhado. No momento seguinte, avançou.

    Seu punho esquerdo subiu em um uppercut rápido, curto, direto no esterno da criatura.

    Ela recuou.

    Surpresa.

    — Isso foi… inesperado — murmurou.

    Dante girou os ombros, sentindo a energia correr pelos músculos. A dor não havia sumido, mas agora ela era secundária.

    — Você falou de leis, né? — disse ele. — Pois eu conheço bem algumas das leis mais estranhas que possa conhecer.

    Ela sorriu. E desapareceu.

    Dante girou sobre o calcanhar. O movimento de passo e giro o fez escapar de um chute lateral. Quando ela voltou à frente, ele abaixou o tronco, desviando de um gancho, e respondeu com um cruzado de direita que pegou na lateral da cintura da criatura. Um som grave ecoou, como se um sino tivesse sido golpeado com fúria.

    Ela cambaleou para trás.

    — Técnica rudimentar — rosnou. — Mas eficaz.

    — Obrigado. Chama boxe. — Dante deu um passo à frente, adotando a guarda. — Não sei se você aprendeu a lutar sem virar néon, mas essa aqui eu tive um professor bem rigido.

    — Eu sei. Seu pai, não foi?

    Ela veio de novo, mais rápida, tentando compensar.

    Mas agora, Dante fluía.

    A sequência veio em blocos. Um direto — esquiva de ombro. Um gancho — passo lateral e contragolpe na costela. Outro chute — desvio com o quadril e avanço com dois jabs certeiros. O som dos punhos encontrando seu destino preenchia o espaço, abafado pela tensão no ar.

    Ela recuou alguns passos, agora visivelmente abalada.

    A criatura não sangrava. Mas onde os golpes de Dante a atingiam, sua forma tremeluzia, como uma falha num holograma. Estava se desestabilizando. E ele percebia isso.

    — Eu esperava um pouco mais de facilidade — disse ele, ofegante. — Mas você não sabe lutar. Só sabe golpear. Só sabe destruir.

    Ela rugiu. Literalmente. Uma onda sonora se espalhou, rachando mais espelhos ao redor. Veio como uma flecha, braços repletos de luz tentando agarrá-lo. Dante girou o corpo, esquivando, se abaixando e contra-atacando com uma sequência de três jabs no rosto, seguidos de um direto que a lançou contra uma pilastra feita de cristal.

    O impacto estourou a estrutura como vidro sendo esmagado sob um martelo.

    Ela tentou se erguer. Dante já estava em cima. Dois passos largos. Cotovelo girando com o corpo — um golpe brutal no queixo. Ela voou alguns metros, batendo no chão e escorregando até parar.

    — Essa raiva, esse ódio de ter seus planos destruídos. Toda vez que pensar em mim, vai se lembrar da sensação — disse ele, aproximando-se. — Ei, coisa feia, acabou?

    Ela se levantou com lentidão, a forma tremendo, instável. Ainda bela, ainda ameaçadora — mas agora, os olhos oscilavam. A luz dentro dela parecia titubear.

    — Eu… ainda posso… — sussurrou.

    — Não pode. — Dante avançou, girando os punhos, a guarda bem posicionada. — Porque você não é real. Você não sente como nós. Não vive como nós. Você copia. Simula. Mas não é.

    Ela tentou mais um ataque. Um soco de luz descendo em arco.

    Dante desviou com o mínimo de movimento. Um passo lateral. O tronco abaixando. E então, um gancho de esquerda — o golpe mais limpo que já deu.

    A criatura voou. Bateu em espelhos, atravessou sombras, caiu sem graça no chão. Pela primeira vez, ela parecia humana. Frágil.

    — Acabou — disse Dante.

    Silêncio.

    Vick falou baixinho em seu ouvido:

    “Análise atualizada: 47%. A estrutura dela está colapsando. Sugiro encerrar antes que ela se reestruture em outra forma.”

    Dante olhou para as próprias mãos. Sangue escorria dos nós dos dedos. Os músculos ardiam. Mas por dentro, algo acalmava. Não era só a vitória. Era o reconhecimento de que, mesmo diante de uma entidade feita de pura energia, ele ainda era homem. E isso bastava.

    E então, a pressão voltou.

    Dante mal teve tempo de reagir antes que um impacto esmagador o atingisse no abdômen. Seu corpo curvou-se para frente involuntariamente, o ar lhe escapando dos pulmões num suspiro rouco. Um dos fios — agora descolado do solo — se enrolou ao redor de sua cintura como uma serpente viva, e num movimento abrupto, o lançou para trás com violência.

    Ele atravessou o espaço como uma flecha errante até colidir contra uma parede de vidro. O som da quebra foi ensurdecedor. Fragmentos se espalharam como chuva, estilhaçando-se no ar em padrões caóticos de luz. Seu corpo afundou numa superfície fria, cortante — e o silêncio, por um instante, pareceu pesar mais que a dor.

    Dante gemeu ao erguer a cabeça. Estava deitado sobre algo gelado, liso… e familiar.

    Respirou fundo.

    — O que é isso…? — murmurou, a voz embargada, os olhos se arregalando.

    Ao redor dele, a paisagem tinha mudado. Os espelhos e corredores distorcidos haviam dado lugar a algo real — ou quase real. Era a cidade de Kappz. Ele a reconheceria em qualquer lugar. Os prédios altos se erguiam sob a sombra colossal da Cuba, que pairava sobre a cidade como um céu artificial. A arquitetura única de pontes, torres e corredores conectando estruturas formava, diante de seus olhos, o lar que ele havia sonhado construir com Clara e Marcus.

    A neve caía aos poucos, como se respeitasse aquele momento. E mesmo com o frio cortante, Dante sentia o calor de casa. O calor de pertencimento.

    Era como estar… de volta.

    — Acredita que me acertar em seu lugar especial faz de você um vencedor? Ou um merecedor? — A voz ecoou com suavidade, reverberando nas estruturas de vidro e aço. Vinha de cima.

    Uma luz tênue começou a escorrer pela lateral de um dos prédios. Como tinta viva, ela subia as paredes, serpenteando até o topo, onde os fios começaram a se unir novamente, como costurando carne a partir de energia.

    E então ela surgiu.

    A criatura.

    Agora com uma nova forma — mais firme, mais humana. Ombreiras simples e uma armadura leve protegiam seu tronco. A aura de entidade abstrata havia cedido lugar a uma guerreira tangível. Na mão, carregava uma espada. A lâmina era negra como obsidiana, absorvendo a luz ao redor, e apenas o cabo brilhava, pulsando com uma luz suave como um coração batendo.

    — Viajar pelas suas memórias me ensinou mais do que imaginei — disse ela, andando lentamente pela estrutura elevada. — Batalhar… viver… perder. Nunca pensei que seria algo tão drástico.

    Ela parou na beirada de uma sacada quebrada, observando a própria arma. Arrastou o dedo pela lâmina com curiosidade, quase carinho, como se tocasse uma relíquia.

    — Para vencer, você precisou abrir mão de muita coisa, não foi? — continuou, a voz baixa, penetrante. — E mesmo assim, aqui está você, tentando me derrotar. Mas seja sincero, Dante… o que realmente espera ganhar com isso? O que existe nesse mundo branco e frio… que valha o seu retorno?

    Ele se ergueu devagar, os músculos protestando com cada movimento, mas seus olhos permaneciam fixos nela.

    — Mesmo que eu explicasse… você não entenderia, não é? — disse, ofegante.

    Ela inclinou a cabeça levemente. Os fios de cabelo ondulavam, mas não havia vento.

    — Não — respondeu. — Acredito que não. Meus sentidos não foram feitos para entender o valor do que se perde. Apenas o eco do que resta.

    Ela sorriu. Um gesto sereno, quase gentil.

    — E é por isso que, enquanto estiver comigo, você vai reviver. Vai reviver tudo. Vai ver seus momentos mais importantes. Suas conquistas… suas perdas. — A luz em seus olhos oscilou. — E, o melhor de tudo… verá que nada do que fizer vai surtir efeito.

    Dante apertou os punhos. Por um instante, pensou em negar. Em dizer que ela estava errada. Mas, no fundo, ele sabia que ela não precisava ouvir aquilo. Porque a verdade… era que ela não buscava uma resposta. Buscava a certeza de que ele hesitaria.

    Mas ele não hesitou.

    — Você pode me mostrar o que quiser — disse, encarando-a com firmeza. — Pode vestir o rosto das pessoas que perdi. Pode me fazer cair em todos os erros outra vez. Mas isso não vai te dar o que você quer.

    Ela desceu lentamente, o corpo se desfazendo em névoa e se refazendo diante dele, de pé no chão nevado da falsa Kappz.

    — E o que você acha que eu quero?

    — O que todo mundo quer — ele respondeu. — Ser lembrado. Ser compreendido. Mas a verdade é que você nasceu do esquecimento. Da distorção. Você é a sombra de algo que nem você entende completamente.

    A criatura piscou devagar. O sorriso se apagou.

    — E você acha que entende?

    — Não preciso entender. Preciso vencer.

    Silêncio. Apenas o som da neve tocando o vidro partido, e do vento assobiando entre os vãos da estrutura fantasma da cidade.

    Ela ergueu a espada devagar. A luz do cabo pulsou uma última vez.

    — Então lute. Mas saiba… esta é sua última lembrança feliz. E quando ela acabar… só restará o vazio.

    Dante se colocou em posição. O frio que antes parecia cortante, agora era apenas parte da cena. Ele sentia o sangue correr, o coração bater firme, a energia cósmica vibrando de forma mais sutil, mais controlada. Sua mente se aquietou.

    — Se o vazio é tudo o que você tem… — ele disse. — …então é ali que eu vou te derrotar.

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