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    Foi uma decisão curiosa — talvez até imprudente — por parte da criatura escolher lutar dentro de uma memória.

    Dante deu dois passos para trás, os pés se enterrando levemente na neve artificial do cenário. Ao ver a estocada vindo, girou o braço para o lado com precisão, desviando do golpe como se tivesse dançado com o fio da lâmina. Os olhos dela encontraram os dele por um breve instante. Não havia raiva ali — apenas uma frieza calculada, algo que queria estudar antes de destruir.

    Mas ela tentou de novo.

    As estocadas eram rápidas, diretas, impiedosas. E ainda assim… algo estava errado. Os ataques não tinham fluidez. Havia velocidade nas pontas dos membros, nas mãos, nos pés — mas o centro do corpo não acompanhava. Era como se a criatura estivesse forçando uma forma que não dominava por completo.

    Mais do que isso: seu controle da Energia Cósmica parecia limitado. Ela não disparava golpes à distância, não invocava explosões nem distorções como antes. Era uma guerreira corpo a corpo, limitada ao espaço ao redor de Dante. E mesmo ao se afastar para recuperar posição, havia um cansaço evidente. Pequenos desequilíbrios, respirações mais longas… vacilos de quem não está habituado a um corpo.

    O próximo ataque veio pela direita.

    Dante viu. Sentiu antes mesmo do aço cortar o ar. Ele saltou, passando por cima da lâmina como um raio, e ainda no ar esticou o braço para trás. Com um movimento seco e técnico, disparou um jab direto no rosto dela — uma explosão de ar comprimido acompanhou o golpe, como se o próprio espaço tivesse sido furado.

    O impacto a lançou de volta. O corpo dela voou em linha reta, como um boneco despido de equilíbrio. A criatura quase atingiu um dos prédios da memória de Kappz, mas parou antes de colidir, suspensa por fios invisíveis ou pela própria força de vontade.

    A voz familiar de Vick soou imediatamente em sua cabeça:

    “Análise atualizada: 51%. A estrutura dela está colapsando. Sugiro encerrar a batalha antes que ela tenha outra ideia mirabolante de levá-lo para um novo passeio, Dante.”

    Ele manteve os olhos fixos na figura flutuante e sorriu de lado.

    — Percebeu o mesmo que eu, Vick?

    “Sim. Movimentos corporais abaixo do esperado, considerando o Mundo Espelho. Tentativas de ataque direto sem sucesso. Baixo uso de Energia Cósmica. Conclusão: corpo inadequado para conter e conduzir a energia que antes possuía.”

    A boca de Dante se entreabriu, e logo se curvou num sorriso leve — quase de pena.

    — Então isso quer dizer que…

    “Sim. Ela recriou um corpo com base nas suas memórias. Um corpo que pudesse existir aqui, nesse cenário mental. Um corpo… presente.”

    Dante balançou a cabeça lentamente, decepcionado. Parte dele esperava algo mais.

    — Ei, Rastro — ele chamou, a voz ecoando pelas paredes altas e imaginárias da falsa Kappz. — Foi por isso que me trouxe até aqui? Para tentar me derrotar… dentro da minha própria cabeça?

    Abriu os braços, como quem apresenta um palco.

    — Esta é Kappz, sabia? A cidade onde fui parar depois de ser arrancado do mundo que conhecia. Foi aqui que comecei de novo… e sabe qual a melhor parte?

    A criatura, ainda pairando à distância, inclinou levemente a cabeça. Seus olhos continuavam frios, mas havia uma fagulha de dúvida neles.

    — E qual seria?

    Dante sorriu com mais firmeza agora.

    — Eu conheço cada centímetro deste lugar.

    Inspirou fundo, puxando o ar gélido daquela memória com uma expressão que mesclava nostalgia e convicção.

    — Sei onde o solo cede, onde o vento sopra mais forte, onde a neve se acumula nas janelas. Sei onde Clara ria quando fingia que sabia cozinhar. Sei onde Marcus ficava espreitando a cidade. Sei até onde eu escondia os mantimentos com medo de sermos roubados. Esse lugar… sou eu.

    A criatura pousou suavemente no chão. Havia algo diferente em sua postura. Menos confiante. Quase… humana.

    — Você fala como se isso importasse. — A espada foi abaixada levemente, o brilho no cabo oscilando. — Como se lembranças pudessem vencer uma batalha. Elas nunca…

    — E podem — disse Dante, sério. — Porque você não sabe o que é isso. Você imita. Você toma formas. Mas não vive. Você vê as memórias como armas. Eu… as uso como força. Consegue sentir?

    Houve silêncio entre eles. A neve continuava caindo. O vento soprava com mais intensidade agora, como se o próprio cenário estivesse respondendo às palavras de Dante.

    Ele deu um passo à frente.

    — Me trouxe até aqui pensando que me enfraqueceria. Que reviver o passado me quebraria. Mas o que fez foi o contrário. Me lembrou por que estou lutando. E por quem — completou, baixando os punhos. — Agora eu sei.

    A criatura respirou fundo. Pela primeira vez, hesitou. A mão segurando a espada vacilou.

    A criatura avançou, veloz, a espada reluzente cortando o ar com precisão. Ela queria terminar rápido. Mas Dante já tinha entendido tudo.

    Ele não fugiu.

    Ao invés disso, deu um passo para dentro do golpe.

    A lâmina desceu — e ele desviou apenas o suficiente. Um giro curto de ombro, a perna à frente. Usando o braço como alavanca, prendeu o punho da criatura e empurrou com brutalidade o cotovelo contra o dela. Um estalo seco soou. Energia Cósmica envolveu o movimento, ampliando o impacto em ondas invisíveis.

    Ela recuou, mas ele a seguiu.

    Krav Maga não era bonito. Era funcional.

    Dante golpeava com intenção, cada movimento uma resposta direta, cada reação calculada em milésimos. Um chute lateral se ergueu e foi absorvido pelo antebraço da criatura — mas a força do golpe, amplificada pela Energia, rachou o chão onde ela escorou o pé.

    — Você se move melhor agora — ela comentou, recuando com um giro leve, readaptando a guarda. A espada tremia, desequilibrada. — Está deixando de lutar com o coração?

    — Estou lutando com tudo. — Dante cuspiu no chão, o vapor do frio subindo de sua boca. — Inclusive com o que aprendi pra sobreviver.

    Ela atacou de novo. Um corte transversal, depois outro, em sequência.

    Dante se abaixou, desviando por baixo do fio da espada. No movimento seguinte, avançou de joelhos, girando o corpo numa rasteira. A criatura caiu, e no mesmo instante, ele cravou o joelho no peito dela.

    Antes que ela reagisse, ele segurou a cabeça dela com uma das mãos — e com a outra, desferiu um cotovelo descendente carregado com Energia Cósmica. O ar explodiu em volta como se algo tivesse quebrado o som.

    Ela rodopiou no chão, o rosto sangrando pela primeira vez.

    Mas se levantou, os fios se retorcendo ao redor de seu corpo como músculos tensos. Os olhos dela se fixaram em Dante, agora com mais… raiva?

    — Você não é o único que aprendeu a usar o corpo como arma — rosnou ela.

    A resposta veio na forma de um chute circular. Ela era rápida — ele, mais.

    Dante se abaixou de novo, se aproximando como uma sombra, e agarrou o tornozelo dela. Puxou com força e torceu. Com a outra mão, desferiu um soco aberto no plexo solar. A Energia Cósmica saiu como uma explosão de som abafado, e ela voou para trás, colidindo contra um muro de concreto da cidade falsa de Kappz.

    As fissuras se abriram como uma teia. Ela escorregou para o chão, arfando.

    “Análise: impacto direto nas costelas inferiores. Fraturas prováveis. Continuação recomendada.”

    A voz de Vick ecoou em sua mente.

    Dante avançou, determinado.

    Ela tentou levantar — ele chutou o braço que usava de apoio, deslocando-o com um estalo. Aproveitou o desequilíbrio e enfiou o ombro contra o abdômen dela, levantando o corpo inteiro da criatura e a jogando com brutalidade no chão, como em um takedown seco.

    A criatura tentou reagir. Gritou. Os fios se ergueram do chão tentando envolvê-lo.

    Ele saltou para o lado, rolando. No meio da movimentação, impulsionou-se com os braços e girou no ar, finalizando com um chute em rotação no pescoço dela.

    A cabeça bateu no chão.
    Ela estremeceu.

    Análise: 82%. Ela está desmoronando, Dante. O corpo não vai aguentar mais muito tempo.”

    — Você copiou as minhas memórias — ele disse, ofegante. — Mas nunca lutou contra mim, nunca lutou contra ninguém. Nunca sacrificou nada. As memórias que você tem, elas não são nada se não forem vividas pelas pessoas.

    A espada veio novamente. Dessa vez, dessa vez, Dante tinha apenas que continuar. Sua mão segurou no pulso dela, ele girou no próprio calcanhar e acertou uma cotovelada no seu rosto, usou a outra mão para acertar a base do cotovelo, a fazendo gritar.

    O pulso se abriu junto, libertando a arma. Dante abaixou puxando a arma para si, e girou novamente para cima.

    A cara da mulher foi choque, descrença. Seu corpo havia sido cortado ao meio. A lâmina havia cortado, passado facilmente, e saiu do outro lado. Seus olhos piscavam, tentando encontrar uma razão.

    Análise: 97%. Apenas mais um golpe, e posso fazer a análise completa”.

    Ei, Rastro. — Dante abaixou a espada, parado bem diante dela. — Ainda não acabou. Me leve de volta.

    — De volta?

    A mão da mulher se ergueu, agarrando seu pescoço. Dante foi forçado a ajoelhar, sem ar, tentando se libertar do aperto. A cada segundo, sua Energia Cósmica era sugada, a cada segundo, o mundo ao seu redor era reduzido as cinzas.

    — O Reino das Cinzas, o Mundo Espelhado, o Lagmorato, tudo isso será meu, Dante. — Os olhos dela brilhavam com o amarelo. Tudo ao redor brilhava, pulsando em batidas ritimadas. — Eu não morri e nem posso morrer. Sou a própria Energia Cósmica encarnada nesse corpo, seu mortal imundo.

    Dante começou a perder a força nas mãos, seus dedos não conseguiam perfurar a carne. O corte que fez no corpo dela estava se recuperando velozmente. Se continuasse daquele jeito, então… tudo seria jogado no lixo.

    “Análise: 100%. Conhecimento da Energia Cósmica adquirido. Falha em sistematizar aberturas. Falha em sistematizar fuga. Falha em…”

    A voz de Vick começou a falhar em sua mente. E enquanto piscava, Dante se lembrava de casa. De Render, que viu fazia pouco tempo. E sua mãe, que tanto cuidou dele.

    — Suas últimas palavras antes de desaparecer pra sempre? — o Rastro perguntou.

    Dante abriu a boca, mas o som saiu de outro lugar, vindo de dentro de seu casaco.

    — Nick! Nick!

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