Índice de Capítulo

    O som do vento voltou primeiro.

    Um assobio suave cortando o silêncio absoluto, como o sussurro de um mundo acordando. Depois, o cheiro da maresia invadiu o ar. Salgado. Frio. Real. Lentamente, as luzes do interior do Nokia acenderam uma a uma, em sequência, como estrelas brotando em pleno casco de ferro.

    A enorme embarcação, que antes repousava presa entre camadas de realidade e memória, emergia agora do Mundo Espelhado, atravessando a superfície do mar com um brilho azulado que evaporava ao seu redor. As placas do casco tremiam levemente, como se o próprio navio estivesse respirando de novo.

    Dentro dele, os corpos começaram a se mover.

    Primeiro um dos soldados da Capital, recostado contra uma parede, abriu os olhos de repente, arfando. Depois, Humber, o velho guerreiro de rosto marcado, despertou com um puxar brusco de ar, levando a mão ao peito como quem volta de um sonho profundo.

    — O que foi isso…? — murmurou, olhando em volta.

    Do outro lado da embarcação, Kefiane piscou devagar, ainda confusa, ao sentir o calor voltar à pele. Sua armadura de Yieno rangia suavemente enquanto ela se levantava, sentindo uma lágrima escorrer involuntariamente pelo rosto.

    — O que aconteceu do outro lado?

    Os guerreiros de Yieno despertavam um a um, mãos se apertando, olhos se encontrando em silêncio. Não era preciso dizer. O coração de cada um deles sabia. Aquele que caminhou sozinho dentro das camadas da dor… havia triunfado.

    A sala de máquinas voltou a funcionar. O núcleo energético do Nokia pulsava com um novo ritmo. Não de agonia, mas de vida. Até mesmo os sensores, antes caóticos, agora transmitiam dados normais. O barco estava de volta. Eles estavam de volta.

    E, acima de todos eles, no convexo principal, uma figura surgiu entre as brumas que ainda se dissipavam da travessia dimensional.

    Dante.

    Os pés firmes, o casaco rasgado em pontos, os olhos queimando com uma luz intensa que não vinha de fora, mas de dentro. Havia marcas em seus braços, vestígios do combate, do esforço, da escolha. Mas ele estava lá. Vivo. De pé.

    Nekop também havia despertado de um sono profundo, coçando os olhos. Mas, sua mente estalou. Algo rapidamente percorreu seus sentidos, o alertando em segundos de algo que ocorreu dentro do Mundo Espelhado.

    Aos poucos, cada membro presente no Nokia pôde observar algo tão rápido diante de seus olhos, que ficaram angustiados. Uma luta que nunca foi daquele homem, vencida sem recuar até o final.

    E seu inimigo… quem imaginaria que um velho Capitão estaria pronto para lutar até a morte contra um fragmento, uma centelha de poder do que era considerado o mais puro no mundo?

    O Anão rapidamente se ajoelhou. A vanguarda inteira fez o mesmo. Os Técnicos e Curandeiros que subiram fizeram o mesmo. Não havia ninguém de pé, a não ser Dante.

    — Eu gostaria de dizer… — Dante virou-se para todos eles, ainda com um lapso de sorriso no rosto. — Que estou morrendo de fome. Mas, temos outros assuntos a tratar, não temos?

    A Vanguarda ergueu a cabeça no momento que uma explosão se libertou de dentro da água. Dois navios foram cuspidos do fundo do oceano, fazendo seu casco vibrar e lançar água para o alto naquela noite estrelada.

    Os dois navios, enormes, um pouco menores do que o Nokia, se alinharam lado a lado. O que aparecia diante dos olhos deles, a Vanguarda inteira se levantou, incrédula.

    — São os Capitães de Frota?! — a garganta de Nekop secou na hora. — Merda. São os Capitães.

    As pessoas começaram a aparecer na borda dos dois navios, acenando arduamente enquanto chamavam pelos seus colegas. Nekop foi o primeiro a correr, e outros vieram atrás de si, mas seus passos pararam quando chegaram próximos a Dante.

    Eles não poderiam ir contra.

    — Senhor, permissão para…

    — Vão logo — gargalhou o Capitão. — Eles precisam ver as caras dos amigos.

    Soltaram um urro. Miatamo, Guaca, Egiss. Tantos que se lançaram nas pranchas, saltando para os outros navios, gargalhando e rindo. Aos poucos, se misturando no que era uma multidão de todos os lados.

    Dante não foi junto. Permaneceu olhando para Humber e os demais Capitães que estavam presos por tanto tempo no Mundo Espelhado. Mesmo que eles comemorassem a vitória entre eles, ainda não podiam esconder suas caras de tristezas.

    — Eu posso conversar com vocês, Capitães? — a voz de Dante interrompeu os seis.

    Eles se aproximaram. Seus rostos, melancólicos, ouviam as gargalhadas dos tripulantes que voltaram a encontrar seus colegas e irmãos. Alguns, até mesmo, seus amores. E eles, parados ali, sem ter pra onde ir.

    — Você venceu algo que ninguém conseguiria — disse Humber. — Não tenho como agradecer por tanto, Dante. Nem mesmo nos conhece direito, mas fez isso de maneira honesta. Estamos em divida com você.

    — Não quero que paguem ela agora. Na verdade, algum dia, quando estiverem precisando de ajuda, quero que saibam que estarei disponível. — Dante esticou a mão fechada e abriu para eles. Em sua palma, seis filamentos amarelados, cada um deles se distanciando em uma direção. — Quarenta anos vivendo afastado de seus colegas e amigos deve ter sido um pouco triste. Acredito que nem mesmo eu saberia o que dizer quando encontrasse alguém depois de tanto tempo, mas acredito que vocês vão saber.

    Ninguém se mexeu, ainda chocados.

    — Isso é o que estou pensando que é, velhote? — perguntou Kefiane engolindo em seco. — É… de verdade?

    — Claro que é. Essas são pigmentações do Mundo Espelhado. Eu não posso usar porque estou no meu lugar correto, mas vocês vão usar para voltar exatamente do lugar que partiram. — Dante abriu um sorriso de orelha a orelha. — Esse é o meu presente para voltarem para casa. Quando quiserem, podem pegar e partir.

    Humber levantou a cabeça, seu único olho o fitando.

    — Dante, da Capital. — As palavras soaram como um mantra. Ele pegou o pequeno fragmento. A luz se infiltrou em seu braço, sumindo em seguida. — Nunca vou me esquecer do que por nós. Nunca nessa vida e em nenhuma outra.

    Kefane imitou Humber ao pegar o fragmento. Depois os demais. Até mesmo Akishat tomou uma parte para si quando Dante esticou para ela

    — Nunca — a Capitã Peixe repetiu. — Esquecer.

    — Não precisam ser tão dramáticos. Tenho certeza que fariam o mesmo que eu se tivessem a oportunidade. — Dante começou a dar alguns passos para trás. — E não vão sem comermos um bom banquete. Por favor, fiquem só mais alguns dias.

    — Claro que irei ficar — respondeu Humber levantando as mãos.

    E sem perceber, havia lágrimas em seus olhos.

    — Claro que… vou, idiota.

    Aquele fragmento deu aos Capitães um vislumbre maior do que houve no mundo das memórias de Dante. A disputa, as sensações, a conversa e também como ele continuou indo em frente. Humber queria tanto voltar para encontrar alguém que conhecia aquele velho homem na Capital. Contaria sobre a história do Capitão do Nokia que brandia sua espada até mesmo contra a própria natureza para tirar seus homens de um mundo de mentiras.

    Faria de tudo para honrar aquele que tinha o salvado.

    — Capitão Dante — Akishat revelou com respeito. — Nunca irei deixar que seu nome seja esquecido.

    Kefiane concordou.

    — Farei com que todos no continente Yieno saibam que ele é.

    — O Continente Whalien, Thundra e Remet saberão desse velho — os outros Capitães anunciaram.

    Humber respirou fundo.

    — A Capital saberá que está vivo… rapaz.

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