E, diante de mais de cem da própria espécie, seres antigos, ex-guardiões de eras passadas, lendas vivas do além, num tribunal cósmico que ficava literalmente em lugar nenhum, os dois estavam ali.

    Cael, encolhido como um estagiário pego usando a impressora do trabalho para imprimir currículo. E o loiro, em pé, desafiador, com aquele jeitão de quem já tinha aprontado coisa muito pior.

    Ao redor, uma névoa densa cobria seus pés.

    E, no centro de tudo, a entidade mais poderosa daquele plano.

    No trono dourado, envolto num manto branco que parecia tecido de luz, estava ele, Avatar de Elar. Cabelos dourados caindo até os joelhos, olhos como galáxias, o símbolo do infinito cravado na testa. A própria manifestação da neutralidade do Criador. Um ser com mais de cem mil anos de existência. O tipo de figura que faz até o tempo pedir licença.

    Elohim. Um sussurro seu, e a realidade se curvava. Um pensamento, e um mundo nascia.

    — Sério, Eliyah? — A voz era calma, mas carregava o peso de um milhão de julgamentos — De todas as coisas que poderia fazer… você escolhe essa? A pior?

    — Não acha nem plausível minha escolha?

    Riu sem jeito, essa criança atrevida. Não era a primeira vez que aprontava algo do tipo.

    O Avatar respirou fundo — ou fingiu, só pra fazer cena. Se seres deste nível respiram, devem fazer isso só para parecerem mais compreensíveis.

    — Plausível? — A palavra ecoou. — Tu meteu o pé na porta da realidade. Salvou uma anomalia que não devia nem ter alma, e ainda trouxe ele pro Intermédio como se fosse teu estagiário!

    — Olha, ele meio que é meu estagiário agora! — Deu uma piscadela.

    Por outro lado, Cael queria se enfiar num buraco interdimensional.

    Era sem noção, um completo imbecil — disso ele sabia. Mas, na frente de um juiz cósmico, esperava conseguir manter a compostura. Achava que era assim que funcionava. Achava. Porque nada, absolutamente nada, se comparava ao seu salvador. Aquele era o tipo de figura que olhava Deus nos olhos e dizia, com a maior naturalidade do mundo: “Tu é um babaca.”

    — Você tem noção do que causou? — Ergueu-se do trono, e, por um instante, parecia que o próprio espaço se curvava ao redor dele. Não que já não o fizesse, mas ali, diante dos olhos de um simples rapaz que, até ontem, só encarava as estrelas como pontinhos distantes e ouvia lendas do além como papo de maluco, aquilo era grandioso. Espantoso. — O Plano Superior já chiou! Querem saber que tipo de praga você soltou nos corredores da Criação!

    O julgado levantou a mão timidamente.

    — Fale…

    — Eu sou a praga?

    Silêncio. Olhares cortantes. Uma estrela se apagou ao fundo — literalmente.

    — Sim — Seco como o vazio entre as galáxias.

    E o jovem só assentiu, devagar, enquanto abaixava a mão e fingia coçar o cabelo. Tipo: “beleza, suave, só confirmei mesmo”. O constrangimento era tão denso que dava pra cortar com um pensamento afiado.

    Eliyah pigarrou. Tava claro que queria rir. Mas se conteve.

    Afinal, tribunal cósmico.

    — Tecnicamente, você é uma anomalia — completou, tentando aliviar — Uma variável fora do escopo. Um bug… consciente.

    — Piorou, irmão.

    Seu defensor então cruzou os braços, postura irredutível.

    — E se for? Ele tá aqui. Respira. Sente. Pensa. Mesmo que pense besteira. Mesmo que seja um caos ambulante, ele é. E se o universo permitiu que existisse, que escapasse da morte, que bagunçasse as regras… então talvez a bagunça seja parte do plano. E se não for, azar do plano. Que se vire pra acompanhar!

    Ao redor, os antigos começaram a murmurar. Um som grave, dissonante — como um coral de entidades debatendo os contornos da existência.

    O Altíssimo fechou os olhos por um momento e se sentou novamente em seu trono. Quando os abriu, parecia mais velho. Ou talvez apenas cansado.

    — O plano… — murmurou — não é um livro fechado. Nunca foi. A dúvida é o que nos mantém neutros!

    Silêncio.

    Não por temor.

    Foi quase respeitoso.

    Quase.

    — O erro… — disse o todo poderoso, sua voz ressoando como um sopro febril dos céus, um delírio divino em forma de som — é julgar com a certeza de quem jamais ousou duvidar. E você, Eliyah… você trouxe a dúvida encarnada.

    Ele estendeu a mão em direção ao tal “erro”.

    — Uma existência que não deveria ser. Nem espírito. Nem carne. Nem Eco. E, ainda assim… é.

    O jovem olhou para si como quem procura uma etiqueta de preço na alma, depois deu dois tapinhas no peito.

    — Ah, maravilha. Sou oficialmente um “que porra é isso”. Valeu aí, universo.

    — Você é a rachadura… pela qual talvez a luz entre! — retrucou, sem se abalar pelo deboche. — Ou o início da ruína. Ainda não sabemos. E, por isso, não devemos decidir.

    O loiro apenas arqueou uma sobrancelha. Como quem já tinha ouvido coisa pior… e acreditado em menos.

    — Então…?

    — Então ele viverá — sentenciou, por fim. — Não por escolha, mas por nossa incapacidade de fazer melhor!

    Que enrolação…

    Ele revirou os olhos, dramaticamente, como quem já estava de saco cheio do tribunal cósmico e da conversa circular entre os centenários.

    — Mas viver aqui tem um custo. E, já que o trouxe, Eliyah… o educará. E o conterá, se necessário.

    — Não faria diferente… meu senhor…

    O loiro fez uma reverência, pela primeira vez, sem sarcasmo. Enquanto o jovem, aliviado, caiu ajoelhado.

    — Vou viver… Uffa…

    — Certo, agora, vaze! Os dois!

    — Com prazer! — Olhou para o jovem e suspirou. Como se fosse seu advogado e estava exausto de o defender, mas, convenhamos, a verdade é que, estivesse ali ou não, não faria a menor diferença. Era um tribunal onde a argumentação não levava a conclusão alguma, apenas à conclusão final e decisão da entidade.

    E Cael? Ficou ali, parado, ainda tentando decifrar o que porra significava ser uma dúvida viva. Como se fosse um bug no sistema, mas sem manual.

    Mas, no fundo, uma ideia começava a crescer.

    Se ele fosse um bug… talvez tivesse acesso a comandos que nem os desenvolvedores conheciam.

    — Será que eu posso hackear a realidade tipo um Jedi Matrix? — sussurrou para si.

    Seu “mestre” ouviu. Deu um sorriso de canto, daqueles que sabem mais do que dizem.

    — Vamos descobrir! Por ora, mantemos você vivo… e eu também, de preferência! — Virando as costas para o tribunal, tudo ao redor se convergiu para o alto, como se o mundo respirasse fundo e exalasse para os céus. Eles começaram a sobrevoar a cidade novamente — aquela mesma, de proporções colossais.

    — Tá animado?

    — Ehr… “animado” não é bem o meu gênero, mas, ó… tô feliz de ainda não ter virado estatística espiritual! — soltou um suspiro, meio alívio, meio ironia.

    E assim, seu destino, por ora… estava zelado. Suspenso num fio tênue entre o caos e a providência.

    Será que estava preparado?

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