Capítulo 26: O Preço de uma Decisão.
O som das vozes se misturava ao barulho apressado dos passos. A cidade havia se transformado em uma maré de corpos: aventureiros, curiosos, mercadores… todos pareciam ser sugados para um mesmo destino. Tentei não tropeçar enquanto me agarrava ao braço de Selene, que me puxava como se soubesse exatamente para onde ir. Pessoas nos empurravam dos dois lados. O ar estava carregado de suor, poeira e ansiedade.
Em meio ao caos, meus olhos captaram um vulto familiar… cabelos azuis deslizando pela multidão como uma correnteza viva. Era Aqua. Seguia determinada em direção ao palácio real. Estiquei o pescoço, tentei acompanhá-la com o olhar…, mas bastou um piscar para que ela desaparecesse entre os ombros e mochilas dos apressados.
— Ela estava indo pro palácio… — murmurei, quase para mim mesma.
— Sai do meio, Ashley — resmungou Selene ao meu lado. — Antes que esses goblins do tesouro passem por cima de você.
Conseguimos escapar para uma das laterais da rua, encostadas na parede de uma loja fechada. O som abafado da multidão lá fora nos seguiu enquanto caminhávamos até a guilda do Redemoinho Celeste. O movimento lá dentro parecia menos caótico… ao menos à primeira vista.
Selene foi direto até a atendente do balcão.
— Onde está a Aqua? — perguntou, sem muita cerimônia.
— A líder ainda não retornou. — A mulher balançou a cabeça.
— Eu a vi indo para o palácio — comentei, me aproximando.
Selene deixou escapar um som de frustração com a língua, que só ela conseguia tornar tão afiado quanto uma lâmina.
— Parece que as coisas só pioram desde que aquela maldita torre apareceu…
Não tivemos muito tempo para respirar. As portas da guilda se abriram com força, deixando entrar um grupo de membros ofegantes, com poeira nas roupas e olhos arregalados.
— Vocês ouviram?! — um deles gritou. — Dez mil moedas de ouro! Por selar a torre!
A atendente se levantou com urgência.
— Aguardem a líder retornar — disse, erguendo as mãos em tentativa de conter os ânimos. — Ela dirá como agiremos.
— Esperar?! — um dos membros, um homem corpulento com uma machadinha na cintura, protestou. — Se a gente ficar aqui parado, vai perder a chance! Já tem gente entrando naquela maldita torre agora!
Aquilo foi o suficiente para ascender uma chama nos olhares de algumas pessoas ali. Murmúrios começaram a se espalhar. Discordâncias, provocações, acusações. A temperatura do salão da guilda subiu num piscar de olhos. Alguém falou mais alto, outro rebateu. Quando percebi, vozes se sobrepunham em gritos.
Então…
BAM!
Um estrondo fez todos se calarem. As portas da guilda bateram contra a parede com força, ecoando como um trovão por todo o salão. Todos os olhares se voltaram para a entrada.
Aqua entrou com passos pesados, as mãos fechadas em punhos e uma expressão que misturava raiva e exaustão.
— Que dia! — ela exclamou. — Ele precisava fazer uma porcaria dessas, aquele sádico maldito!
Ela parou ao notar o silêncio repentino e as caras culpadas ao redor.
— Que algazarra maldita foi essa? Consegui ouvir vocês brigando do fim da rua. Que droga deu em vocês, hem?
Os membros que lideravam a discussão se encolheram como crianças pegas roubando pão.
Selene, claro, não deixou passar a deixa.
— Como foi o encontro caloroso com seu pai, Aqua? Espero que tenha sido mais ameno do que a discussão aqui…
O rosto da líder da guilda azedou como leite velho. Seu olhar cortante encontrou o dos membros da guilda, mas sua voz veio envolta em um manto de sarcasmo e amargura.
— Exatamente como você imagina. Um festival de hipocrisia temperado com ameaças veladas. — Ela suspirou, os ombros perdendo um pouco da tensão. — Vamos precisar agir rápido. Tem gente demais marchando em direção à própria morte, e a maioria não faz ideia do que os espera lá dentro.
Aqua fez uma pausa. Concentrou sua atenção e olhou fundo nos olhos de Selene.
— Selene, sei que já conversamos sobre isso…, mas nunca fui tão séria quando digo: eu preciso da Princesa da Guerra. Ou o destino de Nautiloria pode não ser tão iluminado quanto queremos acreditar.
Um sorriso brotou nos lábios de Selene, lento e carregado de lembranças perigosas.
— Faz um bom tempo desde a última torre…, mas eu sempre estarei pronta para uma dança no abismo.
Ela se virou para mim, os olhos com aquele brilho carmesim que escondia uma perspicácia divertida.
— Ashley, pode ir buscar minha espada na estalagem? Com toda essa barulheira pela manhã, acabei deixando-a lá.
Assenti, tentando não demonstrar o nervosismo que apertava meu estômago.
Corri pelas ruas como se pudesse fugir da confusão que borbulhava dentro de mim. Desviava das pessoas com os reflexos ágeis, afinal estava um pouco acostumada com multidões. Cada rosto apressado era um lembrete da corrida que todos travávamos contra algo que nem sabíamos explicar. O que havia de tão bom no ouro que fazia até os mais cautelosos perderem o bom senso?
“Por que todos parecem prontos para morrer por algo que nem entendem?”, pensei. “E por que eu sinto esse aperto no peito, como se algo estivesse errado… de novo?”
A estalagem surgiu diante de mim como um porto em meio à tempestade. Subi as escadas sem parar para respirar. O quarto de Selene estava com a porta entreaberta, entrei sem pensar duas vezes em busca de sua espada.
Ela estava ali, repousando sobre a cama como um animal adormecido. A bainha carmesim parecia pulsar à luz suave que entrava pela janela. Me aproximei e a encarei por um instante. Me lembrei da sensação de tê-la empunhado naquela noite: do calor, do medo, mas também da coragem que surgiu quando precisei proteger Selene. Nunca tinha segurado algo tão pesado e tão imponente ao mesmo tempo.
Peguei a espada com ambas as mãos, sentindo o peso real dela mais uma vez, e me virei para sair…, mas algo me puxou de volta.
Rose.
Havia silêncio no corredor quando me aproximei do quarto dela. Bati na porta. Duas vezes. Nada. Esperei um pouco, mordendo o lábio inferior. A inquietação crescia.
Empurrei a porta com cuidado…
O quarto estava vazio. A cama feita às pressas. A janela entreaberta, deixando a cortina dançar com o vento. Mas havia algo sobre a cômoda: uma folha dobrada ao meio, com nossos nomes rabiscados na frente.
Me aproximei, o coração martelando no peito. Abri a carta.
“Para Ashley e Selene,
Parti para a Torre do Abismo. Sei que isso pode parecer insensato, mas preciso encontrar algo lá dentro… um artefato importante para mim.
Não quero que se preocupem. Estou grata por tudo até aqui. Foi bom não estar sozinha por um tempo.
Adeus, Rose.”
Minhas mãos tremiam quando coloquei a carta de volta sobre a cama. “Partiu sozinha… por quê?” Eu sentia uma vontade estranha de gritar, mas engoli o nó na garganta. Só restava uma coisa a fazer.
Fui até meu quarto, peguei minha adaga e prendi na cintura, ao lado da espada de Selene. Chequei o restante do equipamento: nada muito sofisticado, mas o suficiente para quem já tinha enfrentado um demônio de olhos famintos.
Saí da estalagem com passos decididos, mas cada um deles ecoava dúvidas que não cabiam no mundo. Mas dúvidas que não poderiam me parar.
Cheguei novamente na guilda. Para minha surpresa, estava quase vazia. A atendente limpava o balcão com um pano seco, e alguns poucos membros organizavam papéis e suprimentos.
— Onde está todo mundo? — perguntei, tentando disfarçar a tensão na voz.
Ela me olhou, como quem já esperava a pergunta.
— A senhorita Selene deixou isso pra você. — Ela puxou um bilhete de dentro do balcão e me entregou.
Abri o papel. Sua letra era elegante e afiada.
“Ashley,
Me desculpa por te tirar dessa, mas eu sei que você ia querer vir junto. E dessa vez… não é um lugar onde posso ficar de olho em vocês.
Fique com a Rose até eu voltar.
P.S.: Se a torre sussurrar o seu nome… não responda.”
Fechei os olhos por um segundo. Inspirei fundo. A frustração queimava por dentro como uma brasa prestes a se tornar incêndio.
— Parece que hoje ninguém tá sendo completamente honesto comigo, não é mesmo? — murmurei, quase rindo do absurdo disso tudo.
Ajustei a espada na cintura. Toquei o cabo da adaga. Cada centímetro do meu corpo queria correr naquela direção: mesmo que a direção certa fosse a mais perigosa. Lembrei das palavras de Sienna “Ashley, essa não é uma decisão fácil, mas as decisões certas nunca são fáceis”. Acho que isso nunca fez tanto sentido para mim como nesse momento.
Virei para sair, mas a atendente me chamou.
— Pra onde vai, garota? Não me diga que… — ela parou, me olhando de cima a baixo com olhos incrédulos. — Mas você ainda não coresceu… é muito perigoso!
— Ainda não coresci? — retruquei, virando o rosto pra ela com um meio sorriso — E quem liga pra isso? Sou uma desbotada, mas prefiro a morte a ser inútil quando é preciso.
Ela não respondeu. Apenas me olhou como se visse algo novo. Algo que nem eu sabia que estava ali até aquele momento.
Dei mais alguns passos e, antes de cruzar a porta, falei sem olhar pra trás:
— Esse tal abismo? Ele não deve ser nada… comparado ao que enfrentei dentro da minha própria incerteza.
Ajustei a espada na cintura. A adaga descansava contra o lado do meu corpo, fria como o silêncio que me rodeava.
Eu me movi em silêncio, como quem finalmente entendeu que certas decisões não gritam… apenas acontecem.
O mundo tem me oferecido ilusões desde o começo.
Promessas pintadas com cores que não me pertencem. Meias verdades e esperanças que escorrem como areia entre os dedos.
Mas talvez através dessas ilusões exista um caminho… já que o mundo banha em ilusões buscarei a verdade me meio ao abismo.
Porque às vezes… é preciso atravessar os espelhos partidos para descobrir o que realmente refletem…
Fim do capítulo 26: O Preço de uma Decisão.
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