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    O teto, negro e liso, exibia marcas quietas do tempo ou de algum evento esquecido. Com os olhos entreabertos, percebeu a luz tênue das chamas refletida acima. Tremeluzia, sustentada por um fio que se consumia devagar, como a cera de uma vela.

    — Onde estou? — murmurou, os olhos ainda pesados, enquanto virava a cabeça lentamente para o lado.

    Algo naquele lugar lhe despertava uma estranha nostalgia. O quarto, pequeno e simples, continha apenas uma cama de solteiro e uma gaveta ao lado. No canto, um baú grande, possivelmente onde guardava as roupas.

    Ao virar o rosto, deparou-se com uma jovem muito bela. Lágrimas escorreram de seus olhos no instante em que ela, deitada à beira da cama, despertava lentamente. Com os lábios entreabertos, murmurou:

    — Germa…

    — Hum? Acordou, Ham? — perguntou a moça.

    — Ham? Eu sou Dam…

    — Ham? Foi o que eu disse, Dam.

    Ele sentiu-se confuso. Tinha quase certeza de que ouviu sua companheira chamá-lo de Ham, mas afastou a ideia.

    — Onde estou? E os outros, Germa?

    — Germa… Quem é Germa…? Eu sou… Germa? — ela hesitou, tentando resgatar o próprio nome, como se estivesse em um sonho.

    — Germa?

    — Sim, sim… Esqueci. A anciã pediu para te levar assim que acordasse — avisou, levantando-se com um movimento hesitante.

    Naquele instante, ainda deitado, se perguntava por que estava naquela situação e como a mulher ao seu lado — aquela que diziam jamais ter existido — podia estar ali. Voltou o olhar para Germa, e, aos poucos, a memória começou a se dissolver… até que…

    — O que eu estava pensando? — se questionou.

    Germa, sem hesitar, tomou-lhe a mão e o conduziu para fora do quarto. Dam, incapaz de resistir, sentiu o coração acelerar além do habitual. No instante em que lançou os olhos sobre a própria mão, deteve-se de súbito.

    — Dam?

    — O que é isso…? Meu corpo… está pequeno — questionou, olhando para si mesmo com uma expressão de surpresa e desconforto.

    — Hum? Dam? O que houve? Vamos logo! — ela falou, um pouco surpresa com a demora.

    Ele buscava em vão nas próprias lembranças uma razão para estar preso àquele corpo infantil, que mal aparentava sete anos de idade. Mas, quanto mais tentava alcançar vestígios de sua vida anterior, mais denso se tornava o nevoeiro em sua mente.

    — Me desculpe, irmãzona, vamos — falou sorrindo.

    De mãos dadas, seguiram pelos corredores até alcançarem outro quarto. Loi bateu à porta, mas não houve resposta. Sem hesitar, abriu-a e deparou-se com uma velha absorta, os olhos fixos em uma esfera vermelha que cintilava como uma pedra viva.

    Os dois permaneceram em silêncio. A anciã, vestida com trajes escarlates, começou a se mover levemente, enquanto o calor no ambiente aumentava de forma quase sufocante. O ar se tornava denso, difícil de inspirar. Aquele cômodo, mais amplo que o quarto de Ham, parecia arder por dentro.

    Loi correu até as janelas e as escancarou, permitindo que o ar fresco invadisse o ambiente. Respirou aliviada. Ele a acompanhou e aproximou-se para também sentir o alívio da brisa, mas manteve os olhos na velha, ainda imersa na contemplação da pedra. 

    Em questão de segundos, a esfera desapareceu — não queimou, nem se quebrou. Simplesmente deixou de existir.

    Ambos permaneceram em silêncio, admirados com o que haviam testemunhado. A anciã, enfim concluiu o que quer que estivesse fazendo, abaixou a mão e suspirou profundamente. Voltou o olhar para o lado e perguntou:

    — O que querem?

    — Avozinha, o que foi isso? — ela perguntou, incrédula.

    — Não me chame de “avozinha” — alertou, com um tom firme.

    A idosa, sentada em posição meditativa sobre a cama, desapareceu tão repentinamente quanto a pedra. Num piscar de olhos, surgiu diante de Loi e, sem dizer palavra, beliscou-lhe a testa. Com um olhar enigmático, murmurou:

    — Me chame de “vovozinha”.

    — Mas… é o mesmo — respondeu Loi, confusa.

    Ao virar-se de costas, com as mãos para trás, explicou, sorrindo:

    — Não, “vovozinha” é mais estilosa. Bem, pode ir.

    — Sim, “avozinha” — concordou, não conseguindo evitar um sorriso.

    Ham estava prestes a se retirar, acompanhado de sua irmã, quando a velha o agarrou pela cabeça com uma força surpreendente. Olhou-o nos olhos e, com um tom grave, informou:

    — Você não…

    — Irmãzona… — ele suplicou, ao erguer a mão.

    No entanto, Loi não hesitou e deixou o quarto, como se estivesse pronta para partir a qualquer momento. A idosa, de repente, subiu nas costas dele, fazendo-o sentir o peso que teria de carregar.

    Com a pele marcada por anos de experiências, a anciã se enroscou no jovem, como se suas energias se conectassem. A mulher, chamada Lai, se aproximou das orelhas de Ham e, em um sussurro, declarou:

    — Como é bom ser jovem hehe!

    Irmãzona, sua traíra!

    Lai, com seus cabelos vermelhos, lisos e longos, balançaram suavemente até cair sobre o rosto dele. A velha, com um sorriso enigmático, exclamou:

    — Sentiu o gostinho? Continuo no ponto, novinho. Hehe!

    Ham, naquele momento imerso em confusão, sentiu seu rosto empalidecer ainda mais diante da situação. No entanto, algo dentro dele se acendeu, e, apesar do caos em sua mente, ele reconheceu quem era aquela pessoa. Lai, a mulher famosa por dominar as artes do aquecimento e da compressão, era sua mestra.

    — Ande logo menino — ordenou, ao bater na bunda de seu discípulo.

    Ham, tomado por um desconforto crescente, viu suas memórias se avolumarem, revisitando o sofrimento causado por aquela coisa. A cada lembrança, a frustração se intensificava, mas ele sabia que, apesar de tudo, não podia escapar. Precisava aprender, mesmo que fosse das mãos dessa aberração que lhe causava tanto mal.

    Lai, embora envelhecida, mantinha uma estatura surpreendentemente baixa, mal atingia um metro e quarenta e cinco centímetros. Sempre gostou dos mais novinhos, e os mais velhos, de sua idade, a evitavam. Sua aparência única, marcada por uma pele incomum, fazia com que se sentisse isolada.

    Ham, sem mais palavras, deixou o quarto e seguiu pelo corredor, obedecendo às instruções dela, como se não houvesse escolha.

    — As escadas… — comentou, ao olhar para o caminho.

    — Não, vamos por aqui — respondeu Lai, com um sorriso misterioso.

    — Mas não tem escadas! — protestou, confuso.

    — Siga em frente. Tenho uma surpresinha pra você — falou, com um brilho nos olhos.

    Surpresinha… 

    Ham refletia sobre o que a sua mestra havia preparado para ele, enquanto as memórias dos treinos passados o assombravam. Como no dia em que sua mestra o ofereceu a calcinha usada, o obrigando a colocar na cabeça enquanto treinava, e se negasse, ele não poderia mais aprender com ela.

    Mas o pior não foi isso. Ele, que normalmente depois dos seus treinamentos sofridos com aquela velha, tem o seu descanso na hora do banho, na sua banheira improvisada que criou. 

    No entanto, esse instante de tranquilidade terminou quando avistou aquela criatura somente que segurava a toalha nas mãos, correndo até ele, balançando seus peitos mortos e a sua pele que lhe dava nojo, mas o pior era o sorriso de tarada.

    Aquele dia foi o momento mais triste, o dia que ele queria esquecer. Cada vez que via essa mulher, lembrava que aquelas mãos flácidas passaram pelo seu corpo. Todo dia acordava e torcia que ninguém soubesse que passou por aquilo.

    No entanto, Ham sabia, que aquela coisa havia espalhado isso entre outras idosas do clã, o deixando mais puto, e naquele dia, ele prometeu que a mataria.

    Ao chegar ao local indicado, olhou ao redor, confuso.

    — Não tem nenhuma escada aqui.

    — Olhe melhor, tem uma corda! Hehe! — respondeu à velha, com um sorriso travesso.

    — Não pode ser… Eu não vou conseguir subir essa corda carregando um peso morto.

    — O que foi que disse? — Lai rosnou e mordeu seu discípulo.

    — Me desculpe, me desculpe! — ele gritou.

    — Bom menino… Mas a sua carne é bem macia — comentou ela, com um tom que transbordava gosto, enquanto lambeu os lábios.

    Nojenta!

    — Suba, Ham… Se não, já sabe o que vai acontecer — ela o alertou.

    — Sim… — aceitou, ainda desconfortável.

    Ham, que naquele momento, não podia fazer nada contra, pois mesmo nesse estado quase morto, ela ainda era considerada a mais forte do clã. No entanto, rezava que a decrépita não morresse antes de sua vingança.

    Ele começou a subir a corda, com esforço enquanto a carregava. A cada subida, transpirava e Lai aproveitava para lamber o seu corpo transpirado.

    — Hehe! Ser jovem é tão bom! Delicia!

    Eu vou te matar!

    Naquele momento, ele desligou a sua própria mente, continuou subindo e ignorou os abusos que sofria. Finalmente, chegou ao topo da fortaleza. Exausto e com o corpo em dor, colocou a velha no chão e a soltou, sentindo um alívio profundo por, enfim, deixar para trás o sofrimento que o acompanhou até aquele momento.

    Lai parecia um pouco decepcionada, como se esperasse que o momento durasse mais. Ela acreditava que seu discípulo estaria mais fraco devido ao seu último acidente, mas, para sua surpresa, a situação se resolveu mais rapidamente do que imaginou.

    O sol batia suavemente sobre eles, enquanto a paisagem ao redor começava a mudar, à medida que a tartaruga-gigante se movia. No alto, o teto era um vasto campo, repleto de plantações — trigo, cevada, nabos, cenouras e muitas outras que tomavam conta do local.

    A idosa se posicionou e, com passos firmes, começou a caminhar, ordenando que seu discípulo a seguisse. Ham, sem hesitar, a acompanhou por um canto do local, onde se estendia um jardim de flores vermelhas — um espaço dedicado aos treinamentos mentais. Ali, era possível ver outros membros do clã imersos em suas práticas, mas o ambiente estava reservado para aqueles que focavam no controle da mente e evitava movimentos bruscos.

    A maioria dos membros treinava fora da fortaleza, no solo perto da tartaruga-gigante e retornava somente após completar suas sessões.

    A velha se sentou em um dos bancos do jardim e olhando para Ham com uma expressão de insatisfação, pronunciou:

    — Vamos começar o treino.

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