A cidade de Virellium acordava tarde.

    Não por preguiça, mas por autopreservação. As vielas estreitas e calçadas úmidas pareciam guardar mais do que ratos e neblina. À noite, passos ecoavam como chamados. E era sabido entre os moradores: há coisas em Virellium que respondem.

    O sino da Torre Sul marcou sete badaladas. Mas o céu, afogado num cinza pesado, não fazia distinção entre o fim da noite e o começo de mais um dia condenado.

    Um velho carregador empurrava seu carrinho de madeira pelas docas debaixo do Luar, tossindo sangue limpando num pano sujo e empoeirado. Dois agentes da guarda passavam apressados, fingindo não ver. e então, entre a névoa densa como carne crua, uma figura solitária caminhava, os olhos ocultos pela sombra do próprio cabelo.

    Cael Thornwald.

    Seus passos não produziam som. Usava um sobretudo escuro e grosso, com o colarinho levantado contra o frio da manhã e o olhar firme, varrendo as ruas como se procurasse uma rachadura no mundo. O cabelo negro, longo o suficiente para cair na testa mas não alcançar os ombros, cobria parte do rosto.

    Na cintura, presa por uma tira de couro envelhecido, repousava sua espada — uma lâmina velha, de aparência inútil, coberta por ferrugem e poeira. Quem a visse acreditaria tratar-se apenas de um pedaço de ferro gasto, digno de um catador de sucata.

    Mas em Virellium, nada é o que parece.

    Cael cruzou a Ponte Cega, onde as gárgulas mudam de expressão conforme o ângulo da visão. Ele conhecia a cidade como um homem conhece suas cicatrizes. Sabia onde pisar e onde jamais olhar por mais de três segundos.

    Ele parou diante de uma porta antiga, com uma placa quase ilegível:
    “Antiguidades de Wyck — Selos, Ossos, Memórias.”

    Cael bateu três vezes, depois uma, e desenhou um pequeno semicírculo no ar com o dedo indicador. Não havia fechadura. A porta rangeu e se abriu sozinha.

    O interior era um útero de madeira podre, livros empilhados, relíquias rotas e o cheiro inconfundível de coisa que morreu há muito… mas nunca foi enterrada.

    — Você voltou cedo desta vez — disse uma voz rouca, misturada ao som de frascos tilintando.

    Wyck surgiu do escuro, com seus olhos leitosos e a pele fina como papel de pergaminho. Usava luvas de couro preto mesmo dentro de casa — e por um bom motivo, embora ninguém ousava perguntar.

    — O tempo está se dobrando — disse Cael. — Preciso garantir o que é meu antes que outro tente pegá-lo antes de saber que existe.

    Wyck assentiu e se virou. Do fundo da loja, retirou uma pequena caixa preta, envolta em um tecido manchado de ferrugem seca. Um símbolo gravado a ferro cobria sua superfície: três círculos concêntricos atravessados por uma linha quebrada.

    Um símbolo esquecido — da extinta Ordem Silenciosa de Kherith, destruída após tentar “refinar a alma humana por dissecação ritual”.

    Cael não hesitou. Estendeu a mão. Wyck segurou a caixa por um segundo a mais do que deveria.

    — Isso foi extraído de Ossuária… Leiloado sob código morto. Sabe o que dizem, certo? Que essa caixa fazia parte de algo maior. De um ritual abandonado. De um fragmento do… Caminho da Morte Circular.

    A loja ficou mais fria.

    Cael apertou levemente os dedos, e Wyck entregou.

    — Isso são lendas — disse ele. — E lendas não matam. Sozinhas.

    Guardou a caixa sob o sobretudo e virou-se.

    Wyck arriscou mais uma pergunta:

    — Vai abrir?

    Cael parou na porta. Não olhou para trás.

    — Não ainda. Antes… há alguém que precisa desaparecer.

    Saiu.

    A neblina do lado de fora agora parecia mais espessa que não é natural. Formava espirais que se fechavam sobre si mesmas, como serpentes hipnóticas. Cael atravessou-as sem hesitar, os olhos fixos em um ponto invisível no horizonte.

    Sua mão repousava levemente sobre a empunhadura da espada enferrujada. Ela não parecia vibrar, nem reagir — mas Cael sentia o peso de algo mais. Um sussurro escondido na ferrugem. Uma promessa de sangue.

    Atrás dele, a porta da loja se fechou sozinha.

    E lá dentro, Wyck murmurava, como quem ora por uma alma que nunca será salva:

    — Que os Três Círculos se partam… e que o último passo jamais se complete.

    Cael não ouviu. Ou talvez tenha ouvido — e simplesmente não se importou.

    A caixa pulsava, como se respirasse.

    E o tempo, em Virellium, deu uma leve… torção.

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