Capítulo 1 – Sob a Névoa, o Som dos Passos
O dia em Virellium começava como sempre: afogado em cinza, respirando podres sussurros. O céu estava sobrecarregado de nuvens pesadas que pairavam como um manto funerário, deixando a cidade coberta por uma espessa névoa que parecia nunca se dissipar. Mesmo após o nascer do sol, a luz se recusava a penetrar o véu que envolvia Virellium. Os lampiões a gás ainda ardiam, queimando uma chama amarelada que lançava sombras trêmulas sobre as ruas. Como se a própria cidade recusasse a luz, insistindo em permanecer nas sombras, onde os segredos e os pecados se escondiam.
Cael Thornwald descia as escadas de um edifício de pedra escura no setor de BrimKrow. O edifício era antigo, com rachaduras que contavam histórias de décadas esquecidas, de vidas que haviam passado por ali sem deixar marcas. Havia passado a noite em um quarto pequeno e abafado acima da estalagem “Dama Manca”, um local onde os nomes reais eram raros e as identidades, descartáveis. Não era o tipo de lugar onde se fazia amizade, mas onde se trocavam favores e se compartilhavam informações para quem soubesse procurar.
Com a caixa ainda guardada sob o sobretudo, a espada envelhecida batendo suavemente contra a coxa a cada passo, ele seguiu pela rua principal — os olhos atentos, os sentidos abertos. O toque da espada contra sua coxa parecia um lembrete constante do peso de sua missão, mas também de sua conexão com o mundo sombrio de Virellium. Cada passo que Cael dava, os sons ecoavam pelas vielas estreitas, como se a própria cidade estivesse escutando, aguardando algo que ele ainda não entendia completamente.
Virellium tinha um cheiro distinto: fumaça de carvão, sangue seco e promessas quebradas. O ar denso e úmido carregava uma mistura de ferrugem e decadência, como se cada canto da cidade fosse uma lembrança de algo que já havia morrido e, no entanto, se recusava a ser enterrado. A multidão começava a se formar, com seus passos apressados, os rostos encobertos por mantos e capuzes, e os olhares furtivos que evitavam o contato direto. As carroças carregadas de carvão rangiam sobre os trilhos, os leiteiros passavam rapidamente com suas cestas e crianças sujas corriam pelos becos, vendendo jornais com títulos alarmantes.
Cael parou apenas por um instante diante de um vendedor de rua. O homem, um velho de aparência caduca, estava oferecendo frascos com tampas de cera.
— Essência de Olhar-Vazio. Três moedas no frasco, previne invasão de pensamentos!
Cael ergueu uma sobrancelha, intrigado, mas cético.
— Está vendendo proteção contra entidades telepáticas… em frascos de picles?
O velho, com um sorriso torto e os dentes faltando, respondeu com entusiasmo.
— Ah! Então o senhor entende! — sua voz era rouca, mas cheia de orgulho. — Mas estes aqui são da variante com extrato de língua-pálida! Importados da Costa Dobrada!
Cael não disse mais nada e seguiu seu caminho. As palavras do vendedor ressoaram em sua mente, mas ele sabia que ali, em Virellium, o que parecia ser verdade muitas vezes se revelava uma mentira bem disfarçada. Mentiras, farsas, ou… uma verdade mal embalada? Virellium era assim. Onde as verdades podiam ser distorcidas até perderem sua forma original, e onde o que se via na superfície não passava de uma fachada, um véu sobre o que estava escondido nas sombras.
Ele virou à direita em um beco estreito, onde o Sol jamais ousava entrar. O espaço estava imerso em uma penumbra constante, como se o próprio Sol tivesse se rendido à escuridão da cidade. Ali, um lampião pendia morto sobre uma porta sem janelas, suas luzes mortas lançando apenas um fraco reflexo sobre o piso lamacento. Cael bateu três vezes na porta, duas rápidas, uma longa, o código que sinalizava sua identidade para aqueles que ainda operavam nos espaços mais secretos de Virellium.
Uma escotilha se abriu na porta, e uma voz seca, quase mecânica, questionou:
— Código?
— “Nas Sombras, Cresce a Verdade.” — respondeu Cael, sem hesitar. A frase era uma das poucas que ele jamais esquecia, uma chave para os lugares onde poucos ousavam ir.
A porta rangeu ao ser aberta, revelando o interior de um salão escondido atrás de tapeçarias manchadas e estantes empoeiradas. O ar estava impregnado com o cheiro de veludo velho, velas negras e uma estranha sensação de inquietação. No centro, uma única figura estava sentada em uma poltrona diante de uma mesa hexagonal. Era Senna Valle, uma mulher que Cael conhecia bem. Seus cabelos ruivos estavam trançados de forma meticulosa, e ela usava óculos de leitura que quase pareciam uma extensão de seu rosto. Sua voz, doce e serena, era capaz de enganar qualquer um que a visse afiar adagas enquanto lia poesia.
— Você se atrasou. Outra vez.
Cael, sem mudar a expressão, respondeu com uma leve ironia.
— O tempo se dobrou. E me dobrou junto.
Senna suspirou, tirando os óculos, revelando um rosto bonito, mas marcado por uma cicatriz fina no queixo, como se tivesse dançado com a morte — e, de algum modo, ganhado por pouco.
— Trouxe?
Cael retirou a caixa de seu sobretudo, observando o brilho da luz nas marcas antigas que cobriam sua superfície. Senna recuou, seus olhos arregalados como se estivesse diante de algo mais do que apenas uma simples relíquia.
— Isso não devia estar aqui. Os símbolos… Você tem ideia do que é isso?
— Tenho ideias. Nenhuma certeza. Ainda. — Cael respondeu, seu olhar fixo na caixa.
Ela levantou-se com movimentos rápidos, quase silenciosos, suas botas leves mal fazendo som no chão de madeira.
— Cael… você precisa parar de caçar os rastros desse tal “Caminho da Morte Circular”. Isso não é só uma lenda. Há lacunas nos registros históricos. Erros… que parecem calculados demais. Gente que tentou saber desapareceu. Gente como…
— Como eu?
Senna não respondeu de imediato, seu silêncio mais eloquente do que qualquer palavra poderia ser.
— Há rumores — murmurou Senna — que a Guilda de Alinhamento Fragmentado tem fragmentos de rituais parecidos. Mas eles não compartilham nada. Só aceitam membros que passaram pelo Contrato dos Olhos Abertos. Você sabe o que isso significa.
— Loucura. — Cael disse. — Ou… iluminação.
— Ou ambos. — Senna completou, sua expressão sombria, como se soubesse que, em breve, ele estaria imerso em algo do qual não conseguiria mais sair.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Cael encontrou-se com outro nome importante na cidade: Dorian Hellsrow, um contrabandista elegante demais para o submundo, sempre com luvas brancas impecáveis e um relógio que nunca marcava a mesma hora. Sua presença, embora afável e charmosa, era o tipo de perigo sutil que Cael reconhecia rapidamente.
— Então, nosso querido espadachim das sombras está metido em coisa alta — disse Dorian, mexendo lentamente em uma xícara de chá, os olhos brilhando com um interesse afiado. — Fragmentos antigos, ordens mortas, e… lendas?
Cael observava o homem por trás da xícara, seus olhos ocultos pela sombra da aba do chapéu. Dorian era útil, mas como toda moeda, ele tinha dois lados. E útil demais também podia significar perigoso.
— Preciso de acesso aos arquivos do Museu dos Ecos Invertidos. Eles guardam códices interditados. Um em especial: “A Carta Final de Daemond Valle.”
Dorian assobiou, surpreso.
— Isso é nível G3. Protegido por devotos da Igreja da Ponte Interna. Eles não são como os outros cleros. Acreditam que o mundo visível é uma mentira mantida por um véu — e que apenas o som da própria respiração no vazio revela a verdade.
— E?
— E… eu gosto dos meus olhos no lugar. Mas talvez… só talvez… eu conheça alguém.
Na noite que se seguiu, Cael voltou ao quarto alugado. A caixa estava ali, intocada. Ele trancou a porta, fechou as janelas e acendeu duas velas pretas. Com cuidado, desenhou três círculos com sal negro, colocando a caixa no centro. Sua espada na cintura parecia mais pesada agora, como se a presença dela estivesse ligada ao peso das decisões que ele estava prestes a tomar. Ele respirou fundo, sentindo o ar denso se apertar ao seu redor.
— Três círculos. Uma linha quebrada. Um passo que não deve ser dado…
Cael abriu a caixa, mas nada explodiu, nada gritou, nada se materializou nas sombras. O silêncio, no entanto, era denso, ameaçador. Dentro da caixa, havia um rolo de pergaminho, velho e amarelado, e uma pena negra. Não era uma pena de pássaro comum. Era mais escura, como se tivesse sido extraída de uma criatura não natural.
Ele desenrolou o pergaminho, seus olhos fixando-se nas palavras escritas com sangue antigo:
“Se és aquele que enxerga além do último círculo, sussurre teu nome ao vazio.
Se fores aceito, a morte caminhará à tua sombra — e nunca mais caminharás só.”
Cael segurou a pena, sentindo um calafrio percorrer sua espinha. Sua mão tremeu pela primeira vez em muito tempo. Atrás dele, uma sombra se moveu. Mas ele não se virou. Em Virellium, às vezes, virar-se é o mesmo que desaparecer.
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