A névoa rastejava pelas pedras do calçamento, como se mãos ansiosas tentassem agarrar os pés dos vivos. O ar estava denso e pesado, imerso em uma sensação de presságio. O manto esbranquiçado envolvia a cidade, uma cortina fina que transformava as ruas familiares em corredores de um pesadelo. No alto de um beco escuro, Cael Thornwald observava o vazio. Ele estava parado diante da porta de uma taberna decadente chamada A Boca do Sono. Seu olhar era gélido e implacável, uma lâmina afiada que varria os cantos da rua, como quem tenta encontrar algo ainda indefinido, algo sem nome. A busca de Cael estava se tornando mais enigmática a cada passo.

    Os eventos da noite anterior continuavam a dançar em sua mente, repetindo-se como um eco distante, mas insistente. Ele se lembrava da figura encapuzada, movendo-se furtivamente pelas vielas, tão rápida e silenciosa quanto uma sombra. O pergaminho coberto de símbolos arcanos queimado diante de seus olhos, transformando-se em cinzas antes que ele pudesse compreendê-lo totalmente. E, claro, a palavra sussurrada no momento do desaparecimento: Atavharn. O nome reverberava em seus pensamentos, como uma chave girando em uma fechadura enferrujada.

    Cael já havia ouvido esse nome antes, mas apenas como uma lenda, um sussurro nas bocas de eremitas e estudiosos marginalizados. Falava-se de Atavharn como uma divindade ancestral, ou talvez uma força, um estado de existência além da compreensão humana. Nenhum livro ou pergaminho conhecido oferecia uma resposta definitiva. Era uma entidade perdida nas brumas do tempo, um conceito impreciso, mas agora, estava real o suficiente para que Cael considerasse uma investigação mais profunda. Era um sinal claro, uma chamada do passado que ele não podia ignorar.

    Com uma pressão firme sobre a maçaneta, ele empurrou a porta da taberna. Um bafo quente de álcool e vozes embriagadas invadiu seus sentidos, misturando-se com o cheiro nauseante de suor e tabaco.

    A maioria dos rostos era familiar, homens quebrados e mulheres de risos ocos. Alguns mercenários falidos jogavam dados em uma mesa central. Mas em um canto da taberna, um homem chamou sua atenção. Ele não se encaixava completamente no cenário. Cabelos escuros e desalinhados cobriam parcialmente seu rosto, a barba por fazer e os olhos semicerrados revelavam uma mistura de tédio e desilusão. Ele balançava uma garrafa pela metade, sentado de costas para a parede como quem espera que o mundo se exploda e o atinja de raspão.

    Cael o observou por um tempo, estudando os movimentos despretensiosos e a aura de cansaço que o rodeava. Ele sabia que algo mais estava escondido por trás da aparência de desinteresse.

    — Leor, não é? — perguntou, sua voz fria como o vento lá fora.

    O homem levantou o olhar lentamente, como se estivesse tentando decidir se valia a pena responder.

    — Quem quer saber? — a voz dele era rouca, quase sem vida.

    Cael não se abateu. Sabia que aquele homem estava mais do que aparentava, como ele próprio.

    — Um homem em busca de algo que nem sabe descrever ainda. Mas que sabe reconhecer valor onde ninguém mais vê. — Cael puxou uma cadeira e se sentou à frente de Leor.

    Leor franziu a testa, não por raiva, mas por confusão genuína. Ele estava desconcertado, mas curioso.

    — Se está me confundindo com algum tipo de herói caído, está desperdiçando seu tempo.

    — Não heróis — respondeu Cael, observando-o com um olhar penetrante. — Só pessoas que ainda respiram e, apesar disso, se recusam a morrer por dentro. Você sabe o que é isso. Eu vi nos seus olhos. Vi quando você percebeu que não estava apenas bebendo… estava tentando esquecer algo que ainda vive em você.

    Leor ficou em silêncio, a garrafa ainda entre as mãos. Ele olhou para o líquido âmbar dentro dela, como se fosse a única coisa que ainda o conectava ao presente. O som das canecas batendo e os risos roucos preencheram a brecha entre eles.

    — Você não me conhece — disse Leor por fim, sua voz mais grave. — Não sabe o que fiz.

    Cael sorriu, sem alegria, apenas um sorriso vazio, quase triste.

    — Também não sabem o que eu fiz. Mas a cidade está morrendo, Leor. E há algo por trás disso. Algo antigo, esquecido. Se não fizermos nada, esse lugar será apenas o primeiro.

    Leor olhou para sua garrafa novamente, agora vazia, e suspirou. Ele sabia que Cael estava falando sério, que algo estava prestes a romper as finas barreiras de Virellium.

    — Me mostre no que você acredita. E talvez eu lembre no que costumava acreditar também.

    Cael assentiu, a resposta quieta. Ele não sorriu, mas seus olhos suavizaram por um breve instante. Algo em Leor estava despertando.

    Horas depois, os dois estavam em um antigo mercado abandonado no distrito de Élbora, um lugar que exalava a sensação de um passado esquecido. O ar cheirava a ferrugem e sal, uma mistura pungente que parecia emanar das próprias ruínas. Ali, semanas antes, um dos corpos marcados com os símbolos de Atavharn havia sido encontrado. Os traços eram inconfundíveis.

    Leor se agachou ao lado de uma marca desgastada no chão, estudando-a com atenção. Seus dedos roçaram a superfície, e seus olhos se estreitaram.

    — Esses símbolos… — disse ele, a voz baixa. — Eu já vi algo parecido nas ruínas do norte, quando trabalhei para uma expedição acadêmica. Mas era mais primitivo. Isso aqui… é refinado, intencional.

    Cael se aproximou, observando a marca com a mesma intensidade. Ele sentiu algo estranho, uma vibração quase imperceptível no ar, como se o lugar estivesse vivo, esperando por algo.

    — Alguém está tentando invocar algo. Ou libertar algo que já está preso. — disse Cael com uma certeza crescente em sua voz. — Mas por quê aqui? Por que Virellium?

    Leor exalou lentamente, seu olhar distante e pensativo.

    — Porque é uma cidade que ninguém protegeria — murmurou ele, como se estivesse compartilhando uma verdade esquecida. — Uma cidade que o mundo já esqueceu. Ideal para rituais de sombras.

    Cael tocou a marca com a ponta dos dedos, sentindo uma pequena pulsação sob sua pele. Ele fechou os olhos por um momento e então abriu, uma visão surgindo em sua mente.

    — Vi algo — disse ele, se levantando abruptamente. — Estão abaixo de nós. Não aqui, mas em algum lugar nas profundezas da cidade. Existe uma estrutura antiga… talvez uma catedral ou um templo.

    Leor o encarou com uma mistura de ceticismo e curiosidade.

    — E você quer ir até lá?

    Cael olhou para ele, sua expressão intransigente.

    — Não agora. Ainda não estamos prontos.

    O caminho à frente seria longo e perigoso, mais do que qualquer um dos dois poderia prever. Cael sabia que, para seguir em frente, precisaria de mais do que coragem. Precisaria de alianças. Pessoas dispostas a compartilhar de sua visão, mesmo que mal entendessem o que estava em jogo.

    Enquanto saíam do mercado, a lua se fazia visível entre as nuvens, lançando sua luz fraca sobre as ruínas da cidade. Leor fez uma observação, sua voz mais calma agora.

    — Essa espada sua… parece um pedaço de ferro velho. Mas quando você tocou o símbolo, ela vibrou.

    Cael pousou a mão na empunhadura de sua espada, sua expressão um pouco mais tensa.

    — Ela já viu mais do que aparenta. E talvez, no fim de tudo, veja mais do que eu gostaria.

    Leor o seguiu em silêncio, o olhar dele agora mais penetrante, mais atento. Algo havia mudado nele, uma fagulha de propósito.

    — Então… pra onde agora?

    Cael parou por um momento, encarando a escuridão da cidade à frente, a névoa fechando-se novamente ao redor dos becos.

    — Atrás de respostas. E talvez… de mais pessoas como você.

    Leor arqueou uma sobrancelha, uma pequena risada escapando de seus lábios.

    — Que estão bêbadas e quebradas?

    Cael olhou para ele com um leve sorriso nos lábios.

    — Que o mundo desistiu. Mas eu ainda não.

    Com a névoa envolvendo-os por completo, os dois desapareceram nas sombras. Virellium os observava em silêncio, seus becos sussurrando segredos antigos, suas sombras ansiando por sangue novo.


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