A cidade que se erguia diante deles era tudo o que Virellium não ousava ser à luz do dia.

    Chamada de Caligo Nox, sua arquitetura parecia feita para iludir e seduzir. Luzes coloridas se espalharam em letreiros piscantes, enfeites metálicos e fachadas envernizadas, ocultando a podridão por trás do brilho. O som das moedas tilintando, risadas falsas e notas de piano automatizado criavam uma trilha sonora incessante. Homens de terno e mulheres de vestidos brilhantes passeavam entre cassinos e cabarés, fingindo ser reis de um império onde tudo podia ser comprado — inclusive a verdade.

    Cael atravessava aquelas ruas com olhos silenciosos. Leor, ao seu lado, mantinha o capuz baixo, os olhos atentos, mas com um resquício de fascínio evidente. Tudo ali era excessivo. Tentador. Perverso.

    — Nunca pensei que o vício pudesse se vestir tão bem — comentou Leor, observando dois homens se enfrentando num jogo de apostas onde o perdedor entregava… sangue.

    Cael não respondeu. Seu olhar estava fixo numa placa de mármore negro encravada acima da porta de um edifício semicircular: “Lirio Nocturno”.

    Ali dentro, se dizia, habitava uma mulher que sabia mais do que os inquisidores do império. Uma mulher que negociava verdades como um banqueiro negocia dívidas. E que, em noites raras, aceitava conversar… se o preço fosse interessante.

    Cael empurrou a porta.

    O som abafado da rua foi substituído por música suave, e um aroma de flores exóticas misturado com algo mais… ferroso. O salão era amplo, com colunas douradas e sofás vermelhos como veludo manchado. Figuras dançavam ao fundo em palcos suspensos, mas ninguém olhava diretamente para os clientes. Era uma regra não dita.

    — Ele chegou — disse uma voz feminina. Era baixa, mas afiada. Como seda envolta em lâminas.

    Do alto da escadaria central, desceu Salome D’Valeska, a mulher mais temida de Caligo Nox.

    Alta, esguia, com cabelos trançados de fios prateados e olhos que pareciam cinzas antes da tempestade. Ela trajava um vestido negro justo, e seu porte transmitia autoridade sem esforço. Atrás dela, sombras se moviam, mas não tinham forma. Apenas presença.

    — Não imaginei que você pisaria aqui novamente, Cael Thornwald.

    Leor virou-se abruptamente, confuso. Cael, como sempre, apenas observou.

    — Então você está vivo mesmo — continuou Salome, descendo os últimos degraus. — Há quem diga que os mortos sussurram seu nome por meses após aquele incidente. Eu nunca acreditei em fantasmas… até agora.

    Ela se aproximou lentamente. O salão inteiro pareceu conter o fôlego.

    — Não estou aqui por histórias — disse Cael. — Quero informações.

    — E eu quero pagar uma dívida — ela sorriu, com algo entre temor e sarcasmo. — Mas isso não significa que vá sair de graça.

    Ela estalou os dedos. Uma jovem surgiu da escuridão atrás dela.

    Deveria ter pouco mais de vinte anos. Tinha olhos dourados e vivos, pele bronzeada, um corte de cabelo prático e roupas de couro ajustadas ao corpo — mais apropriadas para correr e lutar do que para seduzir. Uma adaga curva pendia da cintura, e seus dedos estavam sempre inquietos, como se sentissem o cheiro de um rastro invisível no ar.

    — Esta é minha filha, Saphira D’Valeska. A melhor rastreadora que já treinei. Inteligente, veloz, conectada a redes que nem você sabe que existem. E… teimosa como o inferno.

    Saphira sorriu com certa malícia ao encarar Cael.

    — Ouvi histórias sobre você — disse, com um brilho nos olhos. — Algumas absurdas. Outras… perturbadoras. Estou ansiosa para descobrir quais são reais.

    — Por quê ela? — questionou Leor, ainda desconfiado.

    — Porque o que vocês procuram está enterrado onde palavras não chegam — respondeu Salome. — E ela tem meios de cavar. Além disso…

    Ela encarou Cael, séria.

    — …algo está se movendo nas sombras. As perguntas que vocês fazem estão incomodando velhos monstros. Cuidem-se.

    Cael assentiu.

    Sem cerimônias, eles partiram, Saphira andando alguns passos à frente, tagarelando sobre pontos de encontro e caminhos alternativos. Ela era leve, irreverente, e parecia não se incomodar com o peso da tensão que sempre rondava Cael e Leor.

    Foi ao saírem do distrito da luz vermelha que tudo começou.

    A primeira explosão foi sutil. Apenas um sussurro de ar deslocado, seguido por uma sombra atravessando os telhados. A segunda veio como um trovão: uma figura encapuzada saltou de um beiral, brandindo uma foice curva que cortou o chão diante deles, separando-os em dois lados.

    — Finalmente encontramos o rato que corre pelas veias da cidade — disse a figura com voz cavernosa. — Cael Thornwald.

    Dois outros homens emergiram dos becos, armados. Mais atrás, encapuzados surgiam em silêncio, cercando-os.

    — Emboscada — murmurou Leor, erguendo as mãos. — Óbvio.

    Cael não disse nada. Saphira já se movia, esgueirando-se para a lateral, mãos nas adagas.

    — Eu cuido do de foice — disse Cael, a voz gélida.

    — Com uma espada enferrujada que nem tiras da bainha? — zombou o inimigo, girando a foice com habilidade letal. — Você subestima demais.

    Cael avançou com calma, desviando do primeiro golpe com um giro quase preguiçoso. A foice riscou o ar, mas não o tocou.

    O embate que se seguiu foi um balé brutal. O líder inimigo atacava com violência crescente, cada movimento mais impaciente com a falta de reação de Cael. O som metálico da foice ressoava por todo o beco. Mas Cael bloqueava tudo com a bainha da espada.

    — Está me insultando? — rosnou o inimigo, girando com fúria. — Lute a sério!

    Num movimento rápido, Cael parou a lâmina da foice com a lateral da espada embainhada e, com um giro, encostou a ponta da bainha no pescoço do homem. Um sussurro de aço.

    O inimigo parou. Seu olhar caiu sobre o símbolo entalhado na bainha — um círculo incompleto, cortado por três linhas curvas, como garras espiraladas. Seus olhos se arregalaram.

    — Não… esse símbolo…

    Ele recuou de um salto.

    — Recuem! AGORA! — ordenou aos outros.

    — Mas, senhor—!

    — RECUEM! Ele… ele voltou.

    Cael permaneceu imóvel.

    — Eles… vão ficar tão felizes em saber que você retornou — disse o homem, ainda ofegante. — Nem eu… nem eu ousaria arranhar essa lâmina. Frio e de poucas palavras como sempre, não é?

    Ele riu. Um riso insano, misturado com medo.

    — Homem que voltou dos mortos. A sombra que sangra. Que bela surpresa reencontrá-lo, Cael Thornwald.

    E desapareceu com seus capangas nas sombras.

    O silêncio voltou.

    Saphira limpava uma mancha de sangue da lâmina. Leor observava Cael com olhos abertos demais.

    — O que… o que foi isso?

    Saphira o acompanhou com o olhar.

    — “Eles vão ficar felizes em saber que você retornou?” O que ele quis dizer com isso?

    Cael ajeitou a espada na cintura e respondeu com a voz fria como sempre:

    — Esse não é o momento para histórias.

    **

    Horas depois, às margens de uma estrada de saída, Cael encarava os dois.

    — Voltem para Virellium — disse. — Procurem Orvin. Descubram como eles sabiam que estaríamos aqui.

    — E você? — perguntou Leor.

    — Eu espero.

    — Espera o quê?

    — Que eles voltem. Ou que algo maior se revele.

    Saphira fez menção de insistir, mas Cael já havia virado as costas.

    **

    Naquela noite, enquanto Leor e Saphira desapareciam no horizonte, Cael entrou num bar discreto, silencioso. Pediu algo forte. Sentou-se no canto.

    E ali ficou. Esperando.

    Pensando.

    O narrador sussurra:

    Quem é Cael Thornwald? Por que o homem com a foice recuou ao ver o símbolo? O que significa ter “voltado dos mortos”? E quem são “eles”… que ficarão felizes ao saber de seu retorno?

    A escuridão não respondeu.

    Ainda.

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