“Depois de tudo, por que fez isso por mim?”

    “Você é meu amigo, até deixou eu usar o seu armário!”, Sora disse essas palavras, sorrindo, há uma hora atrás. Álli não se segurou e soltou uma risada.

    E ainda assim, momentos depois, estava ele observando Sora andar em direção à arena. Já podia ver Yunni do outro lado. Olhou para ela e ela o olhou de volta, respondendo com irritação. Álli contorceu os lábios e abaixou o olhar. 

    “Você fez mal pra ele… e pra muitos outros. Então por que eu não consigo esquecer isso, não importa o quanto eu tente?”, levou a mão ao peito, apertando-o. Não importa o quanto buscasse detestá-la, as vezes em que aquelas mãos se entrelaçaram às suas seguiram sendo memórias preciosas.

    — Sora…! — Álli chamou pelo amigo, forçando um passo em frente.

    — Hm? Que foi? — Sora se virou, curioso.

    — A Yunni e eu… Nós já namoramos.

    Sora ergueu uma das sobrancelhas.

    — Ficamos juntos até o ano passado, por isso…

    — Cara…! — Sora o interrompeu. — Credo, ein! 

    — Eh? 

    — Não, tipo, tudo bem que ela é bonita mesmo, mas de resto, que dedo podre! — disse Sora cruzando os braços atrás da cabeça, antes de se virar de novo pra arena. Por alguns segundos, ficou em silêncio, Álli o olhando de costas — Mas foi mal — continuou, sofrendo na voz uma mudança de tom mais séria que o de costume — Eu não vou sossegar se não pelo menos devolver um tapa.

    — Huh… — Ele já imaginava aquela resposta. — Obrigado, Sora. E boa sorte.

    Com um último empurrão, o garoto de cabelo branco finalmente entrou na arena pela segunda vez.

    Do outro lado, Yunni já estava pronta. Seu cabelo ruivo estava amarrado num longo rabo de cavalo. Vestia uma regata e shorts esportivos colados ao corpo, um luxo particular que favorecia movimentos livres e liberação de calor. Porém, com a exceção do seu cheiro perfumado que não mudou só por ter trocado de roupa, o que mais chamava atenção eram as faixas enroladas nos punhos. 

    Os dois se aproximaram, ficando a três metros de distância um do outro. 

    — Eu te avisei. Você poderia ter só ido embora e evitado isso… E por que você tá sorrindo? — perguntou a elfa. 

    — Tô feliz de poder finalmente dar o troco.

    Yunni deixou escapar um curto riso.

    — Claro. Bom, quem sabe a sua habilidade te permita furar a minha — ela disse, com uma expressão satisfeita — Ah, sim! Não tem como, né?

    Sora fechou o sorriso. Afastando um pouco as pernas, ele ergueu os dois punhos, um levemente na frente do outro. Yunni não levantou postura alguma. Seus braços se cruzaram e tudo que fez foi empinar a cabeça. 

    Por alguns segundos, houve silêncio, até Sora ser o primeiro a avançar. 

    Ele cobriu a distância rapidamente, erguendo o punho para um soco certeiro no rosto, mas claro, não foi efetivo. A barreira transparente como vidro estava lá, mais uma vez, protegendo Yunni de qualquer arranhão. 

    — Huh, você é mesmo um selvagem, querendo acertar meu rosto! Me pergunto como foi que conseguiu aprender a falar. 

    Sora respondeu com mais dois socos na mesma região, sem efeito. As mãos foram e voltaram diante da barreira, sem criar qualquer rachadura.

    “É, não vai dar pra quebrar”, pensou ele. “Tá de boa, tem mais jeito!”

    — Você não aprendeu nada mesmo, né? Essa já não é a quinta ou sexta vez que tenta quebrar a minha barreira? Pois bem…!

    Sora ignorou. Tinha que ser nos movimentos; nos movimentos e não nas palavras dela que ele precisava prestar atenção.

    “Não vai ser difícil! A Yunni nunca começou uma briga. Se dá pra trocar soco com o Álli, eu só preciso dar um jeito na barreira que vai ser…”

    O seu pensamento e sorriso confiante foram cortados. Com uma lufada de vento, sua confiança se esvaiu, perdida no ar, enquanto seu peito era consumido pela dor de duas palmas abertas batendo violentamente em conjunto contra ele. 

    Seus olhos se arregalaram, fixando-se na imagem de Yunni de mãos unidas e estendidas. O cabelo ruivo e longo balançou com o vento conforme ela desferia o golpe.

    O choque do ataque veio pior do que um soco no estômago, forçando o garoto a tossir e puxando o ar para si. 

    “Mas o quê?!” gritou em pensamento, buscando recuperar o fôlego. Aquele golpe deve ter acertado algum ponto que não deveria, era como se seus membros não respondessem direito. Seu olhar de confusão foi lançado sobre a imagem de Yunni, bela e graciosa, recolhendo os braços.

    — Achou que eu não saberia lutar, é? 

    Da arquibancada, Álli cerrou os punhos. Um erro grave era subestimar as capacidades de combate dela. “No ginasial…eu tenho quase certeza, ela tinha a maior nota em artes marciais! Sora…”

    — Achou mesmo que eu não saberia lutar, mesmo estando nessa escola? Mesmo estando no topo de vocês? — Yunni lançou o olhar sobre o Sora curvado com as mãos na barriga, rangendo os dentes. — A herdeira dos Heartz precisa, no mínimo, saber como punir aqueles que saem da linha. 

    Sora ergueu o corpo rapidamente, lançando um punho fechado na direção da menina, mas a parede se levantou à frente dele sem demora.

    “Que…droga!” 

    — Ataques surpresa não vão funcionar, você sabe disso — falou ela, desfazendo a barreira e dando-lhe um tapa que o fez cambalear. 

    Ele ignorou o tapa, firmando-se no chão, Sora deu um passo pra trás. 

    “Pera aí…Mais uma vez, tenho que confirmar”, pensando, Sora avançou com o punho esquerdo, onde em resposta a parede se levantou para bloqueá-lo. Entretanto, assim como aparecera, tão rapidamente se desfez, deixando que a elfa que a dominava lançasse outra palma aberta contra o peito do menino, forçando-o a recuar em um metro. “Isso! É claro!!”

    — Hah! Não é possível que eu vou ter que desenhar pra você entender que isso não vai funcionar! 

    “É, não dá, por isso…”, Sora olhou para todo o campo da arena. Não tinha árvores, nem terra ou coisa alguma. Era apenas concreto, mas ainda assim as palavras que disse no dia anterior com Aisaka foram trazidas de volta à sua mente: “vou usar tudo que tenho!”.

    — Não funciona mesmo, né? — Sora perguntou, arfando. Ele puxou o ar e deu dois tapas com ambas as mãos no rosto, se recompondo. — Mas cê também não consegue me acertar!

    — Do que tá falando? — o sorriso de Yunni se fechou.

    — Eu não consigo te bater enquanto você tá com essa parede, mas o mesmo vale pra você né, Yunni? — disse ele. Entre os olhares dos dois, o cinismo dominava em um sorriso e na outra, uma face distorcida. — Tsc, tsc! Que feio se escondendo atrás de uma paredinha. Esses Heartz aí são tudo covarde igual você?

    — Quê…seu moleque!! 

    Quanta insolência e ousadia, desprovido de qualquer senso. Sem classe, sem respeito pela hierarquia, sem pureza alguma. Como um inseto que continua zunindo no ouvido ou uma mancha que nunca sai, aquele menino era o único que a tirava do sério, por isso! Por isso precisava tirá-lo dali, por isso tinha que ser descartado, expulso, mandado de volta para o pasto de onde veio. 

    Yunni avançou com a palma direita aberta, novamente para o peito, mas sua fúria enfraquecia o golpe.

    “Eu sabia! Assim é mais fácil de ler!”, com pensamento rápido, Sora enxergou a mão se estendendo na sua direção. Tudo que precisou fazer foi virar o torso. 

    A palma passou reto por ele.

    Como se apertasse um gatilho, Sora disparou o braço contra a mão de Yunni, batendo na horizontal, forçando-a a abrir os braços com todo o peitoral desprotegido. Finalmente, ela tinha uma abertura.

    “Isso é o mesmo que ele fez comigo!”, pensou Álli da arquibancada, quase ficando de pé. 

    Com o punho direito, Sora apertou outro gatilho, disparando-o contra acima da barriga de Yunni, mas…

    — Eu não sou idiota! — disse a elfa, forçando o braço esquerdo para dentro e batendo com a palma no punho de Sora, redirecionando-o para o lado. Ainda usando da força que levou sua outra mão para trás, ela moveu o braço no sentido contrário, violentamente acertando Sora no rosto. O suficiente para que ele fosse jogado pra trás, cambaleando.

    — Sora! — gritou Álli.

    O garoto deu dois passos pra trás. De alguma forma, aquela menina conseguiu contra-atacar o seu contra-ataque. De longe, ele não esperava que ela soubesse lutar assim. Mas, apesar de tudo, ela não usou a barreira.

    — Essa foi quase…! — falou Sora, lançando o mesmo olhar cínico para a outra. — Mas que foi? Não conseguiu subir a parede? 

    — Você, você é realmente uma praga! — ela avançou de novo. Se aquele moleque tanto queria irritá-la, pois bem, ela não daria tempo para que ele respirasse.

    As mãos cobertas pelas faixas se lançaram sobre ele, com uma lufada violenta de vento.

    “Ela tá mais rápida?!”, o pensamento voou por Sora ao mesmo tempo que a palma aberta da elfa passou pela lateral da sua bochecha. No último instante ele desviou da palma que vinha ao rosto, mas foram dois ataques. Dois ataques, um no rosto, um na boca do estômago.

    Sora expirou e tossiu, o rosto distorcido pela dor. Sentiu que ia vomitar. Em um movimento errado, em fraqueza, seus braços se juntaram no seu estômago, como se pudessem conter a dor. E isso era o que aquela elfa estava esperando.

    Cinco no peito.

    Duas no rosto.

    Duas em cada ombro.

    Vulnerável pela dor, suas incontáveis brechas o colocaram na frente de nove ataques. A cada palma aberta recebida, era como se botões espalhados pelo seu corpo que lhe davam energia fossem desligados. 

    — Você! Não se ache só porque você consegue trocar socos! — disse ela, lançando mais um golpe contra o peito. Sora levantou uma das mãos, tentando defletir o golpe mas em vão. Ela dispersou seu braço e conectou o ataque mais uma vez. 

    Sora tossiu mais vezes, dando passos para trás. Sua bochecha esquerda estava arranhada com uma grande vermelhidão. Um pouco de sangue escorria do canto da boca.

    Mesmo que seu exterior não mostrasse, as dores no corpo eram demais, como se aquele golpes passassem por tudo e acertassem diretamente seus músculos.  Aquele último golpe no ombro praticamente desligou seu braço. Nenhum deles, em verdade, seja direito ou esquerdo, o obedeciam direito. A dor não o deixava abrir os olhos direito, mas ainda assim em sua frente ele podia ver a figura limpa, bela, intacta, da elfa de cabelo amarrado e punhos fechados. 

    Se ele fosse capaz de acertar um ataque que seja, por menor que fosse, poderia provar que é merecedor de estar ali? 

    — Haaaah!! — gritando, ele ergueu um dos punhos fechados, disparando-o contra a elfa, mas dessa vez nem mesmo uma barreira foi levantada. Ela apenas desviou. — Gh! 

    — Isso…— Soltando o ar dos pulmões, Yunni lançou mais um ataque fechando o punho no meio da trajetória. Um uppercut, encaixado no centro do queixo. — Isso é força de verdade! Dominação, Sora!! 

    Choque.

    Um choque percorreu Sora da cabeça aos pés.

    “No que…ela bateu? Eu tô…tonto, minha cabeça…”

    Pela primeira vez seu equilíbrio caiu. Seus olhos balançaram como se sua cabeça girasse. Ao se der conta, seus joelhos tocavam o chão. Sora tossiu mais uma vez e grunhiu os dentes. 

    Na arena, um vento forte bateu, jogando sobre ele o perfume do cabelo dela. De cima a baixo, ela o olhava, parada e intocável. 

    De certo, ela sempre foi assim.

    Longe demais para ser tocada. 

    Distante.

    Isolada de todos que lhe são inferiores.

    Imponente e inflexível.

    Como uma figura nobre, uma rainha, de pé no trono onde seus súditos não podem fazer nada senão aplaudí-la.

    — Desde o começo eu sabia que não chegaria a lugar algum. Eu repito… — ela disse, levantando a cabeça, olhando do ponto mais alto possível. O desprezo que vazava de seus olhos buscava sufocá-lo como gás tóxico. — Você é só uma mancha. Uma formiga. Nada além de uma sujeira pra ser limpada daqui.

    Apenas um fraco, que nunca conseguiu realizar nada.

    Apenas um fraco, que nunca construirá coisa alguma.

    — Então, desista.

    O vento bateu contra ambos novamente. Ali, a elfa de pé julgou como culpado, o garoto ajoelhado, por sua própria fraqueza.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota