Índice de Capítulo

    A chaleira apitou pela segunda vez antes que ela se lembrasse do fogo. Desligou o fogão sem pressa, como quem não tem para onde ir. O bule permaneceu intocado sobre a bancada, exalando um vapor tímido que logo se perderia pelo vão da janela entreaberta.

    No rádio da cozinha, a locutora lia com dicção nítida, como se cada sílaba fosse cuidadosamente polida antes de ser colocada no ar:

    — E em comunicado oficial da Comissão de Estabilidade Nacional, o secretário de segurança, Alfred Hillermann, reiterou que todas as operações envolvendo a contenção de entidades não-naturalizadas continuam sob jurisdição direta da Agência de Unificação Civil. A diretiva reforça o compromisso da União com a ordem doméstica e a proteção dos valores familiares norte-germânicos. O presidente federal agradeceu, em nota, a coragem dos agentes e lamentou as perdas civis…

    Summer estendeu o braço e desligou o botão antes que a frase terminasse. O chiado cessou, e com ele o tom tranquilo demais para quem falava sobre corpos.

    Demorou-se com a mão no botão. Olhava para o rádio tal qual alguém observasse um animal antigo, doente, ainda perigoso. O silêncio que se seguiu foi menos incômodo. A casa sem sons era mais honesta. Mais suportável.

    Passou os olhos pela porta da geladeira, onde ainda estava o desenho colado com fita desbotada – um dragão mal feito com os olhos tortos e uma espada quebrada na pata. Continuava ali. Não por nostalgia, mas por cansaço. Retirar o papel exigiria uma força que ela já não via sentido em procurar.

    A xícara que usava era sempre a mesma. Tinha a alça colada com resina e uma pequena rachadura ao longo da borda. Sam dizia que era uma xícara “sobrevivente”, e por isso ela nunca se desfez dela. Agora, quando bebia o chá, sentia o líquido escorrer em direção à rachadura e fazia questão de beber do lado oposto. Como um gesto de respeito por algo que tinha resistido além da expectativa.

    O celular vibrou sobre a mesa. Uma notificação. Outra marcação. Comentários. Summer não tocou. Tinha aprendido também a reconhecer os ritmos da rede, o ciclo das indignações públicas, o tempo de vida de cada tragédia. Sabia que, em dois ou três dias, o nome do filho deixaria de ser dito até mesmo por aqueles que juraram jamais esquecer.

    Sentou-se na cadeira de madeira, cruzou as pernas e apoiou o queixo na mão. Observou a luz fraca que entrava pelas cortinas. Era cedo, mas o dia havia envelhecido. Um cansaço inconfundível se apoderava de tudo: das paredes, da mesa, das palmas das mãos. Não era sono. Era outro tipo de exaustão por permanecer.

    Fechou os olhos e respirou fundo. Levantou-se devagar e cruzou a cozinha a passos contidos. Sobre o balcão ao lado da geladeira, repousava a bolsa de couro gasta, dosada por uma alça com início de descostura e bolsos laterais um pouco frouxos. 

    Dentro dela, estavam dobrados os prontuários das famílias que acompanhou no distrito. Eram casos de reintegração familiar, um pedido de medida protetiva e dois relatórios de negligência recorrente. Tais papeis carregavam histórias que não lhe pertenciam, mas que, ainda assim, davam a ela uma sensação de familiaridade. 

    Conferiu rapidamente se o crachá estava no compartimento principal: o cartão bege com a inscrição da Secretaria de Desenvolvimento Comunitário no qual ainda estava colada a foto de Sam com fita adesiva transparente.

    Atravessou o corredor estreito da casa, passando pela porta do quarto dele sem olhar. No caminho até a entrada, pegou a chave pendurada no gancho da parede, ao lado do interruptor. Girou a maçaneta e abriu a porta. O ar de fora era úmido e frio. Ela saiu, segurando a bolsa contra o peito, e só então fechou a porta atrás de si, puxando-a até ouvir o estalo firme do trinco.

    A rua estava coberta de uma névoa leve, espessa nos cantos da calçada, mais fina onde os postes de luz artificial ainda resistiam com um zumbido elétrico. O céu, como quase sempre naquele lado de Portland, amanhecia encoberto, com uma luz pálida que não aquecia.

    Summer ajeitou a bolsa no ombro e desceu os degraus da varanda. A calçada em frente à sua casa tinha rachaduras antigas, cortadas por finas veias de mato teimoso, como tudo que nascia ali — insistente, mesmo sem ser bem-vindo, e por não saber parar.

    As ruas daquele trecho da cidade já não se lembravam do que era investimento público. Os postes eram inclinados, os ônibus atrasavam todos os dias, e a calçada do quarteirão de baixo ainda tinha marcas da última “operação de contenção” da polícia, três semanas antes, quando invadiram uma viela para procurar armas e saíram com corpos. Não encontraram nenhuma arma. A população negra sabia que esse detalhe pouco importava.

    Por entre casas parecidas com a dela — pequenas, com tinta gasta, hortas improvisadas em baldes de tinta, roupas secando no varal e rádios baixos tocando sermões ou jazz antigo —, ela passava. A região era de trabalhadores, gente que não tinha tempo de entender a própria dor antes de levantar para mais um turno em turnos que nunca bastavam. 

    Inacreditavelmente, era exatamente ali que os carros da patrulha passavam com maior frequência. O motivo não era a segurança, mas o controle. A polícia gostava de marcar presença onde não era desejada.

    Conhecia muito bem o significado de viver naquela parte de Portland. Era conhecedora do protocolo que fazia com que os policiais escolhessem os rostos nos quais mirar. Sabia que, quando uma jovem negra desaparecia, os boletins de ocorrência eram preenchidos mais devagar. Na triagem, os documentos de quem tinha sobrenome latino eram revistados duas vezes. Cumpria as regras invisíveis que regiam a cidade para não ser vítima ou cúmplice.

    Ela já estava a duas quadras do ponto quando ouviu a sirene curta, uma rajada seca de som que mais servia para silenciar do que avisar. Ao virar a esquina, deparou-se com o veículo blindado parado na transversal da rua, bloqueando o tráfego, uma barreira iluminada por farois. 

    O carro não tinha identificação à mostra, mas todos sabiam que se tratava da viatura de patrulha urbana, modelo padrão para operações de rua. Eram três, talvez quatro homens, todos uniformizados com os trajes pretos do Departamento de Ordem Metropolitana.

    Summer apertou a bolsa contra o corpo. Do outro lado da calçada, duas pessoas se aproximavam. Eles andavam lado a lado, calados, de olho nos agentes, buscando a rota mais curta e segura.

    Mas não houve tempo para desvios.

    — Vocês três, encosta na parede. Vai. — disse o agente mais velho.

    O homem ao lado de Summer ergueu as mãos devagar, antes mesmo de dizer qualquer coisa.

    — Só tô indo pro trabalho, senhor. Tenho crachá, uniforme. Posso mostrar, tranquilo.

    O agente mais novo se aproximou, já com o scanner de identificação na mão. Estava tenso, mas escondia a insegurança atrás de um tom forçado de autoridade.

    — Documento. Sem conversa.

    Summer e a outra mulher pararam lado a lado. A mulher mais velha já puxava a identidade da bolsa, mas tremia tanto que deixou o zíper emperrar na metade. A respiração dela já vinha em pequenos sopros. Summer não tentou ajudar. Sabia que o simples gesto de estender a mão podia ser mal interpretado. Só manteve os olhos nos agentes. Contou três. Nenhum deles parecia disposto a escutar.

    — Estamos procurando Elias C. Monroe. — disse o mais robusto, mexendo no colar de identificação preso ao colete tático. — Trinta e seis anos. Registro por desacato agravado, material antinacional, vínculo suspeito com célula insurrecional. Visto nessa área ontem à tarde.

    — O Elias? — perguntou o homem, tentando manter o tom neutro. — Ele era da oficina do meu cunhado. Passa longe daqui faz semanas. Ninguém viu ele por aqui.

    O policial mais novo o empurrou com o antebraço no ombro, firme o bastante para estalar a coluna dele contra o muro.

    — Não perguntei. Encosta logo e braço pra trás.

    Este fechou os olhos por um segundo, depois obedeceu, sem discutir. A resignação não vinha do medo, mas da rotina.

    — M-minha foto tá… esquisita porque é de quando fiz cinquenta. — A senhora tentava explicar entre pausas e gaguejos. — Agora já passei dos setenta e…

    — Só mostra o que foi pedido. — interrompeu o policial, sem sequer escutar o fim da frase.

    Summer ficou parada. As mãos firmes, os pés bem plantados no chão. Puxou os documentos da bolsa com calma e os segurou à frente do corpo.

    — Aqui estão. Trabalho pra Secretaria de Desenvolvimento Comunitário. Meu trajeto é registrado. Tenho credencial e protocolo.

    Um dos agentes se aproximou dela, o olhar demorando um segundo a mais do que o necessário na roupa, na pele, nos olhos dela.

    — E essa bolsa aí? 

    — É minha. Tem relatórios da Secretaria, protocolos de acompanhamento, dados confidenciais.

    — Vamos verificar.

    — Eu posso abrir. Você diz o que quer ver e eu mostro.

    — Não, senhora. — disse, agora com um meio sorriso. — Melhor deixar que a gente faz. Evita erro de comunicação.

    Ela segurou a alça ainda mais forte, sem, no entanto, responder. O policial esticou o braço e arrancou a bolsa de suas mãos com um puxão seco, tal qual se arranca uma sacola do mercado.

    — Tem nome de criança ali dentro. Tem denúncia ativa. Vocês sabem o que estão levando?

    — Se tiver algo comprometedor, a gente vai descobrir. Nada pessoal. Só rotina.

    A frase era o que mais o irritava. Sempre era “só rotina”. Soava como um procedimento padrão, um exagero da parte de quem era revistado. Mas nunca diziam isso quando o rosto era branco e o sapato mais caro. Nesses casos, a abordagem vinha com um “bom dia” e um pedido de licença. Ali, vinha com mão no ombro e desconfiança automática.

    O homem já estava com as mãos para trás quando sentiu o puxão forte que quase o fez perder o equilíbrio.

    — Calma, caralho! Tô colaborando. — resmungou, tentando se firmar contra a parede.

    O policial mais jovem se irritou rapidamente, reagindo como se aquela resposta tivesse rompido algum limite imaginário. Ele o virou e o empurrou com o antebraço na base do pescoço.

    — Abre a boca de novo e vai com o nariz pro chão. Tá achando que isso aqui é conversa?

    — Não tô resistindo. Tô falando. 

    Foi o suficiente.

    O agente sacou o cassetete da lateral do cinto com um estalo seco e o golpeou na parte de trás da perna. O homem caiu de lado, tentando amortecer a queda com o cotovelo, mas o impacto bateu direto no quadril. Ainda tentou se erguer, apoiar o joelho, mas o segundo golpe veio contra a costela.

    — Porra! — gritou, sem vergonha de doer.

    — Fica no chão. 

    Summer deu um passo à frente, quase mais rápido que o raciocínio. Porém se conteve. Conhecia as consequências para quem tentava interferir. Seus olhos tremiam, apesar de seu corpo permanecer firme.

    A senhora ao seu lado levou a mão à boca, os dedos trêmulos cobrindo os lábios.

    A vítima cuspia no chão, tentando respirar, a perna esticada em espasmos involuntários.

    — Ele não fez nada… 

    Dois policiais o levantaram pelos braços. Um deles ainda bateu sua cabeça contra a lateral da porta da viatura no momento de colocá-lo dentro. Nem forte, nem fraco. O bastante para doer. O bastante para humilhar.

    — A gente vê lá dentro quem é que fez o quê. — disse o policial ao fechar a porta.

    A porta bateu com um baque surdo.

    Summer não se moveu. Os punhos estavam cerrados, os dentes pressionados uns contra os outros. 

    A viatura já começava a se mover quando um dos policiais parou ao lado de Summer, o mesmo que havia puxado a bolsa de sua mão com aquele meio sorriso torto. Ainda a segurava, pendurada pela alça, como se fosse um objeto qualquer, sem nome, sem conteúdo.

    — Isso aí fica. — disse, curto.

    — Fica por quê? — Franziu o cenho. — O que tem aí dentro é documento público. Relatório de assistência. Dados sensíveis de menores e vítimas. Nenhuma dessas informações tem relação com o homem que vocês estão procurando.

    — Pode ter. Ele já usou identificação falsa antes. Pode ter usado algum desses nomes pra esconder rastro. Endereço, CPF, ficha falsa. Cê sabe como esses caras operam.

    — Esses caras? 

    — Gente como o Monroe. O tipo que se infiltra em estruturas vulneráveis. Gente que sabe que ninguém vai conferir ficha de criança pobre. Gente que faz de qualquer sistema um esconderijo.

    — Aí vocês acham que a minha bolsa é uma cela aberta?

    — Não é pessoal. 

    — Não é pessoal, mas é meu nome no crachá. É a minha assinatura em cada folha que tá aí dentro. São mulheres que confiaram em mim. Tem denúncia ativa ali. Endereço protegido e tem uma lembrança do meu filho falecido. O nome dele. A foto dele. Grudada no verso da minha identificação. É tudo que sobrou.

    O policial girou os ombros, ajeitando o cinto no quadril com uma calma ofensiva. Levantou o queixo e soltou um suspiro que soava mais como desdém do que cansaço.

    — Todo mundo perdeu alguém. Todo mundo tem lembrança de filho morto. Você não é especial, não.

    As palavras bateram como tapas — o volume não importava, mas sim o desprezo frio de quem não via rostos, só estatísticas.

    — A gente tem um trabalho pra fazer, entendeu? Não dá pra parar o fluxo porque alguém aí tá de luto. Se eu desse ouvidos pra cada mãe que perdeu um filho nesse bairro, eu não andava duas quadras.

    Summer não deu uma resposta. Sua respiração estava pesada. Isso não era apenas um homem vestindo uma farda. Era o sistema completo inserido em um corpo que já havia perdido a capacidade de ouvir alguém de verdade.

    — O que vocês fazem não é segurança. É desmonte. Vocês não protegem. Vocês selecionam. E quem sobra, vira ruína no jornal da semana seguinte.

    Ele sorriu. Um canto de boca, quase uma piada privada.

    — Bom. Talvez se escolhessem melhor onde enfiar os filhos, sobrasse menos pra gente limpar depois.

    Ela não se deixou levar pela provocação. Apenas o encarou. Em seu olhar, estava tudo o que não podia ser expresso em palavras: o cansaço, a dignidade arranhada, a lembrança, o nome, a fotografia que carregava na bolsa, como se fosse papel de bala.

    O policial se afastou. A viatura partiu a uma velocidade reduzida, sumindo entre os edifícios desgastados da rua. Não houve retorno. Não havia protocolo. Não houve agradecimento pelo que tinham realizado.

    Lá ficou, com os braços estendidos ao lado do corpo, a boca seca e o peito parado. Não se tratava propriamente de medo. Era a raiva que surge quando se tenta ser lógico em um ambiente onde a razão nem sempre predomina.

    E pela primeira vez naquela manhã, sentiu que não dava mais para fingir que o trabalho e a realidade podiam seguir separados.

    Naquela rua, diante daquele gesto, tudo estava do mesmo lado.

    — Não foi certo o que fizeram com você. — disse a senhora ao seu lado, a voz baixa, cuidadosa. — Eles não tinham esse direito. Você só tava…

    — Não fala. — cortou, sem sequer virar o rosto. — Só… não fala.

    A mesma colheu as palavras. Não foi uma ofensa. Apenas um obstáculo que não podia ser transposto. Em sua postura, com o queixo caído, os punhos fechados e o olhar pousado no chão rachado, ela indicava que nada mais poderia ser dito ali, a não ser o silêncio.

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