Índice de Capítulo

    Começou a caminhar, com passos curtos e velozes, movida por algo em seu corpo que já estava atrasado. 

    Ela caminhou apoiada em pedaços partidos no peito, impulsionada não por destino, como se costuma dizer, mas por uma necessidade premente. Sabia que, ao entrar no edifício da Secretaria, precisaria aparentar uma tranquilidade que já não tinha. Previa que solicitariam seu protocolo, sua pasta e seus papéis. E tinha certeza de que nada disso a envolvia.

    O prédio da Secretaria de Desenvolvimento Comunitário não era bonito. Não tinha aquele tipo de arquitetura que sugeria vocação pública ou acolhimento. Era um bloco de concreto de três andares, com manchas escuras na fachada e vidros foscos que mantinham a luz do lado de fora, como se a claridade pudesse atrapalhar o funcionamento do sistema. A entrada era sempre engarrafada de gente — mães com documentos amassados, jovens com pastas de papelão, idosos tentando lembrar onde ficava a fila certa.

    Summer atravessou o saguão com o corpo ereto, desviando de olhares e corredores. Já passava das oito e meia. No painel eletrônico do térreo, os nomes de quem havia batido o ponto piscavam em vermelho. O dela não estava entre eles.

    Subiu as escadas e entrou na sala compartilhada onde dividia espaço com mais cinco assistentes. Três já estavam ali. Carmen falava ao telefone tentando convencer alguém do jurídico a liberar a verba de uma transferência assistencial. Tinha uma xícara na mão e uma caneta presa entre os dedos. Renê teclava algo no computador com a testa franzida e a camisa amarrotada. William levantou os olhos assim que ela entrou.

    — Tá atrasada, Sum. Achei que ia emendar a folga.

    Nada disse. Puxou a cadeira e sentou. 

    — A polícia levou meus documentos hoje. — disse, sem floreio.

    Este tirou os óculos e deixou cair na ponta do nariz.

    — Levou?

    — Tudo. Minha pasta, os casos, os relatórios. Disseram que podia haver alguma relação com um sujeito chamado Elias Monroe. Estão procurando ele no bairro. Fui parada na rua.

    Carmen tapou o microfone do telefone com a mão.

    — Mas você explicou que era da Secretaria?

    — Expliquei.

    — Mostrou o crachá?

    — Não tive tempo. 

    O outro girou na cadeira, parando de digitar.

    — E você não fez boletim? Não exigiu protocolo?

    — Você acha que eles deixaram espaço pra isso? Só deram meia-volta e sumiram. Nem me olharam.

    O silêncio que se formou não era de espanto. Era de confirmação.

    Renê se inclinou sobre a mesa, os braços cruzados.

    — Quer que eu fale com alguém no setor de operações? Tenho um primo lá, pode puxar a lista das apreensões da manhã. Se jogaram no sistema, dá pra rastrear.

    — Obrigada, mas não. — disse, com um suspiro controlado. — Eles sabem exatamente o que fizeram. E sabem que podem fazer de novo.

    Ela voltou ao telefone. Renê só assentiu.

    — Tem café fresco na térmica, se quiser. Amargo, daquele que parece castigo. 

    Summer tentou sorrir. Ela realmente tentou. Era o tipo de comentário cotidiano que ajudava a manter a rotina, mesmo quando tudo à sua volta fugia do controle. Mas ela não conseguiu. O gesto de levantar da cadeira foi muito lento. Caminhou até a pequena bancada no canto da sala onde repousava a velha garrafa térmica de inox, um pote com açúcar empedrado, duas canecas lascadas e o barulho constante da impressora ao fundo.

    Com uma das mãos, ela pegou a xícara e, ao destampar a térmica com a outra, sentiu o baque. Não o da água quente, nem o do cheiro do café queimado, apenas o do gesto comum. O gesto automático que, naquele instante, a fez lembrar de como o filho ria do amargor daquilo. Como dizia que ninguém merecia começar o dia bebendo algo que parecia ter sido filtrado por carvão.

    A mão dela falhou. A tampa escapou da garrafa e caiu com um som seco, redondo. Não foi alto. Não assustou ninguém. Mas aquilo bastou.

    Ela deixou a xícara cair devagar, os olhos já marejados, e encostou as costas na parede fria. Sentia o ar falhar no peito. Não se tratava de um soluço imediato. A pressão abafada começava nas costelas, subia pelo pescoço e ardia nos olhos. Tentou respirar fundo, conter o soluço, reorganizar o corpo, que não quis cooperar. O que ela segurava escapou.

    O choro veio devagar, meio engasgado, como se ela ainda pedisse licença para sentir. As mãos cobriram o rosto e os ombros cederam, discretos, como se não quisessem incomodar ninguém.

    Renê se virou na cadeira ao perceber que ela não voltava. A outra, do outro lado da sala, parou de falar no telefone.

    Ele foi o primeiro a se levantar. Não disse nada. Só caminhou até a parede onde ela estava, devagar, respeitando o espaço. Estendeu a mão, sem tocar, mas perto o suficiente para estar disponível.

    — Quer que eu te cubra? — perguntou. 

    Ela balançou a cabeça em negação, ainda com as mãos no rosto. 

    Logo assentiu, mesmo sem saber o que responder. A mulher apareceu logo atrás, segurando um lenço de papel, a boca trêmula. Tocou de leve o braço da colega.

    — Vem. Senta aqui. — disse, e era mais convite do que ordem. Summer foi guiada até a poltrona da ponta, onde se abaixou ao lado dela e deixou o lenço sobre o colo.

    — Era o nome dele. — disse, com a voz embargada, os olhos molhados. — O nome dele e a foto, na parte de trás do meu crachá.

    Renê e Carmen trocaram um olhar rápido, mas não disseram nada. Summer fechou os olhos e deixou o corpo afundar na cadeira, como se a memória finalmente tivesse espaço para descer inteira.

    — Ele morreu. — completou, depois de alguns segundos. — Em uma operação da U.E.C. 

    Renê, de pé, recuou meio passo. Carmen abriu a boca, mas fechou. William, que até então estava quieto no canto, girou a cadeira para o lado, encarando o chão.

    — Disse que queria ir. Que podia ajudar. Disse que tinha um amigo preso lá dentro e que ia fazer alguma diferença. E eu… — A voz falhou. Ela engoliu o que vinha. — Eu deixei, porque eu quis respeitar o que ele achava que era coragem. Porque eu achei que… que impedir era pior.

    Ninguém falou.

    Renê puxou uma cadeira e sentou de frente para ela.

    — Você não foi a única, Summer. Eles estão recrutando mais cedo agora. Ninguém mais tá escondendo. A gente vê garoto de quinze assinando termo pra missão técnica. E ainda dizem que é por mérito. Por capacidade cognitiva acima da média. Tudo desculpa pra botar moleque na linha de tiro sem chamar de soldado.

    — É. — William murmurou, da mesa dele. — Depois que morreu aquele diretor do Departamento de Defesa no oeste, o protocolo ficou mais agressivo. Só querem resultado, não querem saber o que custa.

    Carmen, que permanecia em pé, não se movia. Estava parada, com o rosto virado para a janela, como se observasse algo do lado de fora. Quando falou, a voz veio sem doçura, mas sem veneno.

    — Mas ele quis ir.

    A frase caiu como pedra no chão. Summer levantou os olhos. Esta continuou sem encarar ninguém.

    — Você deixou. E isso tá tudo bem. É justo. Mas ele quis ir. E talvez ele tenha morrido acreditando que aquilo fazia sentido. Que tava certo. A gente se agarra nisso às vezes. Mas também precisa aceitar que tem coisas que não vão se resolver com culpa ou com raiva.

    Summer não respondeu logo. Respirava mais devagar, mais fundo.

    — Eu queria que ele não tivesse precisado ser tão corajoso. É isso. Queria que o mundo fosse menos injusto com os filhos que têm senso de dever cedo demais. Ele nem sabia o que era viver, mas já achava que precisava salvar alguém. E eu, por orgulho ou medo… deixei. E agora o que sobrou de lembrança foi levado por um policial que nem soube olhar na minha cara.

    — Ele não apagou o que ficou, mas talvez tenha te forçado a falar disso hoje. 

    — Por que eu não falei antes? — murmurou. — Por que eu vim trabalhar, fingindo que só tava cansada? Como se isso fosse só mais uma coisa?

    — Porque é isso que a gente faz. — respondeu Renê. — A gente veste o que sobra, enfia no bolso e segue. Senão a gente desaba. E ninguém quer ver a gente desabar. Querem a planilha pronta. Querem a visita no horário. Querem que a gente sorria com empatia moderada. Querem que a gente aguente.

    Summer deu um sorriso rápido, triste.

    — Eu não aguento mais sorrir por protocolo.

    — Então não sorri. — disse William. — Chora. Fica puta. Escreve carta. Grita. Faz o que tiver que fazer. Mas não guarda mais só pra você.

    — Não precisa virar mártir por dentro. — completou Carmen. — A gente segura com você agora.

    Carmen voltou os olhos para ela com uma firmeza que vinha da convivência, não da função.

    — Summer, hoje você não senta nessa mesa. Vai pra casa e descansa. Você não vai virar máquina por cima disso.

    A mesma hesitou. A culpa ainda a assombrava. O problema não era ter chorado, mas sim a crença de que chorar naquele lugar, horário e corpo ainda era visto como fraqueza – inclusive por ela própria. Mas uma ordem que vinha por cuidado era reconhecida por ela. Então, assentiu. Não discutiu. Nem sempre era necessário.

    Os outros voltaram ao trabalho com a mesma cadência cravada pelo hábito. Telefones, teclas, chamadas truncadas com o jurídico, planilhas de benefício atrasadas. Nada ali tinha glamour. Era só estrutura remendada por quem ainda acreditava que ajudar, às vezes, era só não deixar alguém afundar sozinho.

    Summer ficou. Não saiu logo.

    Sentou na borda da cadeira, os pés firmes no chão, o olhar voltado para o monitor desligado da própria mesa. Não podia acessar os relatórios. Não tinha cópia dos dados que levaram. Mas lembrava.

    Pegou uma folha em branco e começou a escrever de cabeça. Nome por nome. Situação por situação. Mãe com dois filhos em medida protetiva. Menina que ainda não havia conseguido vaga na escola de tempo integral. Um rapaz em processo de regularização que precisava de parecer psicológico até sexta. Cada um, uma lembrança. Cada linha, uma forma de insistir que, mesmo desarmada, ela ainda estava de pé.

    Renê passou por trás dela e viu os papéis sendo preenchidos à mão.

    — Isso vai virar protocolo?

    — Não. — respondeu. — Mas se eles não devolverem os arquivos, vai virar denúncia. Vou datar, assinar, e protocolar como documento extraviado com risco de exposição civil.

    Ele ergueu as sobrancelhas e, sem dizer mais nada, deixou um grampo e uma folha de capa limpa sobre a mesa.

    O tempo passou de forma lenta quando o corpo não acompanhou a velocidade da mente. Às 17h, os sons da Secretaria começaram a rarear. Os atendimentos diminuíam. Às 18h, o último telefonema foi encerrado com um te retorno amanhã, sim, pode deixar. Às 19h30, Carmen se despediu com um beijo na cabeça dela e um aviso gentil:

    — Eu vou estar por perto. Qualquer coisa, só falar.

    Estava sozinha, com as luzes baixas e o som da cidade batendo nas janelas duplas.

    Às 20h, terminou de reescrever à mão três fichas críticas. Às 21h, colocou tudo num envelope datado, junto com uma nota de próprio punho sobre a apreensão. Nada ali compensava a perda – nem da bolsa, nem do que estava dentro dela. Mas era uma maneira de não deixar que desaparecesse em silêncio.

    Às 21h45, desceu lentamente as escadas. A luz do hall já havia sido reduzida ao essencial. Os pés do vigia estavam apoiados numa cadeira. Dormia com a cabeça torta, a respiração pesada. Summer não o acordou.

    O relógio marcava 22h cravado quando empurrou a porta de saída. O ar da noite vinha seco, frio de um jeito que a pele reconhece antes do cérebro. Do lado de fora, a rua estava quase vazia. Um caminhão passou, rangendo. Um gato atravessou a calçada em silêncio.

    Ela ajeitou o casaco, apertou os braços contra o peito, e começou a caminhar.

    Do outro lado da rua, duas figuras discutiam. Um deles chutou um latão, e o som metálico estalou alto demais. Summer não apressou o passo, mas ajeitou melhor o casaco. Aprendera cedo que andar rápido demais chamava atenção – o mesmo servia para quem andava lento demais.

    Quase em frente ao velho ponto de ônibus desativado, onde o letreiro enferrujado ainda carregava um número de linha que já não existia, ela ouviu passos atrás de si. Lentos. Rítmicos. Mas não apressados. Aquilo não era uma aproximação ansiosa, era alguém que sabia exatamente para onde ia. Ou para quem.

    Virou-se de leve, os olhos afiados pela desconfiança.

    O homem parou a alguns metros. Estava completamente vestido de preto. Calças reforçadas com cintas, uma jaqueta longa de tecido técnico, botas justas ao tornozelo, capuz cobrindo o rosto. No peito, um coldre atravessado, uma pochete militar, um pano amarrado como máscara. O que mais saltava aos olhos era o sangue. Seco, em manchas dispersas sobre o tecido. Gotas escuras, como se fosse recente.

    Summer não recuou. Mas o corpo inteiro enrijeceu. Ela firmou os pés, pronta para o que fosse.

    O homem então levantou uma das mãos. Nela, como um gesto improvável, estava a bolsa.

    A mesma. O couro desgastado, a costura frouxa. 

    Summer não conseguiu falar. A garganta se fechou. Só estendeu a mão devagar e tocou o objeto com a ponta dos dedos, depois com a palma inteira. Estava ali. De volta. Sem explicação. Mas intacta.

    — Não é justo o que estão fazendo contigo. 

    A mulher levantou os olhos, tentando ver sob o capuz, mas a sombra cobria bem o suficiente para ocultar qualquer traço identificável.

    — Isso não é um favor. É um lembrete — continuou. — Você ainda tem voz. Ainda tem nome. Ainda tem escolha.

    — Quem é você? — perguntou, apertando a alça da bolsa contra o peito.

    Sem respondê-la, virou-se. Mas antes de desaparecer na curva da rua, lançou uma última frase, sem olhar para trás:

    — Resista. Reconstrua. Lembre-se.

    E desapareceu. Sem som. Sem nome. Restou apenas a noite em sigilo e o peso restaurado daquilo que tentaram retirar.

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