Capítulo 10 - Azarado
(Pov Cael)
Nem uma reaçãozinha… nada! Nem um “uau”, nem uma crítica construtiva tipo “legal, mas tenta não parecer um furacão possuído na próxima vez”.
Só ficou me encarando.
Sério.
Como se eu fosse uma aberração saída de um experimento que deu muito errado.
— Tá me zoando, né? Que foi, engoliu a língua?
O infeliz parecia em transe.
Totalmente bugado.
— Eu… — arregalou os olhos do nada, deu um passo pra trás.
Quase tropeçando.
Parecia que tinha dado de cara com um monstro faminto.
E olha… fome eu tava mesmo.
Treinar gasta caloria para caralho, lek.
— Eu? EU? EU??
— Espera, caramba!
Juro, pela cara, foi tipo o primeiro beijo.
Aquela cara de choque, horror e existencialismo barato — tipo primeira vez vendo boleto vencido com juros, sabe? Só faltou a musiquinha de drama no fundo.
— Essa sensação… eu não estava preparado pra isso…
— Sensação?
Os lábios dele tremeram, meio caminho entre um colapso emocional e um peido.
Difícil saber.
— Essa… essa intenção…
— Intenção?
Ah, pronto.
Logo na minha vez.
Era para ser agora.
Aquele momento clássico em que seu rival ou mestre te encara com olhos marejados e solta um “Você… você é incrível!”. Ou, se for mais raiz, um “Carai, que poderzão, hein.”
Porque é óbvio que ia cair na velha desconstrução do protagonista. Em vez de um momento foda, ganhei um bug e um silêncio que parecia esperar alguém tossir no fundo só pra quebrar o clima.
— Veja…
— Ver?
O espertão, com a cara de quem tentou se meter com o capeta e saiu com a moral toda estilhaçada, apontou pra mim como quem revela o final de um filme que todo mundo já sabe.
— Veja à sua volta.
Aí eu olhei.
Claro, né.
Vai que eu tava flutuando de novo ou com umas asas agora, né?
Mas não.
Lá estava a tal coisa.
A minha aura — ou sei lá, qualquer nome esotérico que inventaram por aí — se retorcia no ar, igual uma fumaça pesada em festa de gente maluca.
Nipe as que ia em BH.
Parecia um veneno, desesperado para sair do frasco.
No caso… meu frasco.
— …que viagem.
Era distorção pura. Tipo fumaça saindo de uma câmara de cremação direto pro inferno. Uma dezena… não, centenas de caveiras, com olhos vazios que nem promessas de político, surgindo em espiral.
Mortos famintos.
Cada um mais desesperado que o outro, se espremendo, empurrando, brigando por espaço pra sussurrar segredos que até o capeta teria medo de ouvir.
Primeiro…
Silêncio.
Nada.
Senti que tinha sorte… ou tava surdo.
O terror me pegou igual um gole de café gelado às três da manhã — inesperado, amargo e impossível de largar. Era cena de filme de terror de primeira, daquelas que você assiste sozinho e depois dorme de luz acesa.
Que cagaço.
Senti um peso no peito.
Como um soco sem aviso.
As mãos tremendo e aquele frio na barriga, como se algo dentro de mim tivesse acordado… e não era amigável.
— Que diabos…
E então, travei.
Geral, corpo, mente, dignidade — tudo deu tela azul.
— O que foi, garoto?
Estranhou, claro. Mas não tirou os olhos de mim, como se qualquer movimento errado fosse fazer explodir a bomba atômica espiritual que eu tinha virado.
E as caveiras? Continuavam ali. Mexendo o que restava de um maxilar, sem músculo, pele ou qualquer noção de bom gosto.
Sussurravam.
Baixo, mas alto o suficiente pra rasgar o silêncio.
Como velhas fofoqueiras.
E chamavam meu nome. Todos eles. Todos os que me marcaram, como se eu fosse um defeito na prateleira.
Cael.
Senhor.
Anomalia.
Fracasso.
Ou será que esses eram só os nomes que eu criei, pra deixar a autodepreciação ainda mais amarga?
Que desgraça…
— Você tá ouvindo isso?
Perguntei, com a voz já trincada.
Não sabia se queria ouvir um “sim” ou um “não”.
Então engoli seco.
Uma esperança, quase uma aposta desesperada pela minha sanidade.
Será que eu tava louco ou não? A dúvida cortava minha mente como o golpe de um facão cego.
O carecão — se é que posso chamar de careca — apenas balançou a cabeça, sem pressa nenhuma.
Como quem já viu de tudo e só estava esperando a próxima bagunça. E no meu caso, adivinha?
Achou! Eu!
— O que exatamente?
Eu quase gritei a resposta, mas segurei.
— Esses sussurros…
E me olhou, mas não era só olhar. Era aquele olhar de quem já sabia que você tá prestes a perder a cabeça, mas vai te deixar dar mais um passo pro abismo antes de dar uma mãozinha.
O que não sabia… é que a forma como via minha aura era completamente diferente da minha visão.
E, por um segundo, eu realmente pensei que fosse uma alucinação, um truque da minha própria mente desgovernada.
Já vi vultos antes… quando morava na terra, sabe?
Aquela sensação de estar vendo algo fora de lugar, algo que não devia estar ali.
— …Só você pode ver a intenção por trás da própria intenção. Eu só posso ver o que eu acho que é… minha análise não permite ver as coisas além de sua forma visual. E me limito a sentir vibrações quantitativas. Qualitativas, quando há uma expressão, uma emanação, são para leituras além do óbvio!
Ele falou como se tivesse me dado a chave do universo, só que eu estava sem o manual.
Entendia nada… Qualitativas? Quantitativas?
O cara parecia que tinha acabado de sair de uma reunião sobre produtividade.
Como assim, cara? Eu só queria saber o que tava acontecendo.
— Poxa…
Ainda bem, né?
Porque, convenhamos, se fosse fácil entender tudo, a vida seria só uma chatice sem graça.
— Bem, o que… sussurram?
— Morte… morte… Falei morte?
— Sinistro…
Sério? Essa foi sua única reação? Morte, cara, não é nem um pouco normal pra ser tratada assim! Não é tipo “ah, a geladeira tá vazia”, porra!
— Caralho — deixo escapar, sem querer. — Só ouço desgraça… falam de morte, nomes, e você fica aí falando desse jeito? Ainda tá em choque? — quase sorri, aquele deboche de sempre, como se nada fosse mais do que uma piada sem graça.
Mas… de repente, eu percebo tarde demais onde a tal expressão foi parar.
Que porra era aquela?
A muralha — a tal muralha que parecia tocar as nuvens — estava… se desintegrando? Como se alguma força invisível estivesse corroendo tudo, pedaço por pedaço, criando um buraco que só aumentava. Era como ver uma construção imensa derretendo em ácido, cada segundo mais devastador.
— O que tá acontecendo ali? Fui eu?
Foi aí que ele também percebeu.
Se virou, como se tivesse acordado de um pesadelo.
— O que você fez…
As chamas púrpuras infestavam a parede à frente — mas não queimavam. Não, não eram chamas comuns. Elas serpenteavam como uma praga, roçando a matéria, devorando tudo o que ousavam tocar.
Era fogo sem calor ou crepitar.
Era o fim, pintado em tons que nem o mundo teria nome pra descrever.
Fui poético… até demais, na real.
— Eu? Ehr… não foi minha expressão? Pô, não tem pedreiros espirituais por aqui, não?
— Não… — quase um sussurro trágico, como se tivesse perdido o papel principal de uma novela das oito.
— Acha que o patrão vai brigar?
— Isso é terrível! Terrível! — Colocando as mãos na cabeça, como se tivesse no meio de um apocalipse… Que papelão.
As palavras caíram como tijolos, e o semblante dele mudou na hora — de espectador a fiscal do caos que eu claramente acabara de causar.
— Você falhou na propagação e na percepção imediata… — Quase teve trilha sonora dramática. — Mas o efeito… — apontou com o queixo, porque erguer o dedo já seria pedir esforço demais — tá comendo até os muros. Esses muros… sério?
Parecia fogo em papel.
E lá estava eu, no centro do mais novo desastre, cercado por destruição e mais julgamentos passivo-agressivos do carecão.
— E o que tem de impressionante nisso? — cruzei os braços, com o desdém de quem acabou de ser promovido de traíra espiritual pra marreta com ego. — Virei nível parede agora? Ou sou tipo um demolidor premium?
— O problema… — começou com aquele olhar. O mesmo que minha mãe usava quando eu errava no açúcar do café — é que essas barreiras foram feitas pra segurar a guerra de dois mil anos atrás. Deuses tentaram invadir… e falharam! Mas você… você…
Me encarava como quem olha pra um micro-ondas ligado sozinho: não sabia se era um milagre ou um alerta de possessão.
— E você… — puxou o ar, já arrependido da existência — está conseguindo corroê-las… sem nem tentar!
— Isso é muito perigoso.
Pra você.
Pra todo mundo!
Apertou os punhos como quem segura um chilique… ou evita um colapso existencial completo.
— Você é um perigo!
Tá…
Eu era.
E posso dizer, com toda propriedade:
Me fudi bonito.
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