É… Asael surtou.

    De novo.

    E, como todo bom ser místico com complexo de salvador e TOC por ordem e dever, decidiu convocar uma reunião.

    Aquela tradicional, anual, quase digna de virar feriado no calendário cósmico dos seres sobrenaturais.

    Vieram os guardiões internos — pontuais e obedientes como labradores bem treinados — e alguns externos, com aquela cara de quem foi arrancado da rede no meio da soneca.

    Aliás, só achar esses forasteiros fora das muralhas já é praticamente um jogo de RPG com nível de dificuldade insana.

    Dezessete no total. Todos desfilando seus uniformes impecáveis, com o brasão do Infinito estampado no peito.

    “Servidão eterna e dever com o equilíbrio”, era o lema.

    Bonito, né?

    Quase inspirador.

    Se você ignorar o autoritarismo.

    Tinha de tudo ali: veteranos com milênios nas costas e a expressão blasé de quem viu o apocalipse bater na porta e só trancou com o trinco; e novatos com aquele brilho nos olhos, cheios de fé juvenil, achando que vão fazer a diferença.

    Fofo.

    Ingênuo, mas fofo.

    Todos igualmente raros como diamantes.

    A taxa de natalidade entre eles? Um sobrevivente a cada cem tentativas.

    Isso se a mana interna da mãe não fritar o feto no processo…

    Trágico.

    Brutal.

    Como tudo que envolve o Intermédio.

    Quarenta cadeiras. Menos da metade ocupada.

    Mas não se engane — isso aqui é considerado lotado.

    Sério, fazia mais de um século que não se via tanta bunda celestial sentada no mesmo recinto.

    E no epicentro dessa gloriosa bagunça institucional? Ele.

    Eliyah.

    Sentado como quem foi promovido a gerente de caos contra a própria vontade, encarando os dois lados da balança com aquele olhar morto de quem trocaria tudo por uma rede, um chá e o silêncio de um abismo.

    Vestia o manto dos mantos — branco, com mangas douradas que gritavam “importância”.

    A clássica veste cerimonial da elite dos guardiões.

    Odiava aquilo. Sério.

    Odiava cada saudação cerimonial decorada com a empolgação de um atendente de telemarketing, cada discurso inflamado sobre o tal “equilíbrio dos quatro mundos”, como se palavras bonitas fossem resolver crateras dimensionais.

    E as reuniões?

    Pareciam mais um teatro sem roteiro do que qualquer tentativa real de consertar o caos.

    Às vezes, o problema até era digno de aplausos. Outras vezes… dava vontade de perguntar “sério que paramos tudo por essa besteira?”

    — Que que foi agora?

    Soltou, finalmente. Um convite disfarçado de pergunta, só pra permitir que alguém ousasse falar alguma coisa.

    E lá estava Cael, novamente réu.

    Pálido. Preocupado. Com aquela expressão de estagiário prestes a ser demitido… ou executado. Difícil dizer.

    Se continuar assim, vou pedir um cartão fidelidade para tribunais…

    E não era como o tribunal cósmico que encarou no dia anterior — aquele até parecia organizado.

    Aqui, a vibe era mais… máfia com tendências homicidas.

    Todo mundo parecia ao mesmo tempo familiar demais… e perigosamente pronto pra te apagar com um olhar.

    — Senhor…

    Asael se ajoelhou com a solenidade de quem carrega o peso do mundo nas costas.

    — Trago notícias ruins…

    Olhou pro jovem como quem entrega uma bomba.

    Mas antes que Cael pudesse abrir a boca (ou fugir, o que fosse mais sensato), uma voz cortou o ar:

    — …Então essa é a anomalia?

    Veio de um sujeito de cabelos negros, lisos e longos, que escorriam pelas costas como se tivesse acabado de sair de um comercial de xampu.

    O olhar? De quem acabou de pisar numa barata… desprezível.

    — …Interessante, não? — murmurou outro, claramente mais pirado que o resto da sala somada. Olhos vermelhos, cabelo cinza desgrenhado e um sorriso de quem guarda aranhas de estimação – mortas, claro. — ANOMALIA!? Que título magnífico!

    — …E não só o título! — cantou uma terceira voz, doce como veneno. Uma jovem de cabelos rosados, aparência angelical e aquela aura que fazia o cérebro gritar “fofa!”, enquanto o instinto de sobrevivência berrava “CORRE!”. Era fofura e ameaça em forma de gente — O que será que ele aprontou pro Asael estar com essa cara de quem chupou um limão azedo e perdeu a fé na existência? Hmm…

    E lá estava.

    O próprio, parado. Olhos ainda cravados nele com a intensidade de um tribunal silencioso.

    Era uma daquelas regras não escritas, mas sagradas: O acusado falava primeiro. Antes de qualquer sentença. Antes até do julgamento.

    Que pessoas… mais bizarras…

    A plateia podia ser barulhenta, mas o silêncio dele pesava mais que tudo.

    — Eu…

    — Que expressão é essa, pirralho? — disparou o nojento dos cabelos compridos, afundado na cadeira com a postura relaxada de quem acha que o universo gira em torno do próprio umbigo.

    O tom? Puro desprezo.

    — Eu…

    Mas nem deu tempo de completar o pensamento.

    O outro já tinha perdido a paciência com o silêncio dramático – e com a hesitação adolescente.

    — Ele é um perigo…

    — Como, um perigo? — rebateu a rosada — Não vejo força alguma emanando dele. Nem por dentro, nem por fora… é só um… um jovem.

    Fez uma pausa, franzindo o nariz como se estivesse farejando um mistério — ou um esgoto.

    O olhar de todos agora pesava em cima dele como um julgamento coletivo. Um festival de olhos brilhando com desconfiança, interesse mórbido e, claro, aquele prazer sádico básico de ver alguém suando frio no centro do palco.

    — É tudo uma questão de intenção! — interrompeu de novo o nojento, agora com mais entusiasmo do que deveria — Ananit, você sabe muito bem!

    Ela riu.

    Sem jeito.

    Daquele jeitinho torto, incômodo, como quem esconde um plano maquiavélico atrás do batom cor-de-rosa.

    O tipo de riso que antecede um “relaxa, amor” e termina com três facadas na primeira crise de ciúmes.

    O loiro levantou a mão, a pequena discussão entre o acusador e o juri terminou ali.

    Asael suspirou.

    Marchou até a beirada da sacada como se fosse arrancar as cortinas e, no processo, a própria paciência. Puxou o tecido com tanta força que o som do rasgo ecoou como um tapa na cara do orgulho coletivo.

    — Olhem por si mesmos!

    E então todos viram.

    Lá no fim do campo de treino, além dos telhados da mega cidade, erguia-se a muralha.

    A bendita sagrada.

    Corroída.

    Apodrecendo.

    Com um rombo crescendo feito uma maldição viva, pulsando como um ferimento infeccionado no tecido daquele mundo.

    — Hehe… — tentou rir.

    Forçado.

    Fraco.

    Mais um espasmo nervoso do que qualquer outra coisa.

    Não era como se tivesse quebrado um vaso ou sujado a parede com tinta guache.

    — Eu diria que… isso aí já escapou das nossas mãos, senhor. É o Yesod dele — Voz firme, mas olhos arregalados — Imperfeito, mas capaz de tal feito…

    O loiro não respondeu. Apenas fechou a mão que antes havia levantado.

    — Cacete… — resmungou o maluco, passando a mão pelos cabelos acinzentados, como se tentasse manter o juízo preso sob os fios revoltos.

    Mas não parecia preocupado.

    Parecia… entretido.

    Como o amante do caos que sempre fora.

    E o loiro apenas observava, em silêncio.

    — Então é isso…

    Um sorriso de canto escapou-lhe, quase como um reflexo — malicioso, despreocupado.

    — Toda essa confusão por causa disso? Garoto problema…

    Asael franziu o cenho.

    — Não é só confusão. É ruptura. É transgressão. Isso não devia ser possível. Não?

    — Não?

    A palavra veio seca da boca de Elyah.

    E então seus olhos dele pousaram sobre Cael.

    Não só pousaram — atravessaram.

    Como se buscassem lá no fundo da alma uma justificativa convincente… e não tivessem encontrado nem um fiapo.

    — Ehr… não foi porque eu quis, poxa… — tentou, voz trêmula, infantil, quase patética.

    Um “poxa” desses não salvaria ninguém do apocalipse, diga-se.

    — Imagina se fosse? — devolveu o mestre, sem precisar elevar o tom. A calma na voz contrastava com o fogo nos olhos. Algo queimava ali – talvez senso de dever, talvez puro julgamento prévio… difícil dizer. Mas o recado era claro: não estava ali pra passar a mão na cabeça de ninguém.

    Piedade?

    Não havia espaço pra isso naquele salão.

    Não quando o mundo, literalmente, estava começando a ruir.

    — Me desculpe, garoto — Com a empatia de uma rocha. — Mas creio que, meu senhor… um banimento ou uma execução, por respeito às regras, seria o ideal. Não?

    — Execução…? — a palavra mal tinha deixado os lábios de Cael, e os guardiões já se moviam em uníssono.

    Como engrenagens de uma máquina celestial – bem lubrificada, bem ensaiada e perigosamente eficiente.

    Os mantos tremularam. As mãos se ergueram. Nenhuma palavra, nenhum som. Só o consenso silencioso da condenação.

    Todos, menos dois.

    A tal garota de cabelo rosa, que parecia ter saído de um conto de fadas escrito por um sádico, cruzou os braços com um “hmph!” indignado.

    — …Que desperdício! — com o tom de quem viu um brinquedo novo ser jogado fora.

    — Total! — reclamou o meio psicótico, voz estridente, como se a injustiça pessoal dele fosse mais grave que a ruína da muralha. Fez beicinho, literalmente. — Eu nem terminei de analisá-lo! Ia fazer umas dissecções gentis…

    Claramente, estava cercado de amigos.

    Mas apenas um tinha o direito do martelo final.

    A palavra que não se discute.

    O veredito que não se questiona.

    — Eliminá-lo seria… agir como os deuses. — disse o tal, voz firme como aço — A quem pertence o destino? Quem somos nós para decidir o que alguém será? Como vai agir? Que pensamento podre… arrogante… acreditar que temos esse poder!

    — Mas, senhor…

    — Não há o que fazer! — cortou de supetão, levantando-se num rompante que fez até os mais seguros endireitar a postura.

    Pisca para o acusado.

    Mas não era carinho — era sentença.

    — Anomalia… perigo… — repetiu, com certo desdém — Eu aposto que ele será mais do que isso.

    Olhou em volta, encarando cada rosto como quem desafia a sala inteira a discordar.

    — Alguém aqui… acha o contrário? Todos?

    Não era uma pergunta.

    Não era busca por consenso.

    — Certo.

    Era uma ordem com uma máscara de diplomacia.

    — Então eu serei aquele chefe que está completamente certo!

    — Você, Cael… — Apontou com teatralidade — Termine seu treino. E vamos dar um jeito na bagunça que fez! — E você… — virou-se, o dedo agora apontando para o careca mal-humorado — Vai terminar de treiná-lo. É uma ordem. E faça o favor de não me arrepender disso tudo!

    Silêncio.

    Puta que pariu…

    Quase.

    Quase.

    As mãos tremiam, como se tivesse sido abordado de viatura pela própria morte.

    Quase fui convocado pro Vasco… MALDITO CARECA! X9 dos infernos!

    O tal se ajoelhou como se estivesse pedindo perdão aos céus.

    Mordeu os lábios com tanta força que parecia prestes a se punir ali mesmo.

    — Como desejar — disse, respirando fundo, pesado, dramático, digno de novela interdimensional — Não julgo ele mal. Quero corrigir. E, se não for capaz… — olhou para as próprias mãos, como se nelas pesasse todo o destino do mundo — …renegarei meu título de guardião. É uma promessa!

    Silêncio de novo.

    Mas agora era outro tipo. Um silêncio denso, quase pegajoso, cheio de expectativa e vergonha alheia.

    O líder olhou pra ele.

    Expressão de quem viu drama demais pra uma manhã só.

    Suspiro.

    — Certo, certo! Vão trabalhar agora! — disparou, com a autoridade de quem não tem mais paciência para teatro e só quer tomar um café em paz.

    UFF…

    Um respirava a paz agridoce de saber que — contra todas as probabilidades — continuaria vivo no dia seguinte.

    O outro?

    Carregava o peso de uma guerra.

    O que era certo?

    O que era justo?

    Como se age quando o equilíbrio do mundo depende de um cara infantil e um careca arrependido?

    É… era difícil ser ele naquele instante.

    A cortina caiu.

    Fim de ato.

    Pouco importava.

    O espetáculo estava só começando.

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