Capítulo 91 - Lambendo o veneno
A escola reapareceu primeiro como som.
Ainda não vejo nada. Mas escuto o ranger das carteiras sendo arrastadas, os passos se apressando no corredor e a respiração presa de alguém tentando não ser notado. Em seguida, vem o cheiro. Ferro velho, suor seco, algo mais ácido, mais amargo. O tipo de odor que só se forma quando a pele se parte e o ar invade o corpo errado.
Eu estava no meio do pátio. O chão estava escorregadio. Meus passos reproduziam o som que o sangue emitia quando já secava em certas partes e jorrava em outras. Olhei para as minhas mãos. Elas não eram mais minhas. Os dedos estavam maiores e mais ásperos, semelhantes a garras em desenvolvimento. As unhas estavam quebradiças, com veias expostas, e meu braço vibrava como se algo interno desejasse emergir.
No entanto, o que mais me perturbava eram os olhos. Eu não os enxergava com os meus olhos. Estou apenas observando. Eu me lembrava de estar ocupando um corpo que se movia sem a minha presença.
Eles correm de mim.
Às vezes, gritam meu nome. Gritam de um jeito que parece estar chamando alguém que já não podia mais ouvi-los. E eu entendo. Eu não estava lá. Tudo me foi testemunhado. Assisti cada expressão tomada pelo desespero. Ouvi cada palavra pronunciada e silenciada para sempre. O garoto do primeiro ano escapou do meu campo de visão enquanto tentava salvar a irmã. Lembro-me do momento em que segurei sua nuca. Foi rápido. Ele nem conseguiu emitir um som completo.
Mas no sonho, o tempo se estica.
A sequência se replica, atroz, em câmera lenta. Ele abria e fechava os olhos rapidamente, buscando um ponto da realidade onde aquilo não estivesse acontecendo. Eu gostaria de fechar os meus. Ainda assim, algo em mim mantinha tudo em aberto. Fui um espelho do pavor que causei.
No fim do corredor, apareceu a professora. Ela ainda estava viva naquele momento e viu tudo. Gritou algo que nunca consegui entender muito bem — poderia ter sido uma ordem, ou apenas um som de negação, um “não” que se partiu no ar. Sua mão segurava uma régua, seu último recurso para impedir a tragédia com trinta centímetros de plástico rachado. Sei que tremia. Ficou parada por um segundo, sem saber se corria ou rezava.
Foi quando eu corri até ela.
Meus pés não faziam barulho. O chão me permitia passar feito se toda a escola se submetesse à minha presença. Ao me aproximar, não consegui enxergar seu rosto. Apenas o som. Um som que jamais esquecerei. O estalo da carne ao se abrir sob pressão.
Meus pés não faziam barulho. O chão me permitia passar feito se toda a escola se submetesse à minha presença. Ao me aproximar, não consegui enxergar seu rosto. Apenas o som. Um som que jamais esquecerei. O estalo da carne ao se abrir sob pressão.
Por um instante longo e perverso, não senti culpa. Senti outra coisa. Uma vibração oca no peito. O mundo parecia pequeno demais, frágil demais.
Eu era tudo o que eles temiam. E adorei ser temido.
Não fui apenas uma vítima daquele dia. Também não fui apenas um boneco nas mãos de algo maior. Havia uma parte de mim que gostou daquilo, mesmo que eu não tivesse certeza se era o melhor caminho a ser seguido. Não do sangue, não da dor, mas do que lhe foi concomitante.
A ausência de limites. A certeza crua de que ninguém ali poderia me deter. Que cada passo meu representava uma sentença. E que, por mais que gritassem, por mais que corressem, todos sabiam o quanto era tarde demais.
Essa lembrança queimava, mas não cicatrizava. Era uma ferida que sangrava por dentro, fora da vista de todos. Mesmo assim, eu a revivia como se precisasse lamber o próprio veneno justamente para lembrar que ainda estava vivo. Com frequência mórbida, eu me perguntava se toda a culpa cabia à possessão. Se eu fui mesmo usado, manipulado, arrastado contra a minha vontade – ou se parte de mim, uma parte obscura e adormecida, já almejava aquele tipo de poder antes mesmo de tê-lo.
Porque aquilo que me invadiu… encontrou espaço.
E eu não soube expulsá-lo.
A escola em ruínas no sonho não tinha aspecto de pesadelo. Era como um altar. Um lugar consagrado à destruição. As paredes rachadas contavam minha história. Todas as manchas no piso eram um testemunho do que eu havia feito. E, no fundo, eu sabia quão viva estava a energia daquela tragédia em mim, como um incêndio mantido debaixo da pele. Dormia, mas não estava morto.
E então ela surgiu.
Sarah.
A lembrança de seu rosto começou como um contorno, um vulto branco entre os corpos. Como se estivesse à margem do que aconteceu, mas ainda assim presente. Olhos calmos demais para o caos. Voz doce demais para quem sabia o que provocava.
No meio de toda a confusão, houve um momento em que nossos olhos se encontraram. Ela não estava com medo. Ela estava satisfeita. E por alguma razão que não compreendia, isso me atravessava com mais violência do que qualquer grito de socorro daquela manhã.
Foi um sorriso cruel. Quase carinhoso.
O rosto dela se aproximou do meu.
Seus olhos brilhavam com aquele veneno doce que só os predadores conhecem, e quando encostou os lábios no meu queixo, foi como se uma agulha entrasse na carne: lenta, firme, prazerosa e odiosa ao mesmo tempo. O toque não era feito de carne, era feito de vontade. De domínio. Um gesto envolto em promessas que lambiam a pele.
Sarah se agarrou a mim como se eu fosse dela desde sempre. Uma fome que ardia feito febre. Suas mãos deslizavam pela minha pele como serpentes, deixando um rastro de energia que pulsava por dentro, acordando cada parte adormecida daquilo que eu era… ou do que ela queria que eu fosse.
O cheiro dela doce, como sangue fresco derramado sobre flores mortas. Um aroma que dizia perigo, mas que o corpo aceitava com entrega doentia.
Meu coração batia forte, não por amor, mas por desespero. Por saber que, de algum modo, ela estava dentro. E que eu a deixava entrar. Sempre deixava.
E então…
Tudo queimou. Tudo ruiu.
O som do metal puxando minha carne arrancou-me dali. Meus olhos se abriram rasgando o escuro. O quarto estava frio. As paredes cinzentas, estéreis, imóveis. O teto, duro, sem vida. Não havia mais sangue, nem suspiro, nem sombra de desejo. Apenas correntes – frias, espessas, cravadas nas paredes como sentença.
Meus punhos estavam presos. Aço nos pulsos. Dores nos ombros. A garganta seca. Ela sumiu, mas me deixou mais preso do que as correntes.
O gosto dela ainda escorria pela minha língua feito ferrugem quente, uma lembrança cravada a fogo que não saía nem com ódio. Foi esse gosto, esse veneno morno, que despertou minha fúria, inundando meu corpo como um dilúvio represado, movido por algo primitivo, anterior ao nome, à culpa, ao arrependimento — algo que se contorcia por dentro e agora gritava por espaço, por ar, por carne.
— Hah… Aaaaahhhh!!
O meu grito rompeu como o estouro de uma ruptura interna, um rasgo vindo das vísceras, daquilo que restava da minha alma ou do que já fora arrancado e cuspido no inferno. Puxei as correntes como se fossem de madeira podre, os músculos como se fossem cordas prestes a arrebentar. Senti o ferro cravando, o sangue quente escorrendo pelo meu antebraço, a pele rasgando impiedosamente. E ainda assim puxei, como se pudesse rebentar o mundo junto com aquelas algemas.
O que se ouvia era grotesco, uma mistura de carne se rompendo, metal gritando e minha respiração arfando feito animal acuado. Eu já não sentia medo, não havia razão, só a necessidade de quebrar, de destruir aquilo que me prendia, aquilo que me fazia lembrar que eu ainda era um prisioneiro — dela, de mim, do que quer que estivesse me espreitando por dentro.
Minhas mãos tremiam, rasgadas, roxas, livres e quando olhei para elas, sujas de mim mesmo, soube que não tinha acabado.
Eu sabia que desmaiaria se ficasse de pé. Era difícil pensar. Minha cabeça estava cheia de cacos. A raiva ainda se esgueirava por baixo da pele, mas já não era fúria, e sim exaustão, a sensação de ter brigado com o mundo inteiro e perdido por pontos. Olhar para as próprias mãos e não se reconhecer… não era um pensamento animador. Eu era apenas um garoto. Dezessete anos. Não deveria saber tão bem o gosto do próprio sangue. Não deveria estar aqui.
A trava da porta girou com um estalo seco, e meu corpo enrijeceu instintivamente. Mesmo sem forças para lutar, meu corpo se preparou — um velho reflexo. A porta se abriu devagar.
Um passo adentrou. Depois, outro. Eu virei o rosto dificultosamente, com os olhos ardendo.
Era Raven.
Ela estava do mesmo jeito de sempre. Talvez fosse o jeito como ela me olhou. Não era como se eu fosse um problema ou um inimigo. Também não foi pena. Achei estranho. Tinha a sensação de que ela estava vendo alguém se afogar e não sabia se jogava a corda ou deixava o mar engolir.
— Você não devia ter feito isso.
Engoli em seco. Não respondi.
Raven caminhou até mim. Quando parou perto, me abaixei um pouco, como reflexo de proteção, mas ela só olhou as correntes destruídas e depois minhas mãos, ainda trêmulas.
— Merda, Krynt…
Ela pegou um pano da lateral do cinto e se ajoelhou. Mesmo sabendo que era inútil, tentei afastar as mãos, mas ela segurou firme.
— Fica quieto. — disse, e começou a limpar o sangue.
A dor me fez ranger os dentes. O pano encostava nas feridas como lixa quente. Mas não gritei. Só respirei fundo e deixei.
Ela inclinou o tronco, aproximando-se até o cheiro de antisséptico que carregava nos dedos alcançar meu nariz. O pano, agora úmido de algum líquido que ardia, deslizou devagar pelas feridas abertas.
— Ainda lateja? — murmurou, os olhos concentrados nas marcas que cobriam meu punho como se procurasse algo além do corte, além da pele.
— Como se tivesse vidro dentro. — Minha voz saiu seca, sentindo o corpo ainda tenso.
Sem me olhar nos olhos, assentiu levemente. Rasgou uma gaze com os dentes e começou a enrolá-la ao redor do ferimento. O pano, já manchado, se acumulava ao lado, junto ao cheiro de sangue fresco e metal oxidado.
O pano molhado encostou e foi como sal em nervo exposto. O que escapou de mim não foi um grito, era um rosnado surdo, com os dentes cerrados até os maxilares doerem. Ela não se comoveu e continuou.
— É a segunda vez que te vejo fazendo isso. Desde quando você virou enfermeira? — murmurei entre os dentes, tentando abafar a dor com sarcasmo.
— Eu já fui Médica de Campo.
Os seus dedos se enroscaram nas faixas. Passou o pano devagar pelos sulcos das amarras, pressionando de leve para estancar o sangue.
— Quanto tempo eu fiquei… assim?
— Dois dias. — disse, baixando o olhar para um ponto em meu antebraço onde a pele estava mais dilacerada. — Desde o interrogatório. Não puderam e não podemos te soltar. Mesmo sedado, a atividade neural do Mephisto não cessou até agora. Nenhuma droga conseguiu bloquear completamente a conexão, por isso, vai ficar aqui por mais um tempo.
— E ele?
Esta parou por um segundo. Foi sutil, quase impossível de notar – mas eu vi. Notei o modo como os dedos afrouxaram e o queixo que se ergueu milímetros antes de responder.
— Deve estar em algum lugar. Longe daqui.
— Isso não me diz nada.
Raven torceu o pano com força, espremendo o sangue nele antes de voltar ao curativo.
— Não precisa saber. Ele está vivo, e isso já é mais do que muita gente consegue dizer depois de ser possuído.
— Engraçado… — disse, olhando o teto — Pensei que ele fosse igual a mim.
— Talvez pior. — respondeu sem desviar o foco da mão ensanguentada que envolvia.
O silêncio pesou por alguns instantes. O único som era o pano esfregando minha pele, e meu peito subindo e descendo devagar.
— Então é isso? Vocês me deixaram ser tomado… só pra ver o que ia acontecer?
Ela parou de novo. Dessa vez não tentou disfarçar. Os olhos vieram até os meus. Escuros. Firmes.
— Acha que foi simples assim?
— Eu não acho. Eu vi o que vocês fizeram. Eu fui uma experiência desde o começo.
— Não é verdade. — A frase saiu rápida, como se precisasse se antecipar ao que vinha. — Você foi uma escolha.
— Uma escolha forçada.
Raven fez o último laço com a faixa ao redor do meu pulso e se afastou um pouco, os joelhos ainda no chão. Pegou fôlego como quem está prestes a mergulhar num poço fundo demais.
— Ninguém força alguém como você. A gente só abre a porta… e vê o que entra.
Eu a encarei. Ela não me olhava mais diretamente, mexia no pano com os dedos, enrolando e desenrolando como se o sangue ali ainda tivesse algo a dizer. O silêncio durou. Como se esperasse que eu dissesse algo — ou que não dissesse nada.
— Por que tá dizendo isso agora?
Ela ergueu os olhos, devagar. Tinha algo neles que eu não sabia ler. Um tipo de foco que não era de raiva, nem de pena, mas algo além — interesse, talvez. Curiosidade demais pra ser apenas profissional.
— Porque eu vi você.
— O quê?
— Bem, Mikael viu algo em você primeiro. Algo que nem ele conseguiu me explicar direito. E isso é raro. Quando Mikael aposta em alguém, é porque viu potencial. E não falo de força bruta. Nem da… coisa dentro de você. É mais do que isso. É o que fica quando a coisa cala.
— E você? O que você vê?
Antes de responder, andou alguns passos até o canto da sala, ficou de costas por um segundo, como se estivesse decidindo se deveria ou não falar. Quando virou, havia um peso nos ombros, mas os olhos tinham clareza.
— Eu vejo alguém que está tentando entender o próprio inferno, e eu quero entender junto. Não pra controlar você. Não como eles querem. — Fez uma pausa. — Eu quero ver o que acontece quando você encara isso de frente, sem as rédeas. Porque se você conseguir… talvez possa fazer o que ninguém mais conseguiu.
— Usar a coisa dentro de mim?
— Não. Controlá-la sem se perder. Usar não é o problema. Todo mundo usa algo. Mas manter o próprio rosto no espelho quando isso acontece… essa é a parte difícil.
Me recostei na parede. A dor ainda estava lá, nas mãos, nos ombros, mas algo no jeito dela me deixava alerta. Como se houvesse mais perguntas que respostas. Mais intenções que palavras.
— Não, não quer só entender. Tem algo por trás disso.
Raven sorriu. Um sorriso que não era feliz. Porém, um discreto, quase intransponível elevar do canto do lábio, qual quem percebeu que foi surpreendido, contudo não julgou incorreto.
— Talvez. — disse. — Mas só porque você também quer saber. E porque alguém vai tentar te quebrar de novo. A diferença é se você vai estar sozinho quando isso acontecer.
Ela se afastou apenas um passo, mas foi o suficiente para eu sentir que algo mudara. A maneira como ela me olhava… um mero toque dos dedos para medir a distância entre a verdade e a manipulação.
— Isso é uma ameaça?
— É um aviso. — respondeu, inclinando a cabeça, os olhos semicerrados como se buscasse alguma rachadura no meu rosto. — A diferença é bem sutil, mas a intenção importa.
Me mantive quieto, mas havia uma tensão nos meus ombros. Raven sentiu. Claro que sentiu. Tudo nela era calibrado para sentir onde doía mais.
— Não confia em mim, e você tá certo em não confiar. Mas confia menos ainda em quem não olha você nos olhos. E eu olho. Mesmo sabendo o que tá aí dentro.
Deu mais um passo. A sombra dela se projetou sobre mim. Não era grande nem agressiva. Tinha peso. Eu a sentia carregando algo que ninguém mais ousava nomear.
— Você tem noção do que é ser olhado por cima? — perguntou, a voz baixa, lenta, como se arrastasse cada palavra. — Desde criança, eu vi gente grande fingindo que via monstros. E quando viam de verdade, corriam. Você… você é o monstro que ficou. E ainda assim tem medo de si.
Eu engoli em seco.
— Se sou um monstro, por que ainda tá aqui?
Se agachou de novo só pra me encarar de perto. Os olhos dela estavam escuros. Não pela cor — mas pelo que escondiam.
— Porque monstros reconhecem monstros. E eu gosto de saber o que o meu pode fazer antes de soltá-lo no mundo.
— Tá me estudando? É isso?
— Tô te preparando.
— Pra quê?
— Pra quando eles pararem de fingir que você é só um erro. Porque vão parar. E quando isso acontecer, ou você vira o que eles temem… ou morre tentando provar que ainda é humano.
Ela passou a mão na lateral do meu rosto. O gesto era carinhoso, fez meu coração gelar.
— Eu decido muito pouca coisa aqui. — disse, e se levantou.
Antes que saísse, perguntei:
— Isso te assusta?
Ela parou com a mão na maçaneta. Ficou assim por um segundo, como se revivesse alguma lembrança que preferia não ter.
— Isso me atrai.
A porta se fechou, mas dentro de mim tudo ainda soava alto, pulsante, inquieto. Eu não sabia no que estava me tornando. Mas ela já tinha aceitado.
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