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    Notas de Aviso

    Boa tarde, meus amados. Venho aqui anunciar que Shadow, o Ouriço é um fi... que Fagulha vai entrar em um curto hiato por questões de força maior...

    “O começo de muitas dúvidas dolorosas não deveria depender de sangue alheio.”

    Izandi, a Oniromante

    — Aqui, Mestre de Armas! — avisou um dos homens que o ajudavam. Uma companhia subira as montanhas, trazendo consigo carruagens cheias de caixas pesadas. Àquela hora da tarde, quando o frio ainda não tinha ficado insuportável, usava para treinar os alunos em uma sessão de combate mais aquecido. Todos contra mim, era o lema da aula, embora Ereken só tivesse dito isso uma vez. Todavia, a chegada dos comerciantes fê-lo mudar de ideia. Pediu aos outros soldados que deixassem só seus alunos para descarregar toda a carga.

    Eles agora o davam olhos letais. Estavam precisando de cinco por caixote, e o local de armazenamento não era nada senão as muralhas.

    — Estão ganhando energia e músculos com isso — os disse, agarrando a letárgica mão esquerda. — Tive que fazer coisas muito piores para chegar onde cheguei. Acreditem se quiserem.

    Um dos alunos cuspiu no chão, mas sua saliva congelou antes de tocar o tapete branco. “Fazer o quê?” Foi até uma das carroças e ergueu um dos caixotes; rispidamente entendeu o sofrimento deles, ao menos em partes. Eram caixotes de carvalho do tamanho de um potro bem mamado, mas pesavam como um cavalo, mas não lhe dariam tanto trabalho — se a mão esquerda quisesse funcionar, não dariam nenhum.

    Ereken abaixou as pernas, escorreu a mão até o centro do caixote e a jogou para cima. O peso fez os músculos do ombro direito doerem, porém fora mais inteligente e pôs a força nas pernas. Elas aguentavam bem mais, porém sabia que isso não duraria para sempre; disparou.

    Carregou um caixote inteiro sozinho, quase saltando por cima da cabeça de alunos cansados. Seu pé quase escorregou em um degrau congelado, mas ele recuperou a posição jogando o corpo e a perna a frente, e, com uma passada, correu com ainda mais força até a curva entrada para as escadarias. Reposicionou o peso na vertical, agarrou-o com o antebraço e braço como um anzol e segurou a caixa por baixo, e saltou degraus.

    O céu alaranjado com nuvens cinzas esparsas o esperavam lá. Deixou o caixote onde um greatês louro apontava, e seu rosto era de tamanho descrédito que suava mesmo com a brisa nada módico da Fortaleza-Montanha, e o filho do greatês coçou sua cabeleira de um louro mais fraco.

    Tinha um machado nas mãos, mas o soltou e tentou fazer o que o Mestre fizera na frente de todos eles. O rapaz tinha quase uma toesa de tamanho e seus músculos delinearam-se mesmo com as pelagens grossas de urso-leão, e pusera força nas pernas, e mesmo assim não conseguiu jogar o caixote o suficiente para por suas mãos debaixo.

    Ahg! — arfou, esfregando o braço na testa. Ereken emitiu uma risada muda e olhou para seus alunos.

    — Não é tão difícil — cruzou os braços musculosos, tentando abrir e fechar sua mão esquerda. — Hoje precisam de cinco, amanhã, seis, mas depois serão quatro. — Caminhou até a ameia interna, observando as carroças vazias. Fez um riso diabólico. “Amanhã, não conseguirão segurar um espadim como o de minha filha.” — Agora vão descansar. Estão liberados.

    O riso deixou os rapazes aturdidos. Eram poucos agora. Assim que as notícias do final do inverno haviam chegado lá em cima, por mais um entregador de cartas, que dera muita sorte de encontrar cartas para entregar, vários dos mais jovens clicaram a língua e coçaram suas barbas recém-nascidas. Ceire Joran Cyreck pagou ao mensageiro com uma garrafa de vinho da Árvore Vermelha e um lírio de ouro.

    No dia seguinte, vários dos mais jovens se reuniram ao redor do cavalariço, cobrando seus cavalos de volta. Ereken quis pegá-los pelo pescoço e os jogar no pátio. Isso é traição, os avisou, traição e deserção. Vocês tem uma missão aqui. Um dos rapazes, um de fiapos ruivos, cabelo andrajoso e olhos ametistas, como os do cavaleiro que cultivara rubor no rosto da sua filha, grunhiu de susto e mordeu o lábio com tanta força que sangrou ao ver o Mestre de Armas tocar a espada à cintura.

    — Deixe-os, barão Zwaarkind — falara a austera voz do Ceire. O homem grisalho aproximou-se com sua armadura retinindo o som dos metais, pouco abafados pela capa e gibão. Suas olheiras estavam ainda maiores do que de costume. — São rapazes, ainda. — Levou a mão para dentro do gibão; retirou uma resma de cartas. — Serão mensageiros. Entreguem isso em Porto-Bastilha e no Sempre-Verde, aos seus lordes. — Pôs uma moeda brilhante no joelho do garoto. — Ao terminarem, este lugar frio ainda estará de portas abertas. Sempre estará. Agora, vão.

    Não entendia isso. “Eles não voltarão”, tinha certeza. “Estamos perdendo espadas. Perdemos vinte, só nesse dia.” Era isso as “coisas estranhas” que deveria notificar seu sire? Precisamos de mais armas, o diria? O Ducado nunca teve muitas, não ao redor do Olho que Chora. Há monstros na floresta, lembrou-se da esposa. Mas e fora? “Sire Theolor precisa mais delas do que nós.”

    Afinal, o que fazia além de treinar homens que iam embora? A Fortaleza sequer parecia um lugar para ser atacado. Era acima de tudo… Atacá-la seria perda desnecessária de vidas. Muitos morreriam. Quantas centenas teriam de partir somente para derrubar as portas, se poderiam ser fechadas?

    — Mestre de Armas — chamou o pai greatês, de cócoras e com um machado, que já formava uma crosta congelada com farpas —, poderia ajudar aqui? Este velho está velho demais para puxar essas belezuras. Minhas costas doem!

    — Eu disse — bramiu o filho, erguendo o machado para quebrar a caixa — que nós deveríamos rever se tínhamos pego todas as coisas — e desceu o machado entre o encontro de duas faces da caixa. Ereken percebeu o forte sotaque na voz deles, um que achou ser de Greatedann. Ficara curioso; Bert havia lhe dito que o sotaque de um greatês era como se pronunciassem as vogais em dobro. — Se trouxéssemos a porcaria da liteira, teria sido muito mais fácil!

    — De onde são? — questionou o barão, aproximando-se. Uma brisa violenta varreu flocos de grama e os disparou pelo barbacã.

    — Greatedann — respondeu o pai. — Orgeld MeiLhindas. O rapaz se chama Rolk, meu filho.

    — Prazer — falou o filho, cuja testa alcançava o ombro de Ereken, estendendo a mão suja de madeira.

    — Ereken Zwaarkind, e o prazer é meu. — Ereken apertou-a e pôs-se a ajudar.

    Os dois eram quase uma réplica um do outro. Enquanto Orgeld tinha cabelos loiros beirando o grisalho e traços profundos de expressão no rosto retinto de calidez, sujo com manchas de pequenas queimaduras e pós presos à pele, o filho tinha a cor de areia do cabelo brilhante sob o pouco sol que transpassava as nuvens, ombros espadaúdos e olhos meio abertos de alguém acostumado com a caça. A imagem de um ao lado do outro fez Ereken contemplar em silêncio com olhos meio fechados.

     “Meu filho será mais parecido comigo ou com minha esposa?”, perguntou-se. Talvez fosse bom que herdasse mais de Willmina dessa vez. Ela era mais sábia. Saberia lidar com situações que não conseguia. Fora assim desde que a viu pela primeira vez, no Grande Salão, ao lado do Lobo Branco, vestida em verde e com uma esmeralda no pescoço

    — Aqui? — pigarrou Orgeld. — Aqui me parece um bom lugar para instalarmos o primeiro. O que acha da vista, senhor Zwaarkind?

    — Bem… — atentou-se. Haviam levado os caixotes mais à esquerda, à grande muralha da entrada. Uma queda de dezenas de toesas rumava à branquidão e à curta estrada antes da ponte. Era amplo; as montanhas abaixo eram bem visíveis, talvez mais seriam se não houvesse névoa surrupiando e obstruindo a poucas dezenas de toesas abaixo. — É uma boa vista?

    — Arqueiros ficariam bem aqui? — questionou Orgeld, e Rolk só sentou em cima de uma das caixas. — Não entendo dessas coisas.

    — Ficariam, sim. As ameias são boas e altas, além de possuir visão de toda a frente da Fortaleza.

    Rolk ergueu-se de chofre.

    — Então vai servir.

    Com o machado, deu uma última bordoada contra a caixa. Frestas saíram quando o metal se fincou, e ao movê-lo, a tampa de madeira soltou os pregos e se levantou. Rodeada de feno, uma grande peça oval de aço enegrecido fedia à pólvora. Uma grande boca aberta esperava por pólvora e ansiava para disparar fogo. Ao redor dela, hastes menores de madeira e ferro jaziam aconchegadas; possuíam quase metade de toesa, magra e fina até tornar-se negra, de metal, com uma abertura no fina tal qual um mindinho. Havia também caixinhas de pólvora fresca.

    — Pode se aproximar, velhote — falou Rolk a Ereken, que não tinha nenhum pouco de cara velho. — Elas não atiram sozinhas. Quer experimentar?

    — Não fale isso para qualquer um, filho. — O mais velho se levantou, pegando a coisa e pondo de volta no caixote. Estava talhado com um brasão também, outro que Ereken não reconhecia. — Viemos instalar os canhões e ensinar alguns a usarem essas coisinhas. — Orgeld estralou o pescoço, ignorando o olhar curioso de Ereken. — Um por dia, se os Deuses quiserem, e daí vamos embora…

    “Isso definitivamente é uma das coisas estranhas.”

    — Então os deixarei a sós, creio — respondeu Ereken. Os dois não pareciam precisar de ajuda para montar os canhões, e não pediram por ajuda do ocre.

    A paisagem parecia inquieta, olhou; paralisada demais. Observava pássaros surgindo no horizonte, retornando para às árvores que logo floresceriam milhas abaixo nas grandes colinas e vastas planícies e pradarias do Sempre-Verde e das terras dos lestinos. Embora a névoa eterna do pico das montanhas envolvesse e escondesse muito abaixo, Ereken conseguia notar animais grandes movendo-se entre os pinheiros próximos.

    “As ovelhas comedoras de veneno de Thirtu?”, pensou. Não vira a garota direito desde que arremessara uma faca em direção da sua cabeça. Ainda não cria plenamente que fora um inocente ataque, todavia, a donzela de cabelo azulado cheirava à inocência cruel e ânimo. Mas, dando atenção, da floresta após a ravina ele via pequenos montões de salpicos brancos sendo disparados ao alto.

    Prestou atenção nos arredores antes de inchar seus olhos; num instante, a sensação de ver além do alcance brincou com os outros sentidos do seu corpo enquanto a visão dominava. Era um caminho reto, quase um disparate. “Urso brigando?”, pensou, mas eliminou a ideia com mais um segundo de esquadrinhamento. Era grande demais.

    Há monstros na floresta, lembrou-se. “As Lentes devem conseguir ver melhor.” Dos quase dois meses que estava na Fortaleza, as torres-observatório eram as únicas onde ainda não tinha ido. Fora nas forjas para afiar a espada nova, nos estábulos por ter gostado do seu animal, e ganhou até mesmo um quarto individual.

    Estendiam-se ao alto como lanças mirando na garganta das nuvens. Tijolos negros e grossos arranhados brilhavam das sendas luzes do anoitecer, medrados altivos para formarem as mais largas torres da Fortaleza, e quase as mais altas. Seu topo possuía um trejeito que lembrava o Mestra a cabeça de uma doninha, porém doninhas não tinham olhos saltando das órbitas por mais de três toesas.

    A escadaria até elas era ainda mais espiral e ingrime que as das irmãs de subida. Ereken sentiu um calafrio morder sua nuca. Imaginou litros de óleo fervente escorrendo de cima e flechas encandecidas de fogo — péssimas memórias reavivaram. “Costald”, pensara. Meneou a cabeça.

    Portas de madeira mal estufada com pelagem de urso separava-o de dentro, e assim que abriu, alguns dos jovens que vieram do Ducado estavam deitados no chão ou em pelagens, dormindo, enquanto outros estavam em cadeiras, quase dormindo também. Era um espaçoso círculo de chão brilhante de limpo. Tochas ardiam e uma lareira bruxuleava a pouco na ideia, e uma grande mesa branca jazia no meio do salão.

    Ereken mordeu a língua ao ver as Lentes. Grandes estruturas de ferro e latão, muito maiores do que um urso ou dois, acoplavam dezenas de placas de vidro arredondadas com rasuras, unidas umas as outras por estranhos e sensíveis finos braços de estanho e parafusos de três cabeças. Havia quatro Lentes na torre, uma para cada dos quatro cantos, mas uma estranha luz saía delas e batia na mesa.

    O ar era úmido, tão úmido que o frio roeu seus ossos e mordeu seus pés.

    — Senhor Ereken — sussurrou um rapaz. Era um garoto esbelto de quinze anos, vestido em grossas camadas de andrajos contra frio, remendados com lã e couro mal cosido. — O que veio fazer aqui? Viu algo estranho?

    — Haje Bijik, não? — disse o adulto. — Como se sente?

    — Sinto-me feliz por lembrar do meu nome — respondeu o garoto, cruzando os braços, tamanho frio. — Não costumamos receber muitas visitas aqui. De vez em quando, o Ceire, ou conde Sigward… Conseguiu mandar cartas pro Ducado?

    — Não consegui mandar todas as minhas a tempo — confessou com uma risada. O mensageiro cobrara uma fortuna por cada dia que ficara esperando. Ereken Zwaarkind, o Cavaleiro do Duque e Herói da Barragem não esperava que escrever cartas seria tão trabalhoso. — Mas enviei algumas, sim.

    — Graças aos Quinze. Consegui enviar uma também… — O garoto trincou os dentes. Ereken jogou lenha na fogueira, uma estranhamente pequena, mas Haje disse que mais seria problemático. — Enfim, o que veio ver, barão?

    Ereken entrou de vez na sala. Um dos dorminhocos cobriu o corpo com a pele de outro e ficou em posição fetal.

    — Observei algo estranho na floresta abaixo da Fortaleza.

    — Bem… — pigarrou o rapaz. Seus cabelos escuros estavam longos e tão mal cortados quando um enovelado de lã ainda na ovelha. — Não temos o costume de ver algo tão de perto assim, já que elas foram feitas para ver longe, muito longe, mas pode ser. Me dê um instante.

    “Está aqui há pouco tempo, mas já se habituou muito bem”, pensou Ereken. Os familiares de Haje nunca lhe foram os mais amigáveis, todavia nunca atrapalharam sua vida. Barão Bijik vez ou outra dizia que casaria Haje com Hydele ou Nianna. Uma pelo bom sangue, disse, outra por sangue bom. Costumava fingir que não o ouvia, ou que era uma piada.

    Haje retirou de uma bolsa de pele tinta congelada e uma pena. De outra bolsa maior, retirou uma folha de vidro plácida e longa, que entrou por baixo da mesa. “A que serve?”, pensou. “As Lentes não funcionam como lentes? O garoto Bijik foi na lente que apontava em direção da floresta e mexeu nos braços com a delicadeza que se deveria tocar uma mulher.

    Duas lentes saíram do lugar, depois mais duas. Haje suspirou, suando frio e fraquejando os ombros.

    — Está bem?

    — Sim… — suspirou o rapaz, empalidecido. Ereken via nas ações do garoto as lentes tendo um valor muito maior do que poderia imaginar. “Claro, se permitem espionar as Fronteiriças, são a coisa mais valiosa na Fortaleza.”

    Haje segurou um dos braços de latão, movendo a lente com suavidade. O filete de luz azulada mudou levemente seu caminho, encostando na mesa. Ereken aproximou-se da mesa e observou-a ficar com a superfície enegrecida; arqueou a sobrancelha com dúvida. Por fim, Haje chegou à mesa e encaixou um pedaço de vidro em cima do feixe.

    E observaram os dois um morticínio de ovelhas entre árvores se desenhar na superfície negra. Restos de ovelhas, de lobos e ursos amontoados.

    Haje engoliu o ar úmido e quase saltou para trás, mas Ereken cisou os lábios com um susto ainda maior. A riqueza de detalhes do desenho o fez perceber uma faca de esfola presa à uma árvore, uma faca com um filete branco congelado. A faca que voara contra sua cabeça há poucos dias atrás.

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