Acordando lentamente…

    Sinto uma luz forte batendo no meu rosto, atravessando minhas pálpebras fechadas. É intensa e quente, como a luz do sol ao meio-dia. Aos poucos, percebo que estou deitado sobre algo rígido e irregular — madeira. Parece balançar levemente sob meu corpo.

    Devo estar na carroça.

    Ao redor, sons abafados. Primeiro apenas ruídos desconexos — o ranger das rodas, o trotar dos cavalos, o farfalhar do vento entre árvores. Mas então, por entre esse caos sonoro, uma palavra se destaca:

    — Lucas!

    É a voz da Aiza. Um chamado suave, mas aflito.

    Aiza…

    Tento me mover, mas meu corpo parece pesar uma tonelada. Estou tonto, lento, como se meu corpo estivesse se arrastando para despertar. Respiro fundo e concentro toda a minha vontade em um simples gesto: abrir os olhos.

    Com esforço, minhas pálpebras finalmente cedem.

    O mundo volta aos poucos.

    A primeira coisa que vejo é o rosto de Laila.

    Ela está tão próxima que por um segundo penso que está prestes a me beijar. Seus olhos estão fixos nos meus, arregalados, como se estivesse observando uma criatura rara que acabou de despertar.

    — AH! — exclamo, assustado, e me ergo de repente.

    Só que meu movimento é brusco demais.

    TOC!

    Minha testa colide com força na de Laila.

    — Aiaiaiai… — ela reclama, levando a mão ao rosto e se encolhendo de dor.

    — Desculpa, Laila! Não foi minha intenção! É que… você me assustou — digo rápido, cheio de culpa, tentando ajudá-la.

    Ela só balança a cabeça, ainda massageando a testa, com um resmungo.


    Me viro, ainda meio tonto, e olho para frente.

    Aiza está ali, alguns passos à frente da carroça, discutindo com Kael. A diferença de tamanho entre eles é gritante. Ela parece uma criança diante de um gigante, mas mesmo assim encara ele com coragem.

    — Kael, por que você sempre machuca o Lucas?! Para com isso! — diz ela, batendo com força inútil contra ele.

    Kael apenas suspira, com a expressão neutra de sempre.

    — Calma, Aiza. Ele está bem. Olhe só — responde, apontando na minha direção.

    Aiza vira imediatamente.

    Seus olhos brilham quando me vê acordado, e ela corre até mim. Antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela me envolve num abraço apertado, desesperado, como se tivesse medo de que eu desaparecesse a qualquer momento.

    — Desculpa, Lucas… Eu não consegui te proteger… — sussurra ela, com a voz embargada. — Eu juro que não vou deixar você ir para aquela floresta com o Kael de novo. Nunca mais…

    Sinto seu choro silencioso contra meu ombro.

    Fico parado por um instante, sentindo o peso daquelas palavras, da culpa que ela carrega — e que eu também carrego.

    Mas naquele momento, tudo o que consigo fazer… é retribuir o abraço.

    ***

    — C-Calma, Aiza… — murmuro com dificuldade. — Está me apertando… tá doendo. Me solta, por favor…

    Tento empurrá-la devagar, sentindo seus pequenos braços ao redor do meu tronco como cordas presas, firmes, desesperadas. Ela não quer soltar. Não consegue.

    — Não! Nunca mais vou te soltar, Lucas! — sua voz sai entrecortada pelo choro, a respiração acelerada. — Eu… eu vou te proteger! Eu sou a mais velha! Mas parece que… sempre é você quem me protege…

    As palavras dela me atingem mais do que qualquer soco ou ferida.

    Proteger? Ela quer me proteger?

    Ela não faz ideia…

    Desde que nossos pais morreram, tentei assumi esse papel por obrigação. Não porque era forte… mas porque ninguém mais iria. Passei dias pensando sobre isso, fingindo ser alguém que nunca fui. Fingindo estar bem, sendo o escudo dela… mesmo quando meu próprio mundo estava ruindo por dentro.

    E agora… ouvir da Aiza que ela quer cuidar de mim?

    Ridículo.

    Sou um fardo. Um peso inútil. E o pior… eu sei disso. Já vivi tempo o suficiente pra ter consciência disso. Em minha vida passada, tinha dezoito anos. E agora… sou só um garoto fraco sendo consolado por uma criança de sete?

    Quanta vergonha. Quanto nojo de mim mesmo.

    Você é patético, repito internamente.

    E então tudo explode.

    — QUEM VAI TE PROTEGER SOU EU, AIZA! EU VOU PROTEGER VOCÊ E TODO MUNDO!!! — grito do fundo da alma, sem conseguir mais conter a dor acumulada. Minhas palavras ecoam pela estrada, pelos campos, pela carroça… como um desabafo, como uma confissão crua.

    Ela me encara por um segundo, surpresa. Mas não se rende.

    — Não! — responde, firme. — Eu que vou te proteger, Lucas! Até o fim! Até eu morrer! — seus olhos marejados se fixam nos meus com uma força que parece muito maior do que o corpo frágil que ela tem. — Com a minha vida, se for preciso!

    A vergonha me paralisa.

    Quero desaparecer.

    Quero… fugir daquele momento.

    — N-Não… quem vai proteger alguém aqui sou eu… sua pirralha — tento disfarçar, usando um tom brincalhão para esconder a confusão dentro de mim.

    — Pirralha?! Eu sou mais velha, esqueceu?! — ela responde, irritada, inflando o peito.

    — E eu sou mais responsável — retruco, levantando uma sobrancelha e cruzando os braços com falsa superioridade.

    Ela não pensa duas vezes. Me derruba de costas no chão com um salto certeiro e monta sobre minhas costas como uma fera determinada.

    — Retira tudo o que disse, Lucas! — ela grita, puxando meu braço e imitando uma chave de braço, mas sem causar dor de verdade. — EU VOU TE PROTEGER!

    — Nunca! — digo, rindo, mesmo preso no chão.

    — uhum uhum ahaha! Vocês dois são muito engraçados! — diz Laila, mais atrás na carroça, gargalhando com lágrimas nos olhos.

    Eu e Aiza nos entreolhamos… e rimos também. Por um instante, tudo parece leve. Natural. Como deveria ser.

    Mas eu precisava mostrar que não fui à floresta à toa.

    Fecho os olhos, inspirando o ar da manhã profundamente. Sinto o cheiro da madeira da carroça, da terra úmida… e algo a mais: a presença da mana ao meu redor. Vivo, pulsante, como se estivesse me esperando.

    Me concentro.

    Lembro dos ensinamentos de Kael. Da dor. Do silêncio. Da disciplina.

    O fluxo desperta.

    A mana percorre meu corpo como eletricidade morna, reagindo ao meu chamado. Sinto um calor interno — não ardente, mas reconfortante, como um cobertor invisível envolvendo meus ossos.

    Um escudo de energia começa a se formar em minhas costas. Brilha como vidro dourado meio esverdeado sob o sol. Aiza é suavemente arremessada de cima de mim com a força mágica e cai no chão de lado, boquiaberta.

    — L-Lucas…? — diz ela, se erguendo devagar, os olhos brilhando. — Você também pode usar magia?! Isso é… isso é incrível!

    Sento, ainda com a aura mágica vibrando ao meu redor. Mas não dá tempo nem de respirar.

    — Mas mesmo assim… eu sou a mais forte! — Aiza sorri com confiança e dá um passo à frente.

    Então, acontece.

    Ela começa a flutuar.

    Seus pés se levantam do chão como se não tivessem peso. Ao seu redor, pequenas esferas de fogo surgem e giram como planetas ao redor de um sol. Seu cabelo balança com a energia em volta, e por um momento, ela parece uma maga veterana em corpo de criança.

    — Toma essa! — diz, disparando as bolas de fogo contra mim com um único gesto da mão.

    Ergo o escudo de mana instintivamente. As chamas colidem com força, provocando clarões e rajadas de calor, mas o escudo aguenta… por enquanto.

    Estou pronto para contra-atacar. Mas então, a lembrança volta.

    Aquele momento com Kael. Quando a magia escura fluiu por mim.

    Eu quase o acertei. Quase o matei.

    Naquele instante… não era eu. Era algo em mim. Algo que queria tomar. Que queria destruir. Era uma fome… por tudo.

    Não era como as magias da Aiza. Não era como as bolas de fogo que ela lança com brilho e leveza. Aquilo era… diferente.

    Era como se eu estivesse devorando o mundo à minha volta.

    Tomando tudo.

    A vida. A cor. A felicidade.

    Era meu. Tudo era meu.

    Uma náusea me atinge. O suor escorre frio pela minha nuca. A sensação volta, rastejando como uma serpente no meu peito. Meus dedos tremem.

    Mas antes que eu perca o controle…

    O escudo desaparece.

    E a última bola de fogo de Aiza me atinge direto no peito.

    Não dói muito. Ela controlou bem a força. Mas é o bastante para rasgar parte da minha roupa, chamuscar minha pele e me arremessar de costas no chão.

    Fico ali deitado.

    Olho para o céu entre as folhas das árvores… e sorrio.

    Ela é mesmo incrível.

    Mas um dia… eu também vou ser.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 93.33% (3 votos)

    Nota