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    — Perfeito… — disse Kael, cruzando os braços enquanto observava nos com um olhar crítico. — Esse combate de vocês foi incrível. Não imaginei que você, Lucas, conseguiria manipular a mana tão bem depois de ter aprendido a usá-la há apenas algumas horas. Mas, ainda assim… você perdeu.

    As palavras saíram frias, diretas, como uma sentença. Seu olhar desapontado me atingiu mais do que eu queria admitir.

    — Sim, mas… a Aiza só ganhou porque ela já usa magia há mais tempo! — falei rápido, tentando justificar, tentando encontrar algum valor na minha derrota. Minha voz soou mais desesperada do que firme.

    — Sim, o Lucas ainda está aprendendo a usar — disse Aiza, num tom suave, quase protetor, olhando para mim como se quisesse me defender.

    Mas Kael não deixou espaço para consolo.

    — Lucas… já esqueceu o que eu disse? — ele se aproximou, me encarando como se quisesse que cada palavra se cravasse na minha alma. — Sem desculpas. Você acha que no mundo real alguém vai pegar leve com você só porque está treinando há pouco tempo? Você realmente acha que, se a Aiza quisesse, ela não teria quebrado seu escudo nos primeiros segundos do combate?

    Senti um frio subir pela espinha.

    — A Aiza é forte. Muito mais forte que você. E pegou leve… muito leve. Eu diria que ela é mais habilidosa do que um adulto que treina há cinco anos.

    As palavras dele caíram sobre mim como um peso sufocante. Meus punhos se cerraram involuntariamente, e tudo dentro de mim começou a ferver.

    Toda hora é isso. Toda maldita hora. Eu amo a Aiza… eu amo mesmo. Mas todos só conseguem ver como ela é incrível. Todos jogam isso na minha cara como se eu fosse uma sombra ao lado dela. Já faz tempo que é assim. Minha tia Ayesha… só faltava chupar os ovos da Aiza, de tanto que bajulava ela. Aiza pra cá, Aiza pra lá, como se ela fosse a reencarnação da perfeição.

    E hoje? Hoje o Kael já repetiu pelo menos cinco vezes o quanto ela é forte. O quanto ela é maravilhosa. O quanto ela é tudo… e eu sou só o “Lucas”.

    Aiza… não me leve a mal. Eu sei que não é sua culpa. Mas às vezes… eu queria que você fosse fraca. Só por um instante. Só para eu me sentir melhor, só para eu ser o melhor uma única vez. Que merda… estou tendo esses pensamentos egoístas de novo. Droga.

    — Lucas… — a voz de Laila me alcança como uma brisa fresca, afastando as nuvens de frustração por um momento. — Eu achei que você foi incrível contra a Aiza.

    Ela estava sentada na carroça, com as pernas balançando suavemente e um sorriso sincero no rosto. A luz do entardecer tocava seus cabelos ruivos, e havia algo reconfortante naquele olhar inocente.

    — Já ia me esquecendo… — disse Kael, virando-se para ela com a sobrancelha arqueada. — Qual é o seu nome, garota?

    É mesmo… até agora, Kael só se referia a ela como “ruiva”. Nem sequer havia perguntado seu nome.

    — Eu… ahn… me chamo Laila — disse ela, levando o dedo até a bochecha, sem saber onde colocar os olhos. Sua voz saiu baixa, quase como um sussurro tímido.

    Kael fez uma expressão estranha. Seu semblante, geralmente firme e direto, agora parecia confuso. Ele arqueou levemente a sobrancelha, os olhos semicerrados, como se algo não fizesse sentido em sua cabeça. Era uma mistura de dúvida, curiosidade intensa… e até um certo desconforto.


    — Laila… — disse Kael, com a voz grave, os olhos fixos nela— Eu te trouxe com a gente porque não podia simplesmente te largar naquela cidade. Não depois do que vimos naquele lugar maldito.

    Ele cruzou os braços, falando com firmeza, mas sem elevar a voz.

    — Você estava à beira da morte. Mal respirava. E mesmo assim… ainda era abusada por aquele desgraçado da pousada. Quando te encontramos, você já devia estar morta há horas.

    — Aquele porão… — continuou Kael, encarando o vazio como se revivesse a cena — era um cativeiro. Várias crianças mortas. Presas como animais. A maioria já estava fria… menos você. Você e a Aiza foram as únicas a sair dali com vida.

    Kael então virou o rosto devagar e encarou Laila diretamente.

    — Eu podia simplesmente fingir que não vi? Ignorar a única sobrevivente? Claro que não. Mas… — ele fez uma pausa, sua expressão endurecendo — não foi só por compaixão que eu te trouxe.

    Laila, encolhida na carroça, olhava para baixo, visivelmente desconfortável. Seus dedos tremiam levemente enquanto apertava o tecido da própria roupa.

    — Durante a viagem toda, você só dormia. Agora que está acordada, eu quero saber… — Kael se inclinou um pouco para frente, sua voz mais baixa e firme. — Você é de Crimsônia, não é?

    Ela ergueu os olhos lentamente. O medo ainda estava ali, mas algo na pergunta de Kael a fez se endireitar, como se estivesse pronta para enfrentar a verdade.

    — Sim — respondeu, com firmeza. Não havia hesitação, nem dúvida. Só certeza.

    Franzi a testa. Crimsônia? Que porra era essa?

    — Kael… que lugar é esse? Nunca ouvi falar desse reino — perguntei, tentando entender do que ele estava falando.

    Ele soltou um suspiro pesado antes de responder.

    — Crimsônia é conhecido como o Reino das Montanhas. Um território isolado do resto do mundo. Ninguém entra. Ninguém sai. Simples assim. A única exceção é a família real de Frewer. Só eles sabem exatamente onde fica. O resto… é sombra e segredo.

    Olhei para Laila de novo. Agora tudo nela parecia ainda mais estranho. Mas se esse reino é tão fechado… como ela acabou aqui?

    — Mas por quê? — insisti. — Por que esconder um lugar assim? O que tem lá que não pode ser visto?

    Kael apertou o punho, pensativo. A voz dele soou mais baixa, mais séria.

    — Ninguém sabe. Há quem diga que o lugar guarda magia proibida. Outros falam de uma maldição. Mas nada disso é confirmado. Só o que se sabe com certeza é que… todos os nascidos em Crimsônia têm cabelos ruivos como o fogo. Como os da Laila. E que, muito antes desse reino surgir… houve uma guerra. Uma guerra que ninguém ousa mencionar.

    Ficamos todos em silêncio. O vento quente soprava pelas árvores. A luz do sol refletia nos cabelos de Laila, dando a eles um brilho quase sobrenatural.


    — Anos atrás… houve uma guerra — começou Kael, o olhar fixo no céu, como se as nuvens carregassem lembranças antigas. — Mas não sei muito sobre ela. Aconteceu há mais de setecentos anos, e todos os registros foram perdidos.

    Ele fez uma breve pausa, como se escolhesse as palavras com cuidado.

    — O que se sabe é que Crimsônia era inimiga do Reino de Frewer. Os dois viviam em guerra. Uma guerra sangrenta… por território. Uma guerra que, ao que tudo indicava, Frewer estava vencendo.

    Kael então respirou fundo, e por um momento ficou em silêncio, observando as nuvens com um olhar distante.

    — Mas aí… — retomou ele — um reino que até então parecia pequeno, insignificante, descobriu algo. Algo poderoso o bastante para dar a ele controle sobre tudo. E, movido pela ganância, esse reino atacou Crimsônia e Frewer na mesma noite.

    Seus olhos agora estavam mais sérios. A tensão nas palavras era visível.

    — Frewer pensou que o ataque tinha vindo de Crimsônia. Crimsônia, por sua vez, achou que tinha sido Frewer. Durante um tempo, a guerra ficou ainda mais brutal… até que os dois perceberam quem era o verdadeiro inimigo. E então, para não perderem tudo, se uniram.

    Kael baixou a cabeça por um momento, a voz mais pesada agora.

    — Eles venceram. Mas o preço foi alto. Crimsônia sofreu grandes perdas. Tantas, que decidiram se tornar aliados permanentes de Frewer, encerrando de vez aquela antiga rivalidade.

    Ele cruzou os braços, o olhar ainda perdido na lembrança distante.

    — Desde então, só o reino de Frewer sabe a localização de Crimsônia. E todos os registros dessa guerra… sumiram com o tempo. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu.

    Kael então olhou para mim, com uma expressão séria.

    — Existem várias teorias da conspiração. Alguns dizem que o próprio governo fez questão de apagar tudo. De esconder a existência daquele maldito reino que apareceu do nada… e quase destruiu os dois. Talvez pra evitar que alguém, um dia, encontre o que ele encontrou… e faça o mesmo.

    Ele então ficou em silêncio por alguns segundos, antes de acrescentar, com a voz mais baixa e sombria:

    — Dizem que a guerra terminou sob uma Lua de Sangue… uma noite em que o céu inteiro ficou tingido de vermelho. E que, antes de ser completamente destruído, o reino inimigo lançou uma última maldição sobre Crimsônia. Uma maldição que marcou para sempre cada um de seus habitantes. Desde então, todos que nascem lá têm cabelos ruivos… tão vermelhos quanto o fogo… ou quanto o sangue daquela noite.

    — Desde então, essa guerra ficou conhecida como a Guerra Carmesim… Mas ninguém sabe ao certo se é real ou apenas uma lenda passada de geração em geração. — Kael falava com um tom grave, o olhar perdido nas memórias. — Mas quando vi Laila, lembrei dessa história no mesmo instante. E uma das coisas que fez minhas suspeitas aumentarem é que, em toda a minha longa vida… eu nunca vi alguém ruiva. Nunca. Só nos livros… e nos contos antigos.

    Ele fitava o horizonte, a expressão sombria, como se ligasse peças de um quebra-cabeça esquecido há séculos.

    Me virei para Laila, confuso, e perguntei:

    — Mas… como você saiu de Crimsônia?

    Laila abaixou a cabeça. Seus olhos logo se encheram de lágrimas, que escorreram silenciosas por seu rosto pálido. A voz dela tremia, quase sussurrada:

    — Eu… não lembro muito bem. Só lembro de ver meus pais correndo, desesperados, comigo nos braços. Meu pai me colocou no colo… e depois… tudo escureceu. Quando despertei, estava numa floresta. Uma mulher me encontrou… e ficou espantada, talvez por causa do meu cabelo. Ela me levou até o marido e… e… — sua voz falhou, o choro engasgando as palavras. — Ela… ela me olhou como se eu fosse uma moeda de ouro… e me vendeu pra um homem horrível. Ele me prendeu naquele lugar. Aquele lugar horrível. E… e fez coisas comigo. Coisas que… — ela se abraçou, tremendo — que eu nunca vou esquecer.

    O silêncio caiu pesado sobre todos nós.

    Tentei processar tudo aquilo. Era muita informação… rápido demais. Mas olhando para Laila ali, encolhida na carroça, de cabeça baixa, com os olhos vermelhos de tanto chorar, as mãos apertando a barra da roupa como se fosse tudo o que restava, os pés balançando no ar… Senti um aperto no peito. Uma dor que eu não sabia nomear. Eu queria dizer algo. Qualquer coisa. Mas as palavras não vinham.

    — Tá… e o que isso tudo tem a ver com a Laila? — perguntou Aiza, com sua voz grave e firme, rompendo o silêncio.

    — Você não ouviu o que o Kael disse? — retruquei, um pouco irritado com a frieza dela.

    — Ouvi. Mas o que uma guerra de séculos atrás tem a ver com ela? Tá, o cabelo dela é vermelho… E daí? — Aiza cruzou os braços, confusa.

    — Não é tão simples assim, Aiza… — disse Kael, com o tom sério. — Ela saiu de Crimsônia. Só isso já bastaria para ser sentenciada à morte. E todos que a ajudassem… teriam o mesmo destino.

    Aiza o encarou por um momento. Então, com a voz embargada, deixou cair suas defesas.

    — Eu não ligo! — gritou, as lágrimas começando a escorrer pelo rosto. — A Laila é minha amiga! Ela se tornou alguém importante pra mim! Pode até parecer que nos tornamos amigas só hoje, mas… ela me entende. Quando vocês não estavam, a gente conversou bastante. Ela… ela sabe como eu me sinto. Ela me entende de verdade!

    Aiza caiu de joelhos no chão, chorando.

    — A gente ficou presa naquele porão juntas. A gente sofreu coisas horríveis… e eu tenho medo. Medo de tudo acontecer de novo. Ela também tem! Mas eu disse pra ela que você, Kael… que você era forte… Que ia nos proteger. Então… por favor… por favor… proteja a Laila! Não abandona ela… Por favor…

    Kael se aproximou lentamente. Em silêncio, pousou a mão com delicadeza sobre a cabeça de Aiza, num gesto quase paternal.

    — Eu nunca disse que ia abandonar ela — falou com firmeza, olhando nos olhos da garota. — E nunca disse que ia entregá-la para os guardas reais. Ou pra qualquer um.

    Então, ele caminhou até a carroça, parando diante de Laila. A garota ainda chorava, a cabeça baixa, como se estivesse prestes a encolher e desaparecer do mundo.

    — Se você quiser ir embora… eu não vou te impedir — disse Kael, ajoelhando-se diante dela. — Mas… se quiser continuar com a gente, eu prometo que vou te proteger. E vou te deixar forte. Forte o bastante para que um dia… você mesma não precise mais ser protegida. E então… o que me diz?

    Laila ergueu o rosto devagar. As lágrimas escorriam em rios, seu peito subia e descia com a respiração entrecortada.

    — Eu… eu… QUERO FICAR COM VOCÊS! — gritou, abrindo os braços, como se abraçasse o mundo inteiro naquele momento. Seu choro agora era diferente… um choro de alívio, de pertencimento.

    E por um instante… apesar de toda a dor, sofrimento e confusão… algo ali parecia certo.

    Como se, finalmente, ela tivesse encontrado um lar.

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